**BAILE À EFEMERIDADE** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ====


Ao rés-do-chão, sem réstias e vestígios, negaram-me a postura de asno que pensa e sente os instintos da miséria e da ruína. Neste túmulo, sou lagartixa que passeia, senta, dorme, faz suas necessidades fisiológicas. Pele contra pele, carne contra carne, membro contra membro. Acostumo-me à posição, às danças quotidianas.

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Construo-me ou destruo-me. Aos que estão ao rés-do-chão, não lhes devo coisa alguma, réis alguns irão glorificar-me pela honradez com os favores e obséquios restituídos. Piso-lhes as cabeças. Desejo-lhes o cérebro espalhado no chão, o corpo na sarjeta.

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Absorto nos sentimentos e sensações, olhando o casal de frente, a respiração ofegante, lembrou-me de haver encostado o cotovelo esquerdo da pata no caderno de Fomá Fomitch que estava sobre o braço da cadeira, amparando o queixo com a mão, o rosto pouco inclinado – havia sonhado naquela noite. Fechou os olhos. O peito encolheu-se. A respiração diminuiu. Algo desconhecido tomou conta de mim. Abri os olhos.

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Calafrio na espinha. Tentei articular algumas palavras, dizendo, por exemplo, que era míope. Não enxergava a longa distância. Estava sem óculos, podendo colocar-lhes, tê-los tinha-os, ver as montanhas, os edifícios. Não conseguia articular palavra alguma. Sensação horrível. Há nó górdio na garganta. A respiração estava dificultada. A cabeça vazia.

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Cego na visão do vazio. O peito, antes de insuflar-se, deslocava-se.

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Ofício é tirar a carne de pescoço: a palavra. Permissão de ser quem sou. Descarno-lhe com a intenção de ser possível sair, estourar-me, explodir-me. Eis que, sendo passageiro deste ato, manifesto o vazio. A palavra manifesta a existência? Aborto inútil. O que é abortado está morto. Estando, aqui e agora, a pensar, não significa as palavras adquirirem sentimentos; antes o contrário, não têm sentimento algum, pois que estou morto, apenas a cachola instintiva continua ativa, creio que por toda a eternidade estará relinchando, sem cessar, asnadas se matracando. Sei não poder iludir-me. Far-me-ia mal... Todos os termos estouram, exceto as palavras. Frases caem no esgoto. O que estou fazendo não constitui o ato de relinchar, mas dar descarga. Dou descarga nas frases, a fim de cada uma de suas palavras estourarem. Criei este destino. O que consigo? Vê-las exteriorizar lamas e lodos. A estética? Ingenuidade. Pergunto-me a razão de relinchar uma espécie de memorial após a minha morte, se não expresso a morte, tendo de conformar-me com o morto que sou, o vivo que fui. Uma interpretação? Uma análise? Nada disso, é que passar a eternidade aqui na sepultura, os ossos se desfazendo, restando apenas pedaços aqui e ali, é extremamente monótono, então os instintos frios disseram-me o melhor seria ocupar-me com um memorial. Após haver abortado o vazio, tirando-lhe do rol dos instintos, intenciono fazer com que as palavras revelem este vazio, que sou eu. Trago o fel até à última gota. Aff!... Quem gostaria de bebericá-lo, sentindo o prazer das fibras íntimas, e depois de si nem sobra o esquecimento?

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Maçanetas driblam cinzas a erguerem esquifes em memórias transmudadas a nada. Chave ludibria corpo que some em gavetas a encravarem testemunhos inconscientes. Trancas aglutinam ossos mutilados, nonada a ermos paladares do eterno constrói cancelas nos pampas abandonados, divididos em hectares. Buraco destrinça carne tirada a lâmina afiada, caindo de mares a hipotenusa da angústia, cateto da depressão.

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Frestas limpam nervos que escavoucam a cal deitada em pás medíocres. Bebida esmorecida no copo mítico de todos os nadas e mortes, de todos os nós e ases. Pés já reconhecem a espessura e longitude das sepulturas amontoadas em calçadas e passeios.

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Vida. Reconheci nela natureza inalterável desde o primeiro toque, com que podia afirmar, firmar pacto tão perigoso e tão seguro que se faz com um elemento: pode-se confiar no fogo com a condição de saber que sua lei é morrer ou queimar. Visões. Escolhas. Tudo constitui amadurecimento. Passar a ter sentido, exótica perspectiva. Ter-me-ia rejeitado com horror, se houvesse percebido nos seus olhos o brilho cuja ausência a faz morrer. As qualidades de frieza, recusa, renúncia, fizeram-me. Mudança. Agora que morri, afasta, despe-se de suas hesitações uma a uma, com a espontaneidade de um viajante transido que se despoja ao sol, de suas roupas molhadas, e apresenta-se diante de mim nua como mulher alguma jamais o fez. Estiolam vestígios sem deixar portas semi-fechadas. Coisas não vistas antes são claras.

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O que era emoção transformou-se. Não a possuo em meu infortúnio. A desgraçada da morte adquire expressão de repouso que se tem num leito. Aborta-me fria. Reclamo o sangue no interior das veias. Performo os passos de dança, sob a sombra do rabo, seus mov-imentos.

#RIO DE JANEIRO(RJ), 15 DE DEZEMBRO DE 2020, 15:12 p.m.#

 

 


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