**CARNE X OSSOS... JOCOSO TREPIDAR MORDAZ & PICANTE** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Carne sem osso, caríssimo leitor, carne sem osso!
Alguns homens tremem as pernas, bambu ao vento não faria tanto, a natureza possui seus limites, só de imaginá-las sem ossos, aquela coisa mole descendo e subindo degraus de escada, ruas e avenidas, sentem-se angustiados, enojados, o que, em minha opinião, é um exagero, da cintura para cima há ossos, muitos ossos; não houvesse qualquer no corpo inteiro, aí sim, seria inteligível a angústia, nem tanto o nojo da moleza carnal.
Quem sabe a angústia não se manifeste devido às sensações que se re-velam na alma de ausência e deficiência, o que causa discriminações e preconceitos, e isto provoca dores e sofrimentos inestimáveis, mas sim por se sentirem des-encarnados, mortos-vivos no mundo, por mais que, metaforicamente, sejam encontrados às pencas por todos os cantos, recantos do mundo, as sensações, sentimentos vividos são de tremelicar e tremer as pré-fundas da alma e do espírito, são de envergar placas de ferro e aço.
Há um equívoco enorme de compreensão do termo “des-encarnado” – homem de letras que sou é meu dever esclarecer os sentidos das palavras: um favor àqueles que apreciam brilhar nas conversas em eventos sociais, impressionarem os interlocutores, especialmente as “gatas” que amam os homens cultos e intelectuais -, e como estes indivíduos, que tremem as pernas só de imaginá-las sem os ossos, não têm a curiosidade de consultar o dicionário, têm sarna só de tocá-lo com as pontas dos dedos, nada há que possa solucionar seus problemas psíquicos e de tremedeira. O termo... O sentido mesmo do fenômeno seria des-ossado, isto é, sem ossos, mas como este termo deixa orelhas atrás das pulgas, deixa matos atrás dos coelhos, aconselhável é pensar, sentir que estão des-encarnados, enfim é mais fácil, não causa sofrimentos e dores, não treme e nem tremelica ninguém, a vida segue seu itinerário.
Oh, Musas de Mantegna, Alcebíades, doai-me compreensão e entendimento, se não esquecendo vós aquela pitada de paciência, para quem, lendo num tablóide, sentada num banco de mármore no calcadão da praia, de ínício em Letras Garrafais, "SÁTIRA", logo abaixo do título no frontispício da página; terminando a leitura, de si para si diz com todas as letras em riste: "Belo artigo". Venhamos e convenhamos, o artigo, se se quiser matéria, é peculiar a revistas, jornais, tablóides, pasquins. Se lera antes "SÁTIRA", por que dizer ser artigo? Uma leitora sem ossos. Se não há ossos nela, como poderia re-conhecer, definir, conceituar o que estava escrito no jornal: sem ossos, a sátira é artigo, vice-versa. Ainda creio seja ela quem confunde "toucinho de ovelha com electricidade".
No século XIX, por volta da segunda metade, algum tempo antes, nos jornais cariocas sátiras eram escritas, estampadas nas páginas de jornais, simplesmente as sátiras de Machado de Assis. O Rio de Janeiro é o lugar de nascimento da sátira brasileira. E haver quem chame Sátira de Artigo. Mesmo naqueles tempos, o mais sem esclarecimento dos homens, os genuinamente sem quaisquer sensos, chamaria a Sátira de Artigo. Oh, Musas de Mantegna, Alcebíades, afaste de mim este cálice dos sem-noção, sem-esclarecimento! Senão semeai em mim as sementes da paciência!
Cá venhamos, des-encarnar quer dizer tirar (o espírito) da carne. E re-encarnado quer dizer outra vez metido, enfiado na carne. Convém notar, observar, vislumbrar, con-templar, e para finalizar esta elencação ridícula, ter consciência de que o cristianismo não aceita a re-encarnação, só a Doutrina Espírita.
Para que ossos? Qual a finalidade deles? A carne não tem autonomia, não é independente? Vive só se agarrada, pregada a eles? Ossos são inúteis, para nada servem. Pelo que me consta, e louco não estou, a carne tornou-se verbo, a bíblia não menciona os ossos neste processo de verbalização da carne, nem nas entre-linhas, além-linhas, isto está escrito. Se os ossos servissem de apoio, ter-se-iam tornado substantivos; a carne verbalizou-se, os ossos substantivaram-se, a coisa foi feita por inteiro; ler-se-ia na bíblia: “E a carne tornou-se verbo, os ossos, substantivos”. Assim, a menos que esteja enganado, os ossos não foram chamados à vida, para nada são.
A serventia deles só debaixo dos sete palmos, os vermes roeram a carne, saciaram a fome, a terra fica faminta, injustiça, tem direito ao seu quinhão, alimenta-se do tutano neles dentro, tornam-se cinza. Se a terra não se alimentasse, será que nasceria pés de homens nas sepulturas, homens nas galhas às pencas, as encalhadas ficariam felizes e realizadas, era só apanhá-los a pedradas, de vara curta, de vara longa, e levar para casa; no tutano deve haver algum princípio de vida. No plano da contingência, a carne tornou-se verbo, no da eternidade, comida de vermes. No plano da contingência, os ossos para nada servem, no da eternidade, comida da terra, isto para não dar pés de homens no cemitério, e a mulherada fracassada, frustrada não o assediar à cata de um homem da “árvore da eternidade”.
Para que os ossos de por baixo da carne no corpo? Carne sem ossos, vida sem ossos. Em minha opinião, seria interessante, esplendoroso, lindo ver só carne por todos os cantos do mundo, transar com uma mulher só de carne (seria até mais fácil para os cardíacos, não podem carregar peso, e na atualidade as posições se inverteram, a mulher aprecia ficar em cima, para não seguir a tradição, papai-e-mamãe caiu do galho), carregar um bebê só de carne.
Ilusões imergem.
Desvario passageiro, entre as mãos, reduzido ao destino que precede mal ao pescoço que o puxa sempre mais para baixo. Esgares sem palavras. Recorrem com um zelo arrebatado a carniça dialética e a vontade dos carrascos.
O eco significa bastante. Indica que a humanidade se renega e os homens não podem sair nem atingir os limites. O sussurro fornica todos os dons para cacarejar liberdades.
Obediência.
Obcecado por virtude mosta, explora os costumes e provérbios. Carinhos disparatados. Ternuras atabalhoadas. Respeito disperso. Espírito distante. Esforço vivo para envolver de dentro as reservas lançadas ao abstrato e à totalidade.
Olho um papel amassado no chão. Estou bem só. Virado para o futuro. Não dou por mim que enxugo mal os sonos no ouvido. Exergo mal ao longe. Miopia. Marcha infernal. Tripudio sobre a ignorância e a mediocridade.
É possível haver uma síntese entre a nossa consciência única e irredutível e a noite do não saber.
Paradoxo cruel. O que irrompe pelo sono. Ergue a perspectiva sem limite. Declaro-me obstinado contra o verbo.
Exijo os soberbos sentidos que fazem da ínclita arma o lançar ao sincero e voluptuoso.
Explicar. Rastejar. Seduzir. Segurar. Nada vivo e úmido. A existência, clímax onde tudo o que existe se processa.
Nesta revolução ou reforma corporal, se se quiser, que sugerirei a Deus no Juízo Final, fico pensando na mente, onde na minha cabeça de despirocado se encontram armazenados as idéias, pensamentos, inteligência: o osso é o invólucro dela, a caixa dela, para proteger das intempéries da natureza, da poluição envolvida de vírus de todas as qualidades e espécies, ninguém iria acreditar nos cientistas por suas idéias estarem com vírus; sem o osso da cabeça, teria de haver uma bolsa bem resistente para guardar o miolo, ou coisa do gênero; Deus é o artífice, criaria algo melhor que bolsa, eu estou apenas sugerindo. O inferno está cheio de boas intenções, o céu, para não ficar para trás, deveria estar cheio de boas sugestões, serei eu o primeiro, outros surgirão, em menos de cinqüenta anos estará também cheio delas.
Crescem sussurros murmúrios, ululando as vibrações de sangue nos olhos. Incêndios irrompem em fúrias.Pedras destroçadas invocam interferências nos corpos trêmulos. Gritos exultam esvoaçar de retinas em buscarem consolo nas letras exumadas.
Riso escuro de palpitar no seio dos móveis a dormência que começa a abrir, subir pela garganta.
A última ilustração da cova resguarda a incompreendida fealdade dos demônios.
Cinzas profanas pilham eiras debulhadas.
Viagem, vísceras, carnes, estilhaços de sangue. Ossos escorregam templos. Desejos. Ladrilham terras. Entre(águas) desconhecem dores e angústias.
Bate o silêncio com grandes tacadas de sinuca. Gárgula obscena contra pedras a ver o dia morrer. Mastigação de fadiga impregna, de sentido, o esgotamento. Encontro de cataratas ao aquém de descidas, aventuras. Tema de vida arregaça olhos de perspicácia nos infernos. Abro asas de repouso - postergam-se braços e mãos em curvas.
A essência, se se quiser, eidos (um termo bem “chic” para as conversas de salão) dos ossos jamais se revela dentro da carne, como suporte dela, ou para não deixar que tremelique à mercê dos ventos, mas fora; só na cabeça dos loucos e poetas sem estrofes, versos, que desejam a imortalidade sem participarem da carne e dos verbos das letras e do mundo, é que fica dentro. Meu Deus, isto é realmente muito triste e desconsolador, poeta sem carne, só ossos, e tendo a consciência absoluta de que serão cinzas apenas com a consumação da literatura.
Já des-ossei muitos pescoços, cabeças, costelas, quarto traseiro, dianteiro na infância, e todas as vezes que tomava da faca para fazê-lo, eu ficava indignado, não fossem os ossos, não teria tanto trabalho, assim que chegasse o boi no açougue, era só cortar a carne para os fregueses, o trabalho de balcão era mais interessante, relações com as pessoas sempre foram o meu fraco, sempre amei os homens, amor de paixão, vale sublinhar e ressaltar. À guisa de informação preciosa: no açougue, não se diz “desencarnar” o boi, usa-se des-ossar a carne ou destrinçar (separar a carne dos ossos), até mesmo des-carnar. Creio que foi por essa época que comecei a imaginar homens e animais sem ossos, os ossos só servem para dar trabalho, incomodar.
Feliz e realizada é a cobra, só carne, nada de osso, por menor que seja, arrasta-se pelo chão, terra, pedra, troncos e galhas de árvore. Desgraçada, a cachorrada; estaria sem o menu principal da vida. Só não entendo porque ela engole animais e homens, têm ossos, a digestão não deve ser agradável até se tornarem cinzas no estômago.
A verdade é que esse olho que se abre de quando em vez para fixar o espaço, ver as estrelas, a lua, parece traduzir alguma coisa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra coisa que não sei como diga, como expresse, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua humana!! Diz-se de uma paisagem que é melancólica, mas não se diz igual coisa de um cão.
Só deveriam engolir as cobras e o que mais não tiver ossos, mais inteligente, confortável. E dizem que a cobra é sábia – eu não concordo. Elas é que não sabem, se soubessem, não poderia eu dizer qual seria a reação delas, mas, no plano da contingência humana, o que mais há é “cobra” engolindo “cobra”, mas aí o termo se torna metafórico, quanto mais nos métiers da política, magistério, científico, intelectual, literário, sociológico, psicanalítico, etc., etc., um querendo ser superior ao outro, mais poderoso do que o outro, engolir o outro, sem tempo ou direito de um murmúrio de “pelo amor de Deus”, de “por favor, alguém me socorra”.
Em princípio, poder-se-ia dizer haver inteligência nestes homens, pois que idéias, conhecimento não têm o mínimo vestígio ósseo, a digestão deles é tranqüila, prazerosa. Em minha opinião, nada mais osso que eles: para alguém dizer “se eu fosse burro, não sofreria tanto”, é que a sabedoria é um osso duro de engolir.
A vida sem ossos é o sonho mais caro e precioso dos homens, só carne e verbo. Pode ser que Deus venha a acordar de sua mesmice da criação e nalgum século ou milênio vindouro decida vez por todas mudar as coisas, e a primeira sejam homens e mulheres só de carne. Já o disse, voltando a frisar com euforia e êxtase: no Juízo Final será a primeira coisa que sugerirei a Deus, o homem sem ossos, só carne. Serei lembrado por toda a eternidade como o arquiteto da carne sem osso e o primeiro a quem Deus ouviu uma sugestão.



(**RIO DE JANEIRO**, 05 DE JANEIRO DE 2017)


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