VEREDAS E CONTRAMÃOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO ###


EPÍGRAFE


As veredas não são herméticas, complicadas, as contramãos que advertem não mergulhar nelas, mergulhar nos seus cofres de perspectivas.(O GURU)

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O vento frio, friozinho ameno, suave, penetra pelas frinchas da pequena janela do pequeno banheiro ao lado da sala de estar, do quarto de dormir, que se encontra por fazer – desde a manhã? ou me deitei, mas, não conseguindo conciliar o sono, levantei-me, fui cuidar de alguns afazeres prioritários? Não me lembra – coisa tão simples não me lembrar, alfim o que estaria acontecendo comigo? Se é hora de tomar banho, fecho-a, é movimento inerente à vontade, é instantâneo, antes de abrir a torneira do chuveiro. Terminando, não abro, esqueceu-me havê-la aberto, esqueceu-me até de sua existência.

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Mantenho-me um instante imóvel junto à porta, con-templando o armário que fica defronte, nenhuma imagem no espelho senão da parede – pela manhã, após o banho, olhei a minha imagem, não tenho palavras para definir, descrever as sensações e sentimentos que me perpassaram o íntimo, mais ou menos como se me deparasse com a realidade de que estou envelhecendo, envelhecer dói bastante, apesar de o mundo estar de ponta cabeça, o caos é, viver é delicioso – a cada dia que passa, passo a passo, aproximo-me da sepultura, re-tornarei ao pó, e nada restará de mim, nem o que deixei de mim no mundo como testemunho de que estive nele, fui no mundo -, da vida e de mim muito pouco sei, por mais tempo de vida possa ter será ainda pouco para me conhecer, eu que sempre sonhei em ter-me nas mãos, conhecer-me por inteiro, saber o mais íntimo que me perpassa. Fantasias, quimeras, ilusões. “O que fiz de minha vida nestes longos anos?”, eis a pergunta que fiz em voz alta para a própria imagem ouvir, quem sabe numa outra oportunidade a resposta tivesse na ponta da língua. Talvez não respondesse, deixasse por minha conta des-cobri-la, sabê-la. Creio o que me incumbe patentear está sendo feito, mister refletir sobre a vazio no crepúsculo.

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Que venho buscar aqui? Ou não é aqui que algo venho buscar? Seja no quarto de dormir. Ou nada venho buscar? Não estivesse ou esteja interessado em coisa alguma? Andava pela casa sem o que fazer, pensando com esmero na máxima latina “Verberat aquam donec mollis dura silex punctatis”, que me surgira, enquanto tomava um gole de café, amargo e frio, assim sinto os prazeres desta bebida tão singela, creio até fora para preencher o vazio de pensamentos, eram só sentimentos em mim, e isto me deixava suspenso entre a vida e o que há-de vir. Acendi um cigarro, permanecendo encostado na pia da cozinha, olhando através da janela alguém que varria a calçada de sua residência do outro lado da rua. Ouvira três vezes consecutivas Blowin´ in the Wind, Bob Dylan, que sempre cantei em momentos de angústias, tristezas, medos, acreditando que me daria esperanças de outras realidades, e que, com efeito, proporcionaram-me passos adiante, novos encontros, novas realidades, novas esperanças. Não fora apenas um paliativo, fora uma realidade. Surgiu-me uma pergunta bem nítida em minha mente: “Que estrela irá brilhar intensamente para mostrar as veredas do caminho do campo e ninguém se perca andando a esmo?”. Jamais havia feito qualquer pergunta neste estilo e linguagem, inspirado nesta música, nos inúmeros momentos de estados de alma negativos. O que fiz foi tentá-la entender, compreender? Foi deixá-la viva em mim. Deixei a pergunta suspensa no tempo, saí da cozinha, dirigindo-me à sala de estar, encostando à porta do banheiro. Se fosse para ser res-pondida, o tempo iria fazê-lo; se fosse para continuar como pergunta, questionamento, indagação, o tempo iria fazê-lo. De qualquer modo, seria o tempo a cuidar disso, tentativa outra dar-me-ia com os burros nágua, estaria num beco sem saída. Havia querido encontrar algo e estaria no banheiro? Buscava algo? Não seria olhar a minha imagem refletida no espelho do armário como o fizera pela manhã, após o banho? Estava despido. Esperava ansioso pela resposta do que foi que fiz de minha vida. Por não ser gordo, a barriga não estava flácida, as pernas finas. Se pudesse retornar ao tempo, todas as coisas seriam motivos para torná-las realidade, para ser.

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Dera para ter desses esquecimentos ultimamente. Perco-me entre duas palavras de uma conversa ou me esqueço do objeto que procuro a meio do caminho, esquecem-me palavras que devo usar para esclarecer o que quero dizer ou definir as minhas intenções, fundamentar as minhas idéias, fico perdido no meio do silêncio inevitável, olhando assustado em todas as direções, para todos os lados, nó górdio na garganta, o peito confrangido. Fico, como agora, procurando inutilmente lembrar-me do motivo ou da frase que se perdera, atônito, os olhos fixos no vácuo, quase insensível às coisas que se des-enrolam em torno.

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Que venho, meu Deus do céu, que venho mesmo fazer aqui no banheiro? Nenhuma necessidade fisiológica se me apresenta, a minha hora de tomar banho é às seis da manhã, assim que acordo, tirar o resto de sono do corpo, sentir-me animado para o dia, são agora cinco da tarde. Às vezes, pergunto-me a razão de ser no crepúsculo que os sentimentos da vida me tomam por inteiro. E quando não o faço, o dia me é insuportável, tudo se resume num tédio e fastio sem precedentes. Quem sabe não tenha vindo ao quarto para dormir? Durmo todas as tardes, não importando o horário, sempre depois do almoço, almocei às três e meia. O que comi? Penso haver sido dois bifes bem acebolados, do jeito que aprecio, arroz, duas colheres de quiabo, quanto mais baboso mais gosto, duas colheres de jiló, quanto mais amargo mais sinto prazeres. Há quem ferva ambos até perderem a baba e o amargo, são aborrecidinhos. Não sei nem quando estou com sono? Esqueceram-me as manifestações dele? Não acredito. Durmo até às nove da noite, se não assisto a algum filme na televisão, ouço músicas no meu escritório, lendo algum livro. Vou dormir outra vez por volta da meia-noite, uma da manhã. Acordo três vezes para vir ao banheiro, sempre nos mesmos horários. Até me assusto com estas precisões da madrugada, não sou homem metódico com as minhas coisas. São as coisas do corpo.

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Não vai mesmo adiantar ficar aqui encostado ao portal do banheiro tentando lembrar-me o que mesmo viera aqui fazer. Dizem, nestas circunstâncias, o melhor é voltar ao lugar em que antes estivera ou a fazer o que antes fazia, a lembrança volta num piscar de olhos. Comprovei isto inúmeras vezes. Não me lembra antes haver desejado fazer alguma coisa, procurar algo. Voltar é coisa sem qualquer sentido.

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Saio da porta do banheiro, apanho um cigarro sobre a mesa, acendo. Olho ao redor. Todas as coisas nos seus devidos lugares, o incólume mesmo. Talvez seja o mesmo o verdadeiro responsável por meus esquecimentos. Se acender a luz, a sala está um pouco escura, está chovendo, o mesmo brilhará com os raios de luz, meus olhos se sentirão irritados, no peito os sentimentos e sensações de aborrecimento se a-nunciarão vivos e presentes. Há um espírito maligno em mim que ama "ficar de sanacagem", está ele dizendo que estou procurando o mesmo, quero ter conversa, diálogo com ele. Fique a sala escura! Para que me serviria, se estivesse iluminada? Para nada.

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Algumas vezes, abrindo os olhos na escuridão do meu quarto de dormir, ouço restos de frases que deveria haver concluído e não fiz por não haver sentido utilidade alguma no que estava a dizer ou a pensar, ou não encontrei palavras adequadas para definir as minhas intenções, fundamentar as idéias; pedaços de conversas que não se ligam, que a distância torna singularmente estranhos. Depois adormeço de novo e sinto a tranquilidade derramar-se no meu corpo como um bálsamo.

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Numa tarde chuvosa, como esta de hoje e agora, acordara com barulho surdo de um martelo que batia, ouvira também o choro de uma criança, os mesmos barulhos aconteciam na casa vizinha todos os dias. Aos poucos acostumei-me, aquilo iria mesmo demorar, enquanto a criança chorasse o pai continuaria martelando, enquanto o pai martelasse, a criança continuaria chorando, até que a mãe conseguisse fazer os dois pararem. Se o pai começa a martelar, a criança começa a chorar, vice-versa. Fechei os olhos e readormeci devagar, sentindo que tudo se confundia – restos de vida exterior com fragmentos de sonhos, frases que se diluem, idéias que se esvaecem, sentimentos que se efemerizam, sem se completarem e que aos passos de bicho preguiça causam angústias, agonias, desesperos que demoram na garganta como o calor de sede prolongada, perpassam na medula como o frio de fome secular.

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Tenho tempo, muito tempo! Que tudo lá fora se acabe primeiro! A chuva cerrada, miudinha, que cai alimentada pelo vento cortante que sopra. Tento distinguir algum rumor que venha da sala. O silêncio causa-me vago terror; re-vejo sem qualquer razão, até me admiro, a massa das águas que rolam nos fundos da casa. Estranho que não ouça o rumor do rio, as últimas chuvas devem tê-lo engrossado. Amigo-poeta é que passara a infância à sua beira, e hoje escreve-lhe versos e estrofes românticos, sobremodo piegas, mas têm suas graças, glorificando sua presença, agradecendo-lhe os sentimentos e emoções que lhe habitam as entranhas. Cerrando os olhos, sinto que novas recordações vêm ao meu pensamento, são recordações de ilusões perdidas, são lembranças de sonhos que desejara fossem verbos na travessia dos desejos e do tempo. Não escrevo versos nem estrofes às recordações e às lembranças, não vejo qualquer sentido nesta prática poética.

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Agradava-me, na infância, - na mesma idade de meu amigo-poeta, quem re-colheu e a-colheu as águas do rio em sua alma, deixou-as criarem e re-criarem as suas utopias de paz e felicidade, deixou-as mostrarem-lhe suas veredas e nonadas, deixou-as sonharem em si o “ser” que haveria de ser – dormir ouvindo o rumor da água, ainda que um pouco distante, e gostava de abrir a janela ao amanhecer, ouvindo o canto dos pássaros glorificando as dádivas de Deus. Às vezes, acordado, esforçava-me para escutar o som das águas, mas sempre nada distinguia.

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“Que tudo se acabe primeiro”, digo-me, sentando-me à cabeceira da mesa da sala de visitas, olho de olhos miúdos, respiração serena, a chuvinha lá fora, imagino uma vela no cantinho da janela, do lado de fora, queimando-se lentamente. Mas que fazer antes que tudo se acabe, antes que a vida seja por inteira queimada? Alfim de contas, sinto-me bem disposto, uma outra vida parece haver surgido no meu corpo, desde que saí da pia da cozinha, estando nela encostado.

#RIO DE JANEIRO(RJ), 13 DE DEZEMBRO DE 2020, 09:34 a.m.#

 

 

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