**TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO** - Manoel Ferreira


Post-Scriptum:

Ainda esta semana apresentei o texto que amo de paixão, a menina de meus olhos, ONDE A FRALDA DA MONTANHA SE BANHA NAS ONDAS. Referi-me aos de que gosto em demasia. Neste texto referido acima, não apresento o de que mais gosto em demasia. TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO É O TEXTO DE QUE MAIS GOSTO. Para mim, faltou algo nele para adquirir o meu amor de paixão.
Tenho muito carinho, ternura, amor por este texto. Na pintura literária, que tento esboçar, o que seria atrás da tela do pintor? Fiz a viagem pela eternidade, questionando presente, passado, vir-a-ser. Foi inspirado na choupana que o filósofo Heidegger morava na Floresta Negra, Alemanha, lá tendo escrito O SER E O TEMPO. Faltou um detalhe da filosofia heideggeriana. Por isto, não foi incluso com o outro como sendo os dois a que amo apaixonadamente. Mas  TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO é o de que mais gosto dentre todos já escritos.

Manoel Ferreira Neto.

A cena é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de qualquer cidade, seja ela agradável de se viver, seja como a maioria, um inferninho com todas as suas letras. Não é um vale muito grande, apenas três quilômetros de extensão e dois quartos de quilômetro de largura. Sua principal característica é que todas as famílias ali residentes formam uma comunidade familiar, dessas que todos conhecemos e são mais ou menos interessantes. As montanhas são montanhas reais, com aproximadamente dois a três mil pés de altura, e a choupana é uma verdadeira choupana, não (como a de um autor de imaginação fértil) uma choupana com garagem para dois carros de passeio. Deixemos que ela seja uma choupana azul, recoberta de trepadeiras floridas, assim escolhidas por ter uma sucessão de flores em suas paredes, que se incrustam pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono – começando pelas rosas de maio e terminando com jasmins. Façamos, contudo, que não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do mais severo e radical. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da tranqüilidade. E fico sobremaneira surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e considerarem motivo de exaltação e júbilo, de alegria e excitação, quando o inverso se vai, ou, quando estiver se aproximando, esperar que não seja tão severo, apenas um friozinho agradável para despertar um sono mais tranqüilo, a alimentação mais saudável e gostosa. Eu, ao revés disso, peço todos os anos que caia geada, tempestades que os céus possam nos oferecer. Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e satisfação de uma lareira no inverno, velas às cinco horas da tarde, acompanhadas de um chá com pães de queijo, quentes tapetes, uma bela mão para servi-lo, janelas fechadas, as cortinas caindo em amplos drapeados sobre o chão, enquanto o vento e a chuva estão enfurecidos lá fora...
A vida passada misturou-se-me com a futura – há uma conversa múltipla e ambígua, e qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a minha voz. E houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito mais extensa, tão extensa que tudo atrás fica lendário. Lendário?! É um termo estúpido).
Todos estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa fazenda situada no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em regiões altas. É evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os sorvetes tomados por uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem produzidas: existem frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me dou muito bem com a chuva, desde que chova a cântaros, pois alguma parte de minha natureza faz com que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me enfastiado, uma ojeriza sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado: já que serei obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão, velas e muitos outros artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo menos que seja um bom inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos, ou um russo, um paulistano, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade de suas orelhas. Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo saborear plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São Pedro – a noite de São Pedro é a mais longa do ano – e o tempo começa a degenerar a caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado, por densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal, assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.
Não há qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça, sentir-me solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas. Acalmo-me, bebo um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a dominar as emoções. Sento-me por um segundo, olho ao redor, a serra das águias através da janela, expulso a nostalgia, que já não tem direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a uma, semeio música entre elas. Com a terra diamantinense grudada à sola dos pés, eu, o rebelde que se recusa a ser reduzido à condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos e, depois de tudo, contemplo do alto, as serras, que conheço desde o chão até os menores detalhes. Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se pudesse tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o olhar repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que na verdade são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença ou a dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem necessitado. Aqui, ignoro a própria santidade. Minha felicidade é tão simples. Não sofro muito com minha condição.
Posso imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder de vista, um jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a felicidade seja constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem orgulho de si mesmos, os que se ocupam em perseverar no melhor de si.
Paro de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e depois fecho. O papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de incenso, que queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge enviar-me para bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar novamente os dias iluminados da vida, é para melhor poder cobrir-me de terra e trevas.
Mas agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei um pintor e lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os pintores não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira gastas pelo passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite de inverno, os serviços do pintor serão necessários para o interior da choupana.


Manoel Ferreira Neto.

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