**PERCEPTIBILIDADE CRITERIOSA FACE À PECULIARIDADE DAS EXPRESSÕES** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto



Bons dias!




Por que é o dente do coelho que indica tem coisa de podre no reino da Dinamarca? A Dinamarca, apesar de todos os pesares, está muito aquém do Brasil, este está no topo de todas as glórias e júbilos. Seria que ele enfiou o dente na cenoura estragada, sentiu o gosto da coisa podre, e aprendeu a não mais às escondidas dar na cozinha do rei, e por isso seu dente ficou mais que famoso? Famoso é até apelido, tornou-se eterno, imortal. Adquirir as coisas ilicitamente só pode resultar nessas conseqüências, talvez a razão seja de ser mais fácil, não exigir esforços sobrenaturais, estafantes. Ou seria que ele quebrou o dente na cenoura dura do rei? Creio que o dente do coelho para indicar que algo está errado não nasceu na Dinamarca – se houvesse, haveria mudança de palavras, seria dito: “tem dente de coelho nas coisas podres da Dinamarca” ou “tem Dinamarca no dente podre do coelho” -, a expressão “tem dente de coelho aí” lá não nasceu, nasceu aqui mesmo no Brasil, é genuinamente nossa – que mania a gente tem de tudo que tem seus valores incontestes deve ter origem na Europa! Tudo aqui no Brasil é tupiniquim, há quem acredite que os brasileiros ainda vivemos na era dos índios, da pedra lascada mesmo, somos um povo bocó, jacu. Surgiu algo que não se pode explicar, não se pode justificar, suscita as maiores dúvidas e desconfianças, suscita questionamentos os mais di-versos, suscita suspeitas, logo se diz que tem dente de coelho aí, alguma coisa de muito errada está acontecendo. Seria que aqui no Brasil o coelho deu os seus jeitinhos para comer uma cenoura mui especial, e na hora “h” percebeu que não era especial, não tinha qualquer especialidade, aliás bastante trivial, até se criticando por espremer os miolos para encontrar jeitos de não ser descoberto, elucubrar estratégias e tramóias, às vezes bem escondido atrás do mato, às vezes às claras à frente do mato, só espiando a coisa desejada, o que aconteceu foi de amolecer o dente, de qualquer forma teria de acontecer, era de leite, tinha de amolecer, cair, nascer outro resistente.
A origem da expressão, se nasceu na Dinamarca, onde tudo fica podre logo, logo, se nasceu no Brasil, onde os jeitinhos são encontrados com a maior facilidade, num piscar de olhos, não interessa muito, dependendo deles merecem ser considerados coisas de gênio mesmo, merecem ser lembrados para sempre, ficarem nos anais da história. Se há suspeita de algo errado, de imediato a expressão surge nas línguas de trapo ou nas idôneas, e aí aparecem todas as espécies de explicações e justificativas, livros e mais livros poderiam ser escritos com elas, e jamais se chega a um consenso plausível e razoável. A questão mesma é o dente? Por que o dente do coelho? Não podiam ser as orelhas? Ou mesmo o focinho? Era só dizer: tem orelha de coelho nisso ou tem focinho de coelho nisto. Não me lembra de nenhum focinho de bicho haver entrado para a divinidade das expressões. Focinho de porco numa feijoada é simplesmente delicioso. As orelhas só as do jegue, assim mesmo para dizer que não abanam nem mesmo com um tornado, o jegue vai pairando nas asas do tornado, a orelha fica empinada. Alguma coisa de mui peculiar aconteceu com ele? Mas o quê? Não tenho a mínima noção. É até complicado estar pensando nisso nessa tarde de início de inverno, iniciou às duas e dezesseis da tarde, e isso me deixa bem feliz, porque é uma estação por que tenho um carinho mui especial, durmo melhor, como melhor, penso mais tranquilamente, sinto as coisas mais presentes e fortes nas pré-fundas de mim. Pensar nisso e não encontrar resposta deixam-me com a cabeça quente, saindo fumaça pelas narinas, pela boca, pelos ouvidos, até por outros buracos que desconheço.
Se a mulher sai às três horas da manhã para ir comprar pão na padaria, voltando às nove da manhã, quando o marido já saiu para o seu trabalho, correr atrás de todos os seus prejuízos, a vizinhança suspeita de alguma coisa, diz logo que há dente de coelho nisso de ela sair neste horário, levar seis horas para voltar, mesmo que a distância cubra o tempo gasto. Não sabendo que o marido só encontrou esse modo de ela não acordar falando no seu ouvido, criticando tudo, reclamando de tudo, chorando por tudo. Ele sai às oito, ela chega às nove, só se xavecar no ouvido do vazio e do tempo. E o dente do coelho se estica a deus-dará, todas as invenções e criações se fazem presentes, a mulher se torna uma vadia, fica vadiando pela estrada desde as três até às nove da manhã, só Deus sabendo o que ela faz nas moitas e atrás dos cupins. O marido é simplesmente um atoleimado, não vê a realidade, se a vê, finge que é bem normal, a realidade das coisas é a mais normal de todas elas.
Se acontece um crime, personalidade ou autoridade de renome foi assassinada, o tempo vai passando, vai passando, o assassino não é descoberto, o dente de coelho surge logo, dizem que a polícia está acobertando o assassino, que gente graúda está envolvida, se for realmente investigar muitas cabeças importantes vão rolar morro abaixo. Não vejo porque duvidar que a polícia esteja acobertando, polícia só se mete com os cidadãos de boa índole.
Se o vereador está saindo todas as noites, encontrando com os seus amigos e correligionários, comendo churrasco e bebendo uísque da melhor qualidade, logo, logo, a comunidade diz que há dente de coelho nisso, está gastando muito, é ele quem paga todas as despesas, o cofre público está se esvaziando. Não sabendo a comunidade que o vereador sofre de solidão crônica, e é pagando as despesas no restaurante para os amigos, que ele terá pessoas ao seu lado, que com elas poderá conversar à vontade e livremente, dar risadas e gargalhadas, contar piadas e dar sua versão dos acontecimentos e fatos, esse dinheiro que ele está gastando não é do cofre público, é dos porcos de sua fazenda que ele vende para os frigoríficos da capital, o que ganha mesmo como vereador é para sustentar a esposa com as suas vestes luxuosas e suas manias de creme para isto e aquilo, seus sais para isto e aquilo, suas compras de perfumes e jóias, essas à prestação. Ele próprio, o vereador, só tem dinheiro suficiente para comprar o seu cigarro diário, tomar um cafezinho e comer um pão de queijo todas as manhãs na Padaria Bel Pão, quando encontra com alguns conhecidos e trocam uns dedos de prosa, compra um jornalzinho que nunca lê, só para seguir o que todos os clientes fazem, um modo que encontra de os aproximar de si. E o dente de coelho morde a corrupção do vereador.
Se o Zé não comparece aos seus compromissos e responsabilidades, se não manda representantes, se não dá satisfações, a comunidade inteira diz que há dente de coelho nisto, alguma coisa explica a sua ausência. Mas ninguém percebe que o Zé é um homem Mané, só entende de dores, sofrimentos, doenças e remédios, e quando não, está na igreja rezando a todos os santos, Deus, Maria, Espírito Santo, Jesus Cristo, para que eles lhes dêem um descanso digno e honrado. Vida complicada! Ninguém respeita os seus limites, deveriam respeitar o seu maneísmo, a sua jacuíce, não sabe nem mesmo conversar direito, discursar nalgum palanque ou na tribuna muito menos, para que irá comparecer aos eventos, sejam políticos, sociais, será inevitavelmente vaiado, e apesar de tudo é homem sensível, sofre até com os sorrisos verdadeiros e reais, sente que tudo não passa de hipocrisia. E lá vem o dente de coelho morder as condutas e posturas anti-sociais do digníssimo político. Ouço dizer que algumas pessoas de renome e méritos, preocupados com essas picuinhas dele, já consultaram psiquiatras e psicólogos, só eles para explicarem o que mesmo sucede, alfim Freud ainda continua explicando tudo. O que eles disseram não me fora revelado, penso ter dente de coelho nisso, se me disserem lá vou eu satirizar de modo incisivo, coitado, merece poucochinho de comiseração.
Nessas picuinhas, assuntos de comadres à beira do rio, lavando roupas velhas e carcomidas pelo tempo, o que diria o coitado do coelho? Por que o seu dente está presente em todas elas? Pudesse, arrancaria o seu dente, ficaria “banguelo” só para não ser citado a todo instante com as mazelas da sociedade. Não pode. Quem é capaz de frear a língua do povo, quando algo está errado, quando há alguma coisa de podre no reino da Dinamarca? Ninguém. Deixem o seu dente em paz! Esqueçam que ele, o coelho, existe. Arrumem outro modo de expressar, de mostrar que algo de errado está acontecendo. Podem dizer por exemplo que há coelho atrás do mato ou há mato atrás do coelho, que quer dizer o mesmo, quer dizer que algo está errado, mas deixem o seu dente em paz. De tanto usarem o seu dente, chegará o momento que estará tão gasto que nada mais poderá comer, irá morrer de fome, atrás do mato, na maior das agonias e aflições.
Bem, se eu fosse o coelho, daria de presente o meu dente a todos os homens, e assim me livraria de todas as falas e dizeres a respeito das coisas suspeitas que aparecem, livrando-me de estar sempre envolvido, ficaria sem dente, teria de comer a minha cenoura como os velhos, sem dentes, o fazem. Imagino-me coelho banguelo comendo cenoura dura! Quê coisa interessante não seria! Às vezes, tiro as próteses e vou comer alguma coisa frente ao espelho, só para tirar sarro de minha cara. Enfiar-me-ia no mato e de modo algum sairia de lá, sobreviveria com o que ele poderia me oferecer, com a comida que poderia dar-me. Aí, ninguém mais diria haver dente de coelho nas coisas, diria simplesmente haver dente ganhado nas coisas dos homens, haverem coelhices ou coelhidade nas suspeitas de erros, enganos, corrupções. Até ficaria bastante lisonjeado e orgulhoso por me não esquecerem, haverem encontrado outros modos e estilos de dizer as coisas que não podem ser ditas de modo erudito e clássico, com uma linguagem de fazer cair o queixo de Camões ou de Machado de Assis.
Ontem mesmo é que fiquei sabendo disto de “há dente de coelho atrás disso” ou “tem dente de coelho aí”. Em verdade, nunca pensei que o coelho tivesse dente, e que o seu dente era mais que famoso, faz o maior sucesso no Brasil inteiro. Conhecia “tem mato atrás desse coelho”, “tem coelho atrás desse mato”. E estava assistindo a reprise de uma série antiga, se bem me lembra, série dos anos ´70, túnel do Tempo, o episódio era sobre o Cavalo de Tróia. Cheguei à cozinha para tomar um gole de café, estava na hora do intervalo, a esposa dissera que havia dente de coelho no fato de eu estar sem camisa, de shorts, numa noite tão fria, horas antes de o inverno iniciar, de ser oficialmente declarado. Achei bastante peculiar a expressão, embora a situação não fosse para dente de coelho, faz parte de minha índole amar expressões, remetem-me à criatividade popular, à imaginação fértil das pessoas, e mesmo à mineir-idade, se houverem expressões, não será necessário gastar palavras para esclarecer as idéias e sentimentos, críticas e encômios.




(**RIO DE JANEIRO**, 09 DE JANEIRO DE 2017)


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