**SAGACIDADES E ARTIMANHAS D´UM PROVÁVEL PLEITO A VEREADOR** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/CONTO SATÍRICO: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!



Estou à cata de alguém para expor na Cadeira do Bistrô do Biriba aos olhos de todos os clientes, de por baixo das fuças de Biriba e garçons, inclusive dos ossos de costelinha de porco - recomendo este prato a quem quer ter inestimável prazer, passar a noite, mesmo dormindo, passando a língua nos lábios, para não se esquecer de volúpia tão plena de êxtase: costelinha de porco com quiabo, é de cair o queixo de tanta delícia, o melhor de lá - no prato ao lado, às línguas afiadas que dissecam a miúdo os comportamentos, atitudes e ações, hábitos e manias da pessoa, principalmente as gratuidades e arbitrariedades que cometem no quotidiano de nossa comunidade. Para quem não sabe, bistrô é um restaurante pequeno, mas aconchegante. Desde a sua inauguração, é de costume sempre que alguém pratica algum ato indevido, denigre a imagem de alguém moralmente, os clientes se reúnem para colocar sobre a mesa a sua vida pregressa nos mínimos detalhes, nas entrelinhas dizendo: “Como é que você foi capaz de achincalhar os comportamentos, atitudes e ações, jogar sua moral na sarjeta de fulano, se a sua vida está mais suja do que pau de puleiro?”. Se houvesse um historiador no bistrô nestas ocasiões, seria a grande oportunidade de escrever uma biografia não-autorizada. Tudo é dito sem o menor pejo.
Castro Salú não podia deixar de ser candidato a vereador, era o que muitos diziam a plenos pulmões. Um homem de seus merecimentos, de caráter íntegro, honesto, honrado, reto, justo - Diógenes, não teria apenas confirmado suas idéias, com a utilização de uma lanterna, de que em seu tempo não havia único homem fosse "honesto", iria encontrar um que superava e muito o seu desejo - não devia ficar à toa, passeando o triste fraque da modéstia pelas vielas, ruas, alamedas, avenidas da obscuridade, desde a aurora até o crepúsculo, quando retornava à sua casa no beco do Salú, jantava, sentava no tronco de madeira no portão e passava o tempo trocando dedos de casos folclóricos de nossa cidade. Eu, se fosse magricela como Castro Salú, era o que faria, candidatava-me a vereador nalguma eleição municipal, mas as minhas formas atléticas pedem evidentemente o cargo de prefeito; na prefeitura iria acabar os meus dias alegres Passei o cabo dos setenta.
É preciso uma plataforma de projetos, é preciso dizer aos eleitores o que irei fazer para o bem geral de todos e da comunidade, pelo menos de onde venho e para onde estou indo. Ora, eu não tenho a menor idéia, a mínima noção do que o município está precisando, as suas necessidades prioritárias, o que o povo espera de mim, as urgências dos empresários, nem políticas nem outras, nem amigos tenho senão os que se sentam comigo no botequim para tomarmos umas doses de cachaça até as oito horas quando nossas esposas, se não estivermos em casa, vão nos buscar, e no trajeto de lá até nossas casas a matraca de palavrões os mais diversos possíveis.
Afianço-lhe que não estou zombando de mim; é a minha especialidade zombar de tudo e de todos, mas nesta questão não o faço, digo-lhe a verdade nua e crua. Deixe-me, então, explicar-lhe o que estive conversando com Castro Salú à porta do Açougue Rocha, quando lá esteve ele para comprar picanha para um churrasco de aniversário de sua afilhada Gisele, inclusive convidando-me, mas não podia comparecer, pois viajaria na sexta-feira à noite para o retiro, minha filha chegaria de Belo Horizonte, queria descansar lá, só retornaria no domingo à noite. Não poderia dizer-lhe que, impreterível e irreversivelmente, não compareceria por me encontrar com tantas pessoas de tão lídimos valores, como os dele, pensaria e sentiria e pensaria de mim que estava no paraíso celestial, portanto já falecido.
Dizia-me ele sobre a distribuição de idéias.
Talvez eu não soubesse, por não haver refletido, por ninguém me haver dito, como é que se distribuem as idéias, antes dele e eu virmos ao mundo. Deus metia alguns milhares delas num grande vaso de porcelana, correspondentes às levas de almas que tinham de descer para a terra. Chegavam as almas; Ele atirava as idéias aos punhados; as mais ativas apanhavam maior número, as atoleimadas ficavam com um pouco mais de dúzia e meia, que se gasta em pouco tempo, de imediato; foi o que lhe sucedeu. Apanhara menos de dúzia e meia, em verdade quinze. Assim ele explicava o porquê de não entender porque as pessoas queriam tanto que se candidatasse a vereador, de todas as idéias que apanhara só lhe restavam três, guardava-as a sete chaves para uma eventualidade, não as iria gastar na eleição, mesmo que fossem aceites pelos eleitores, motivo de sua vitória, não teriam qualquer serventia no seu gabinete, no métier da política. Olhei-o de banda, dizendo-lhe que era justamente isto que precisava para ser eleito, não ter idéias, não as ter era meio caminho andado. Perguntei-lhe se não tinha lido as circulares eleitorais? Respondeu-me um tanto hesitante, medo de dizer que nada sabia da vida política, sabê-la era se declarar alienado, um homem sem consciência política nada é, que lera uma e outra. Verdade sim, era um homem que não trapaceava, não mentia, não era diplomata nem por conveniência, nem para mostrar suas finesses latentes.
Andava baldo ao naipe por nada ler, ou quase nada. Os jornais passam-lhe pelas mãos à toa, e quer ter idéias. Nada melhor para ter grandes, geniais idéias senão ler os nossos jornais, são excelentes, ótimos, maravilhosos. Nossa imprensa escrita irá ficar nos anais da história como as grandes produtoras de idéias. Há opiniões que ouço às vezes, e fico meio desconfiado, de onde poderia a cuja-dita pessoa tirar idéias para formação de suas opiniões, não seria dos jornais, da cabeça dela tampouco, de inteligência mais curta que pavio de ignorante. O que faço então para checar a procedência das idéias que ouvira? Corro às folhas da semana anterior, e lá dou com elas inteirinhas. Não saíram da cachola da cuja-dita pessoa, mas de onde os diretores das folhas as tiraram de suas cacholas também não foram, pois não enxergam um palmo diante do nariz. As circulares, se nem todas são originais, são geralmente escritas com facilidade pelas secretárias ou por amigos dos parlamentares, algumas com vigor, com brilho... Quem não sabe haver quem tenha uma equipe para escrever romances com suas idéias. Ele nem pega na pena única vez. Livros deles circulam por grandes editoras, livrarias. Umas falam de ficar parado, inerte, outras de andar um bom pedaço da estrada de terra e poeira, outras de correr sem olhar para trás, outras de andar para trás.
Balançou a cabeça em sinal afirmativo, perguntando o que haveria de escolher entre tantos alvitres. Talvez pudesse lhe dizer, se fosse algo supimpa, com efeito iria tomar para si, correria a algum presidente de partido, filiar-se-ia, concorreria às próximas eleições, quem sabe até fosse eleito. Sabia de minha inteligência. Respondi-lhe que só tinha um alvitre a escolher. Qual seria? Suspirou, virou os olhos, temi que comprometesse as retinas, lesasse os nervos óticos. Não se lembrava ele do digníssimo, nobríssimo Dr. Hernandez haver dito que muitíssimo conhecido dos seus amigos, da comunidade, julgava-se dispensado, isento de definir a sua individualidade política. Dera uma gargalhada estridente, creio que a comunidade do Bairro Esperança tenha ouvido, dizendo-me que o poupasse de asnices, Dr. Hernandez era um perfeito imbecil de galocha, chapéu de coco, bengala e capote. Não fora por menos que os clientes do Bistrô do Biriba lavaram-lhe a alma, enquanto degustavam, ao sabor de vinho francês, lasanha.
Tinha ele amigos. Nossa, era muitíssimo agradecido a Deus por ter tantos amigos, homens de condutas e posturas idôneas, homens de caráter, personalidade, homens de probidade, em qualquer dificuldade era só procurar-lhes que seriam atendidos. Dificílimo encontrar amigos deste naipe em nossa atualidade, normalmente são falsos, hipócritas, vivem de aparências. Era ele, Castro Salú, um homem bem privilegiado. Tinha sim de agradecer a Deus por isto. Aí estava a questão, disse-lhe, sorrindo. Tinha de botar para fora a morrinha da modéstia. Não tinha idéias para se candidatar a vereador, mas amigos sinceros e leais não lhe faltavam. Eu próprio tinha ouvido inúmeras coisas a respeito dele, que até me admirara, era verdade. Vi dois advogados às tapas e murros à porta do Fórum por causa dele. Um dos advogados dissera que vira Castro Salú de fraque cor de burro fugido, o outro que também o vira, mas que a cor de seu fraque não era de burro fugido, era cor de vinho. O primeiro teimou, o segundo não cedeu, até que um deles chamou ao outro pedaço d´asno; o outro retorquiu-lhe, não lhe disse nada, engalfinharam-se e esmurraram-se à beça. Nunca me benzi com um sacrifício deste naipe. Deixasse ele, Castro Salú, de teima, amigos não lhe faltavam.
Colocou a mão direita cobrindo a boca, naquele gesto de quem pensa, reflete, avalia os prós e os contras. Por alguns segundos; enquanto ele o fazia, olhei um vereador que passava carregando uma pasta, de terno e gravata, camisa alaranjada, paletó e calça verde, gravata cor-de-rosa cheguei, pensando comigo que lá ia ao gabinete da câmara o grande palhaço. Perguntou-me, então, e depois, como seria. Saberia eu dizer alguma coisa. Era muito simples. Era o que disse Dr. Hernandez. Conhecido dos amigos, da comunidade, que necessidade teria ele de se definir? Era o mesmo que dar um chá das cinco aos amigos ou um baile no clube para a comunidade, e distribuir à entrada o seu retrato em fotografia. Dizer que desejava ser vereador na próxima eleição, e que contaria com todos, contaria com o voto deles. “É só isso?”, perguntou-me em tom irônico, como se estivesse me dizendo ser ele um perfeito atoleimado, não havia pensado nisso. Era, então, só isso.
Sim, era só isso. Eles o conheciam, mas era mister visitá-los. A maioria dos amigos, a grande maioria das pessoas não votam sem visita. O eleitor tem três faces; estava na segunda, em que a cédula era considerada um chapéu que ele não tirava sem o outro tirar primeiro o seu chapéu de verdade. Se houvesse alguma intimidade, se estava livre de cerimônias, ainda que podia dizer em tom de brincadeira, um arzinho de cínico – as pessoas gostam disso: “Ò Chamone, tire o chapéu! Fique à vontade!”. Mas o dele haveria de na mão já estar.
Animou-se. Rindo, dissera que se fosse apenas isso estaria com certeza eleito. Era preciso orientar e bem Castro Salú, pois que com a sua tão publicamente conhecida e reconhecida modéstia, normalmente homens modestos como ele trocam os “r” pela língua, e tudo está perdido.
Ele, Castro Salú, não deveria se definir, os amigos e as pessoas o conheciam. Procurasse-os. Quando o filhinho de algum dos amigos ou das pessoas fossem à sala de visita, estendesse-lhe a mão, perguntasse-lhe como ia nos estudos, se estava tirando notas boas, assentasse-o na perna, contasse-lhe alguma coisa de seu tempo de estudante, por exemplo, que numa peça de teatro sobre Tiradentes esquecera a fala e fora objeto de chacota do público, risos de todas as partes. Se o marido não estiver em casa, perguntasse por ele, dissesse sua presença estava faltando, um homem de boa prosa, de inteligência, não podia faltar em tempo algum numa sala de visita. Afirmasse que tinha estado para lá ir, mas havia sempre cositas por fazer... Elogiasse os móveis da casa, os quadros da parede, as almofadas da poltrona. Se a mulher não estivesse em casa, não oferecesse charuto, que poderia ser entendido como corrupção, mas aceitasse tudo que o marido oferecesse, mesmo uma ferradura para colocar dependurada atrás da porta. Se lhe oferecesse puxa-puxa, aceitasse o doce, comesse como manda o figurino sempre puxando.
Ia me esquecendo de um conselho dos mais supimpas. Levasse ao visitado um soneto decorado de Bocage ou do Boca-do-inferno, normalmente as pessoas mais cultas apreciam bastante estes dois poetas. Se o amigo, empolado com a declamação dele, resolvesse de improviso compor um poema, elogiasse os versos, a declamação, dissesse até que deveria escrever outros e publicar para que todos conhecessem o grande talento que tem. Definição é que não podia dizer, visto que eram seus amigos. O que importava mesmo, de grande importância, era ir de encontro do sentimento do eleitor, isto é, que ele lhe fizesse a graça de votar. Não escolhesse um representante dos seus interesses.
Ficamos um bom tempo conversando à porta do Açougue Rocha, orientei-lhe de todos os modos que me eram possíveis naquele momento, havia outros, mas eu precisava de lhes lembrar, tomar nota num pedaço de papel. Os que pude me lembrar eram já suficientes para uma excelente vitória, com efeito seria eleito. Desculpasse-me ele, mas precisava ir embora, tinha de passar no banco para sacar certa quantia para pagar as dívidas. Se tivesse mais alguma coisa para lhe dizer, tomaria a liberdade de ir ao beco do Salú para uma visitinha, quando podíamos até tomar um aperitivo, ele que tanto gostava.
- Castro Salú, vai, homem, e volta-me vereador.
- Muito obrigado mesmo. Senti força.
- É só isso que precisa.
- Vamos comemorar com um banquete no Bistrô do Biriba, após a minha vitória. Será uma noite das arábias.



(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE JANEIRO DE 2017)


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