**OBSERVÂNCIA INTENSA, PROFUNDA E COMPULSIVA DAS OBSESSÕES CONVERGE IMPRETERIVELMENTE À METAFÍSICA DO SABER** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!



Quem tem o nariz grande, pontiagudo, possui um dos grandes privilégios da vida, prazer de contemplá-lo, para passar o tempo, encher linguiça da ociosidade, enquanto nada tem para fazer, está desempregado, quando estiver angustiado ou entristecido com a vida, revoltado com a roda-viva do mesmo e do trivial, ressentido com as desgraças, sinas, sagas, destino, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns ao outros, a raça humana não chegaria a durar dois séculos: esvaeceria com as primeiras tribos. A questão não é tanto essa: são os olhos, de tanto contemplar o nariz ficariam vesgos ou coisa semelhante. Olhos fitos na ponta do nariz são o mesmo que idéia fixa. Chegará um tempo que nada mais verão – creio que por esta razão das mais inestimáveis e inconcebíveis os olhos não fitam outros olhos, desconhece-os, a raça humana continua sua trajetória só Deus sabendo o destino que escolhera.
Permaneço perdido de pasmo, estupidificação, não tendo já qualquer consciência de mim, senão pelo bater das artérias, som de música executada na emissora de rádio, conversa das pessoas. O solo, de por baixo de meus pés, é mais movediço que uma onda, e os valados parecem-me imensas vagas escuras, num cachoar contínuo. Tudo quanto tenho na cabeça de reminiscências, de idéias, e mesmo de palavras vazias e insossas – não tenho qualquer noção de onde podem estar, mas nunca acreditei dentro da massa cefálica e veias tudo estaria num incômodo sem limites, como sempre me sinto, quando sinto as idéias, pensamentos..., quando sinto que a cabeça pensa: para mim a massa cefálica é para encher a cabeça, seria ininteligível sentir dentro dela nada haver, com exceção de um vazio insofismável, a cabeça ser oca – se me escapa de uma vez, como as mil peças de um fogo de artifício.
Quando o homem finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, do outro que chora de solidão, arranca tufos de cabelo por causa de dívidas, do cachorro que bolina a cadela no meio da rua, da jovenzinha que se estrebucha na cama com cólica menstrual, do jovem que estuda física ou balanceamento de fórmulas químicas no banco da praça, embeleza-se no invisível, cheira o infinito até ser cheirado por ele, apreende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter é universal.
O mais singular é que, se a idéia acaba, como agora que não sei o mais o que fazer com a ponta do nariz, não vejo como dar continuidade ao cinismo de viés que me veio antes de tomar a pena, dou-lhe corda, para que ela não deixe a pena olhando para a linha da página, a esfera girando de ansiedade, o êxtase da tinta passando por ela foi interrompido, por triz não chegou ao clímax, e eu louco por saber que gastei mais uma caneta. Dou-lhe corda para poder esquecer-me das coisas do mundo, ver-me distante da vida e dos homens, é isto que sinto quando escrevo nesta agenda, por minutos e minutos de fio a pavio. Invenções, criações, recriações há, que se transformam ou acabam – inventei a contemplação da ponta do nariz, esperando recriar um dito que ouvi muito na infância: “quem mente muito cresce o nariz”, mas não estou sabendo recriar para obter o cinismo de viés que veio junto com a idéia. A corda é definitiva e perpétua. Creio que estou realizando o sarcasmo de sorrelfa e inverso.
Curvo a cabeça com um gesto meigo, cheio de angústia, abrindo continuamente os lábios, como se sentisse na língua um calor sem limites, fosse a minha língua de fogo, a cada palavra pronunciada uma baforada de chamas. Aquilo de jamais haver aceite idéias, reminiscências, pensamentos dentro da cabeça, deixa-me em suspenso no tridente da razão. Sentimentos, emoções, nunca questionei, habitam o coração, o lugar é próprio para eles, lugar de sensibilidade, mas como o coração pode julgar, censurar a razão que habita a cabeça, é coisa que não engulo a seco, como a razão pode debochar e ironizar o coração é algo que não concebo, é preciso haver alguma semelhança entre eles, algumas características deveriam ser semelhantes para ser possível a adversidade. Sou acometido de tão súbita náusea, que mal tenho tempo de lançar mão do lenço de cetim, presente de um amigo por estar escorrendo muito na época, limpando no punho da camisa, que tenho de por baixo do travesseiro. Melhor mesmo é não pensar na cabeça da razão, na razão da cabeça, se é que se encontra algum senso em uma delas, das emoções e sentimentos no coração, no coração das emoções e sentimentos. Posso, assim, continuar a registar nas chamas de meu pergaminho de dúvidas e questionamentos infernais.
Analiso-me, curiosamente, para ver se sofro ou não. Mas não! Por enquanto, nada. Ouço o bater do pêndulo, o crepitar do lume. Sonho haver terminado com todas as diferenças e tensões entre o bem e o mal, o mal é uma vingança que me habitou desde os primórdios do mundo e dos homens, enfim sempre fui rebelde, um gênio difícil de se lidar com ele, fissurado com o poder, o que resultou ser jogado para escanteio, ser condenado à solidão, ser posto à margem das relações humanas. Sonho haver exterminado com todas as baixezas e inumeráveis ansiedades que me torturam. Já não odeio ninguém, já não desejo que os homens vão para o inferno, curta as chamas ardentes por sempre: uma confusão de crepúsculo empana-me o pensamento e, de todos os ruídos da terra, gemidos, gritos, sussurros e murmúrios dos homens, em suas agonias, desesperos, angústias e medos, não ouço senão o intermitente lamento do meu pobre coração, como o último eco de sinfonia longínqua, de harpas e cítaras milenares o som do silêncio.
O meu olhar, mais cortante que o bisturi penetra até a alma e desarticula todas as verdades através dos conceitos do bem e do eterno, que os homens insistem em defender de unhas e dentes, embora seus instintos e natureza mostrem-lhes que são quimeras, jamais serão capazes de sair fora, colocar-se à margem.
As fantasias tumultuam-se cá dentro, vêem umas sobre outras, à semelhança das beatas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora, creio que atraído pela beleza dessa manhã de verão, sol quente de cozinhar miolos, à beira da exaustão de tanto querer comungar as perdas e ganhos da vida, nuvens brancas e azuis espalhadas no celeste dos horizontes longínquos, boa ocasião para se espairecer – e bateu asas em direção a uma das coisas mais nojentas que tive oportunidade de presenciar.
A cada maníaco a sua peculiar loucura, a cada louco a sui generis mania, assim o homem está revelado ao mundo. Conheço várias manias ou loucuras peculiares. Genésio, guariteiro da estrada de ferro na passagem da Afonso Pena, andava dez passos e puxava a perna direita da calça - levei uns trinta dias para me conscientizar de que eram mesmo dez passos, a puxada na perna da calça; parava, contava. Eram mesmo dez passos. Depois de alguns meses, contei para ver se havia diminuído ou aumentado o número de passos: eram mesmo dez passos. A vida inteira puxou-a, até que a morte veio puxá-lo para si na corda amarrada na galha de mangueira de seu quintal depois do primeiro canto do galo. Gustavo Ferreira, alcoólatra desde os quinze anos de idade, enquanto tomava suas cachaças fazia cigarros de tocos de cigarro que guardava no maço, era a sua distração na mesa dos botequins. Fábio Matoso cofiava o bigode espesso o dia inteiro, a mão esquerda não tinha ocupação outra senão esta. Dizem que morreu no hospital, vítima de câncer no estômago, cofiando o bigode.
Não terminaria nunca de citar as manias dos loucos, os loucos maníacos, mas nenhum me provocou tanto nojo. Não teria nojo de quem puxa a perna da calça depois de alguns passos; não teria nojo de quem cofia o bigode, não teria nojo de alguém mais do que reconhecido por falar só asnices, como um político de renome por nada haver feito pela comunidade. Não senti prazeres inomináveis observando-os, mas me diverti bastante, estava cansado do mesmo em todas as situações e circunstâncias da vida e da sociedade. Encontrei isso de observar os loucos e as suas manias, as manias e seus loucos respectivos.
Clibas me deu nojo e muito nojo. Estava sentado no meio-fio de uma loja de discos, ouvindo músicas, na calçada de frente, mesas espelhadas, alguns clientes tomando cerveja. Eram quatro e meia da tarde. Numa das mesas, vi um homem de bigode espesso, cabelos lisos, cortados à moda tradicional, olhos fincados nas órbitas, testa grande, trajes razoáveis, o primeiro botão da camisa desabotoado, peito cabeludo, cutucando o nariz com o dedo indicador da mão esquerda. Tirou um catarro, amassou-o com os dedos indicador e polegar, levá-lo à boca, mastigando como se chiclete fosse. Tive um acesso de vômito, só acesso, havia almoçado às onze e meia da manhã, nada havia no estômago.
Se ia à porta do botequim do Almir, descendo que ia a avenida Dom Pedro II, voltava à Praça Benedito Valadares, sentava no banco e ficava pensando por que rua passar para chegar ao meu destino, ou atravessava a r+ua, virava a Zuzu Angel, descia a rua Levindo Augusto Pereira, virava a esquerda, subia a Joaquim Felício, mas não passava nem de longe por Clibas.
Não sei se ele já morreu, não vejo nos seus pontos, botequim do Almir, botequim frente ao Hotel Bandeirante, na banca do camelô, esquina de Dom Pedro II e Zuzu Angel. Quem sabe tenha morrido, mastigando bolinha de catarro.
Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu cinismo do nariz é lindo, porque exprime um justo escrúpulo, o de olhar, contemplar, observar somente a minha língua, uma particular mania que me habita e de que me sinto indivíduo e orgulhoso: não mentir, criar, recriar, inventar para que não cresça e seja, sem pôr nem colocar, um verdadeiro tamanduá. Tamanduo a língua nos narizes, mas nos narizes deixo sempre a idéia fixa e compulsiva de cheirar as manias humanas para justificar as metafísicas do não.



(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE JANEIRO DE 2017)


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