*PATÉTICA APOTEOSE DOS DIVINOS PROSCRITOS** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


O espírito humano, à imitação da planta que floresce do modo mais esplendoroso entre os não-conformistas, não-alienistas, não-alienados e anticristos, sem-sensos e anti-ateus, alíás, onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro odor, deve seguir uma curva que o devolva ao seu ponto de partida, ao seu lugar de origem, ao seu habitat – de origens escalafobéticas e risíveis (que coisa, não?! É de se esconder a cabeça debaixo da terra ou para sempre olhar o chão!) E dizer que estamos em plena era da civilidade e modernidade! estamos os homens de todos os séculos com certeza entediados!...
No início, falo deste estado maravilhoso em que se encontram os divinos proscritos, onde o espírito se encontra, às vezes, lançado como que por uma graça especial, por uma dádiva mais que sublime; digo que estes mesmos divinos proscritos anseiam incessantemente à reanimação de suas esperanças e à sua elevação ao infinito; mostram um gosto frenético e alucinado, muito embora em suas mentes e imaginações estas palavras suscitem quase o mesmo sentido, a mesma lengalenga sem sensos, posturas, idiotices sem limites e fronteiras, burriquices sem precedentes na História, por todas as experiências prazerosas e sublimes, mesmo que perigosas, mesmo que em demasia ininteligíveis e portadoras de conseqüências as mais desastrosas; ao exaltarem suas personalidades, o caráter lídimo e puríssimo de condutas, suscitam por um instante aos seus próprios olhos o paraíso de segunda mão, objeto de todos os desejos, orgias, e digo, enfim, que este espírito arrojado trigueiro e elevado, sem o saber, até o inferno, confirma assim a sua grandeza original. Do jeito que as coisas vão, serei sim crucificado, e, nessa época sem fé, tornar-me-ei Deus, mais importante que o próprio e seu Filho. Não foi o Beatle John Lennon quem declarou: “Somos mais populares que Jesus Cristo!”.
Creio não ser necessário e nem conveniente transformar o espetáculo em um comércio que visa apenas o lucro e o conforto, fama e sucesso, imortalidade e eternidade, vender a alma para pagar as carícias embriagantes e a amizade das Parcas. Imagino um homem (poeta, filósofo, escritor, cristão), um anticristo, colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à sua volta as Musas de Rafael ou de Mantegna, para consolá-lo de seus longos e in-vernosos jejuns e preces assíduas, observam-no com seus mais doces olhares e úmidos lábios, os sorrisos mais iluminados. O divino Apolo, mestre em tudo saber, afaga e acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes, ritmos mais alucinantes, tons mais endiabrados e infernais. Abaixo dele, ao pé da montanha, nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos apátridas, simula os esgares da alegria e do prazer e solta urros provocados pelas dentadas do veneno.
Entristecido com tamanho espetáculo de luzes e palavras, gestos e insinuações, digo a mim próprio: “Estes infortunados que não jejuaram, nem oraram e que recusaram a redenção pelo trabalho, enfim o trabalho enobrece o homem, garante que os seus epitáfios sejam por todo sempre iluminado pela luz solar, com direito às recordações e lembranças dos longos discursos de autoridades e personalidades ao pé da cova, buscam submeter-se aos escárnios e humilhações de toda sorte como alguém se submete a um câncer, a uma AIDS ou à morte, com aquele impávido fatalismo sem revolta, em virtude do qual os russos, por exemplo, ainda hoje têm vantagem sobre nós, os ocidentais, no trato com a vida”.
Isto, como agora sou bem autêntico e ousado em afirmar, é digno de um grande trágico: quem, como todo artista, somente então chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si próprio e à sua arte como abaixo de si – ao rir de si mesmo.
Em face da velha senha mentirosa do ressentimento e da mágoa, a do privilégio da maioria, enfim é mais fácil um proscrito adquirir o seu leito de penas – penas sem tinta servem apenas para simular e dissimular a imortalidade medíocre e mesquinha, abanar o tédio insofismável da vanglória imbecil e idiota, sem méritos, honras, louvores, enfim; e no Pantheon, serão motivos de troça de Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos: “Ainda bem que não estamos mais no mundo, as coisas de lá se tornaram mesmo brincadeira, “escritores sem letras”, que absurdo!” -, diante da vontade de rejeição, preconceito, discriminação, de atraso e ocaso do homem, ecoou forte, nítida, simples e insistente como nunca dantes pensado e imaginado, a terrível e fascinante contra-senha do privilégio dos raros.
Eis, portanto, homens supostos, divinos proscritos, o espírito de minha escolha, chegado a esse grau de prazer e serenidade, onde sou levado a admirar-me a mim próprio. Toda contradição desaparece, toda polêmica se resolve com um aperto de mãos e três tapinhas nos ombros, como é sobremodo peculiar nos mineiros, todos os problemas filosóficos e teológicos tornam-se transparentes, ou pelo menos assim parece. Tudo é motivo de prazer, de júbilo, de ostentação. Tudo são razões de ostentar as importâncias, enfim são os únicos que grandes contribuições realizaram em nome da cultura (quem não acreditar é só se informar das medalhas de honra ao mérito recebidas, embora quem as concedeu tenha dito: “Aos cães, as medalhas”. Uma voz nele fala (infeliz! É a sua própria voz) e lhe diz: “Você agora tem o direito de se considerar superior à raça humana, a toda a humanidade; ninguém conhece ou poderia entender tudo o que você pensa e sente; seriam mesmo incapazes de apreciar a benevolência que lhe inspiram. Você é um rei que os passantes desconhecem, e que vive na solidão de sua convicção: mas que importa isso? Aliás, nada disso importa realmente. Você por acaso não possui este desprezo soberano que torna a alma tão humilde e boa, capaz de praticar as mais perfeitas misericórdias?”. “Sai pra lá, Satanás. Tais prazeres são dos verdadeiros, honestos, suas penas destilam à soleira das almas brancas de papel os ácidos à luz de pepinos descascados. Isso não é para nós, os que são imortais. Deus me livre!”, responde o outro torcendo os lábios e impostando a voz.
De quantas ações tolas e imbecis não está cheio o passo, que são verdadeiramente indignas deste rei do pensamento e que profanam sua dignidade real e ideal. Quantos homens encontraríamos no mundo tão hábeis e perspicazes para se julgarem, tão severos para se condenarem? Com a horrível lembrança absorta, dispersa, desta forma na contemplação de uma virtude ideal, de uma caridade ideal, de um gênio ideal, de uma divin-idade ideal, entrega-se candidamente à sua triunfante orgia espiritual. De fato, quando uma fé é mais útil, mais convincente, quando produz mais efeito que a hipocrisia consciente, mais instinto, a hipocrisia se torna logo inocente; primeiro princípio para compreender os grandes imortais, pena que seja imortalidade oportunística.
Agora, da contemplação de seus sonhos e desejos e de seus projetos de virtudes, decidiu-se pela sua aptidão prática à virtude; a energia ao mesmo tempo vigorosa, esplendorosa, resplendorosa, apaixonante com a qual ele abraça este fantasma de virtude parece-lhe prova mais do que cabível e suficiente, peremptória da energia viril necessária para a realização de seu espetáculo, de seu ideal. Confunde ele, com toda empáfia de sua personalidade, o sonho com a ação, com a autenticidade, e com sua imaginação aquecendo-se mais e mais diante do espetáculo encantador de sua própria natureza corrigida e idealizada, substituindo por esta imagem fascinante de si próprio, divino proscrito, o seu indivíduo real, tão pobre em vontade, tão rico em vaidade, termina por decretar sua apoteose nestes termos nítidos e simples que contêm para ele todo um mundo de abomináveis prazeres e contentamentos: “Sou agora o mais virtuoso dos homens”.
Logo de imediato este furacão de orgulho e empáfia se transforma em uma temperatura de êxtase tranqüilo, calmo, mudo, repousado, e a universalidade dos seres se apresenta colorida e como que iluminada por uma aurora ácida e sulfurosa.
Se uma ruminação selvagem, um grito rebelde, ardente, arrojar-se de seu peito com tal energia, um tal poder de projeção que, se as vontades, desejos, sonhos, e as crenças de um homem ébrio, tivesse uma virtude eficaz, esta ruminação, este grito revirariam os anjos disseminados nos caminhos do céu: “Sou um Deus”.
Qual é o filósofo francês que, para ridicularizar as modernas doutrinas alemãs, dizia: “Sou um deus que jantou mal”? Esta ironia, cinismo, sarcasmo não afligiria um espírito elevado em nível de um proscrito, e ele responderia com todo o carinho e ternura que sua alma fosse capaz de expressar e revelar: “É possível que tenha jantado mal, a costelinha de porco com maxixe não caiu bem no estômago, mas eu sou um Deus”.



(**RIO DE JANEIRO**, 03 DE JANEIRO DE 2017)


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