**SOLTANDO OS VERBOS NA EXCITAÇÃO IRÔNICA DE SUAS VERDADES** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Estou-me nas tintas para as verdades absolutas que tornam analfas de mãe e betos em egrégias personalidades e ainda encontram quem lhes lambam as botas. Verdades absolutas ornamentam conversa, são arrebiques de encontros em praças públicas, tribunas, tribunais, esquinas e mesas de restaurante, botecos de pinga arranca-pulmão, e de tão absolutas Deus se põe à espreita para ouvi-las e assimilá-las, nalguma oportunidade emitir novo Sermão da Montanha.
Enfim, tive idéia salvadora!...Quem com os linces do olhar con-templa e observa esta frase exclamativa, de imediato imagina estar-me insatisfeito, estupidificado com esta atitude, esta postura e conduta com os analfas de mãe e betos tornarem-se egrégias personalidades, estando sendo um jovem de vinte anos, vigoroso, rebelde, pensa estar mudando o mundo, com considerações intempestivas, pondo a alma com todas as suas mazelas e viperinidades às claras, só o cego que não quer ver não enxerga... Tenho a saída para tudo isso. Estão muitíssimo equivocados - a cada instante esta ânsia desenfreada, esta agonia deslavada de lavar a alma às verdades absolutas. Ah! trapézio de minhas estultices e nostalgias, trapézio das acepções abstrusas, obtusas, difusas. A idéia salvadora trabalhou em mim, como a de um an-estésico.
Não me surgira da imaginação sobremodo fértil, da intuição que in-vestiga luzes e sombras, da percepção que avalia ouros e risos, sim de um encontro. Estava a retornar a minha residência, após a aquisição de um litro de leite em caixinha, dez pães e cinco maços de cigarros, encontrando-me com um amigo, quem estava acompanhado de um senhor barrigudo, bigodudo, careca, estatura mediana, afigurando-se ser português de origem, vindo a confirmar pelo seu sotaque mui carregado. Os portugueses falam para dentro, devido ao clima frio europeu, os brasileiros falam para fora, por ser país tropical. Fomos apresentados. Trocava um dedinho de prosa com o amigo sobre a afirmação do Papa no inferno não haver fogo. Com todo seu jeito característico disse-nos: "Já ouvistes dizer no provérbio português: "Confundir toucinho de ovelha com eletricidade"? Confundir toucinho de ovelha com electricidade quer mesmo dizer que a pessoa confundiu tudo , baralhou tudo, fez uma confusão danada! Está lá... Não seria o caso de confundir todas as verdades absolutas, fazer uma confusão danada, o mesmo, como os brasileiros dizem, que colocar todos os gatitos num saco de aninhagem e lançar ao rio..."
Haveria de fascinar este provérbio português, fasciná-lo muito, deslumbrá-lo, arrastá-lo.
Eis a idéia salvadora para aqueles instantes de estar mastigando desespero, com uma espécie de gula e volúpias mórbidas, evocando os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazo em crer que são eternos, todas as verdades são um pesadelo, ora, enganando-me a mim próprio, tentando rejeitá-las de mim, como fardo inútil.
Como pode uma só mente acolher tão diversas verdades, com suas dialéticas, pensamentos ad-versos? Assim é este céu de nuvens claras ou brusco, eminentemente enegrecido - outro teto vastíssimo, longínquo, que as ampara, a-colhe com todo zelo e acuidades, o mesmo zelo da porca com os recém-nascidos porquinhos... Mister não se esquecer do crânio do homem, que os cobre igualmente, não só contraditórios, senão opostos e ad-versos.
Só o vazio re-colhe e a-colhe o múltiplo. Incrível a capacidade de assimilação das verdades, admirável é que todos as cantem, recitam e declamam e não se esvaziam delas, re-colhendo e a-colhendo outras, mas estão livres do inferno, o "O" odeia tais verdades, também do céu porque Deus não recebe hipócritas.
Estou-me nas tintas para os princípios absolutos de quem nenhum "pedigree" possui e querem, desejam, tiram as vestes e pisam em cima em defesa deles, doutrinar os homens. Porque usam espartilho e calcinha vermelha de renda todos devem fazê-lo, enfim são carnes e ossos. sou barrigudo, nenhum espartilho me serve, uso cuecas "samba-canção" e me sinto à vontade.
Estou nu e de mãos nos bolsos com os valores eternos, mesmo na consumação dos tempos e já não haja Deus, imorríveis, que salvam os decrépitos de não poderem dormir com a consciência tranquila e serena no travesseiro de espuma, de receberem a hóstia sagrada isentos de quaisquer pecados, seguem os Dez Mandamentos à risca, fornicam apenas para a reprodução.
Dizem somos os homens párias de nós mesmos. Quem o diz deve ter mergulhado bem profundo em sua alma, in-vestigado suas atitudes e ações, assumindo-se assim, é pária de si próprio. Quê bela consciência! Teve a cor-agem de se re-velar, confessar-se, o que é digno de louvores. Mas entre o louvor que está merecendo e a glória que está esperando receber, a grande medalha, há uma diferença enorme. Assuma-se pária, confesse-se como tal, mas jogar todos os homens dentro de seu saco de farinha, isto é inconcebível, em alguns homens há o "nós" deles mesmos, não precisam de serem jogados em sacos de farinha, assumem-se a si mesmos, vivem de quem são. Tudo bem - continuem a jornada deles, jogando todos não apenas nos sacos de farinha, nas sarjetas, nos "bayou", onde pensarem ser mais conveniente, onde lhes aprouver.
Não digo a ninguém, digo-o a mim próprio, investiguei com todos os métodos de que disponho, com a verdade que me habita, e não me deixa justificar ou explicar o que está mais do que lúcido e nítido, com todos juízos, todas as forças presentes no meu superego. Não posso deixar de estar deprimido, a alma encontrar-se agitada, pois condições tive-as às pencas para ter dado outros rumos à existência, tê-la construído de outros modos, estilos, tê-la realizado noutras dimensões da realidade, mas preferi investir nas coisas fúteis, medíocres, imbecis, ser nada, viver o nada, por sentimentos de revolta, ressentimento, mágoa, raiva... Era bem fácil. Não pensei no futuro, no que haveria de vir, dia haveria que todas as realidades vividas e vivenciadas estariam à minha frente, a vida me mostraria as verdades, e nada poderia dizer em minha defesa.
Sou zero de ângulo obtuso.
Julguem tais palavras simplesmente "dramalhão", desejo de chamar atenção, ser digno de pena, dó, comiseração, sensibilize os corações piedosos, humanos. Haja até quem, inspirado em mim, de imediato, jogue todos no meu saco de batatas, dizendo que somos todos "zero de ângulo obtuso", o que vou discordar plenamente, pois a consciência do zero é minha, o ângulo obtuso é também meu, conforme a perspectiva com que analisei, conforme as verdades da vida vividas e analisadas que fui acumulando, os juízos que me habitam. Sou o único "zero de ângulo obtuso". Não o digo para defender a minha diferença entre todos os homens, afirmando assim a minha personalidade, caráter, a minha identidade. Digo-o apenas para ser sincero e verdadeiro comigo mesmo. Posso não haver sido homem digno, honesto comigo no concernente a ter dado rumos virtuosos à vida, destino pelo menos plausível, mas aprendi no de-curso e per-curso a ser verdadeiro comigo próprio. Não importa o que fiz de mim, importa o que faço agora de mim. Tomei a decisão peremptória e radical de tomar outras trilhas, mudar de estradas, à busca de minha dignidade, fazer jus às palavras de alguém querido e amigo "A vida tem muitas coisas lindas e maravilhosas para ser vivida". Vou rasgar os zeros na jornada, instituir outros ângulos de posturas e condutas.
A perfeição maior é no emprego do zero – creio sim, nada há que me persuada ou convence do contrário, não por ser “cabeça dura” ou insofismável, que devido a esta perfeição criaram o zero à esquerda, o zero redondo, e o zero obtuso, sendo este último de uso muito recente, usado somente em situações e condições especiais. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é aumentar. Um 1 sozinho é 1, aqui e na terra-natal de Shakespeare; ponha-lhe dois zeros, é 100. Assim, o que vale nada faz valer muito, coisa que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto aprovo com um c como com dois cc.
Sozinho no mundo, diante de minha vida... Não jogo os homens no meu saco de batatas, cada um sabe de si próprio, investigue-se, assuma-se, isso é com qualquer um.
Só sei de mim, só sei de mim, só de mim...
Estou nem aí para escritores e poetas que, recebendo sarrafo de seus leitores, fazem escândalos inomináveis, viram mesas e cadeiras, rodam as cariocas, são os reis da compota de figo, ao contrário, recebendo encômios ad-versos e diversos sobem nas nuvens de cabeça para baixo. Grandeza e pequenez nas letras nem no tempo das vacas frias existiram, cada um na sua e Deus na de todos, isto quando alguém não cantar de ateu. Quê cretinice: não há no mundo desde o genesis cultura sem Deus ou deuses, mesmo a pedra sendo um deles.
Só não estou nas tintas para uma cosita bem sutil, aí estou com a tinta: com quem canta de galo em galinheiro de só galos. Se todos estão em silêncio de sepulcro, por que só um há de cantar? Esqueceu-me quase outra coisa objeto de minha tinta, o pau come sem dó nem piedade: quem almoça e janta o nada, vomita o tudo, não pela viscosidade do tudo, sim porque o tudo é inodoro. Os objetos, coisas, homens têm seu perfumezinho peculiar e característico.
Digo-lhes, caríssimos senhores, estou-me nas tintas para quem pintou o urubu de preto, obra-prima no Museu de Artes Modernas, quero o resto da tinta para escrever as palavras negras no meu caderninho de páginas brancas.
E com um toque de luva de pelica, sendo "No inferno não há fogo", ipsis verbis papal", uma verdade, e "Não confundir toucinho de ovelha com electricidade", provérbio ipsis litteris português, verdades absolutas, como poderia eu estar-me nas tintas, com tamanha confusão e despautério. São verdades conciliadas a pedra de salvação das sorrelfas de lídimos devaneios.
Sempre esta expressão "estar-se nas tintas"! Se fosse eu poucochito criativo, usaria "estou com as calças na mão", mas os dogmas da sociedade me crucificariam, pois que esta expressão lembra nádegas, nádegas à vista é ataque ao pudor. Ademais, devo confessar com a última gota de tinta de minha pena: sou pudico!
Ah, ah, ah... Ih, ih, ih... Oh, oh, oh...Rides a bandeiras hasteadas! O primeiro e o último que ficarem sérios é que as carapuças serviram.
E para finalizar: o interessante é que com a tinta nas tintas esganam-se gatos e lebres com única pena, confundindo toucinho de ovelhas com electricidade, entrelaçam os pezinhos o casal que se ama apaixonadamente, dormem de pés entrelaçados.



(**RIO DE JANEIRO**, 05 DE JANEIRO DE 2017)


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