*POBRE GENTE* GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ###

 


Caríssima Creolina Deuscreide de Sant´Antônio,

Peço-lhe as devidas desculpas por após tanto tempo tomar da pena, quando numa "cartinha", endereçada-me com carinho e ternura, dizendo-me que os sonhos tivesse eu você realizá-los-ia com toda alegria e amor, deseja-me de coração e espírito a minha felicidade, deseja-me vivendo pleno de contentamento. Li-a, reli-a inúmeras vezes, emocionei-me com as suas palavras num estilo e linguagem que mostravam a sua sinceridade, as verdades de seus sentimentos.

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Sou homem simples, humilde que, usando a gíria agora em vigor, a "ficha demora a cair", e assim o tempo foi passando, passando, passando, lembrando-me de suas palavras naqueles e naqueloutros instantes de minha vida. Sobretudo,, sentado no banco de madeira ao lado da porta de entrada do casebre, em noctívago celeste sem estrelas e a lua distante, distante, quase sendo ilusão de ótica.

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Chega o momento de responder-lhe, tendo em mão a ficha que caiu de suas palavras, não conheço nem a minha alma, vou lá saber da alma de alguém, da sua em especial nada posso saber, sei apenas que fora sincera, pura, verdadeira, pretendo também sê-lo nos limites de minha simpleza, humildade.

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Andando sozinho pelas ruas, cabeça baixa, no meu mundo, chapeuzinho mais que velho, pensando nas minhas carências, necessidades, fantasiando uma vida diferente, algum sorriso simples esboçado nos lábios, alguma luz de alegria no semblante - homem como eu não pode sonhar, todos os sonhos serão puros frutos de imaginação fértil, nunca jamais serão realizados. Assim mesmo, nestas andanças, suas palavras nos meus ouvidos, acompanhadas de sua sensibilidade, de suas verdades, de seu coração tão terno, senti tantas coisas presentes e fortes em mim, até dizendo em voz alta, transeuntes olhando-me de soslaio: "O que as palavras podem fazer. Estão me envolvendo. Deixe de ilusões, homem, sua vida é o que é." Ouvira o que a professora dissera-me, quando triste e desconsolado, terminando o grupo, não podia continuar estudando comuniquei-a, precisava ajudar na horta de meus pais, o nosso ganha-pão: "Afonso, continue lendo, você descobrirá muitas coisas. O livro é o grande mestre." Segui a lição, aprendi a falar nos livros, e também a escrever. Comecei de sentir que podia sonhar, podia lançar os meus sentimentos a todos os horizontes, podia realizá-los, a vida poderia ser muito diferente do que tem sido. Havia alguém que iria ajudar-me a realizá-los a todos, sentir-se-ia ela feliz por ver-me feliz, faria ela tudo o que lhe estivesse ao alcance. Invadiram-me muitos sonhos, uma avalanche deles. Frutos da imaginação fértil - é interessante isso: quanto mais simples e humilde for uma pessoa mais a sua imaginação fértil, vive de ilusões, fantasias, sorrelfas. Mas junto com estes sonhos senti re-nascendo em mim a esperança que estava, percebia isto com nitidez, perdendo-a, e quantas vezes me ajoelhei no banquinho da igreja e pedi a Deus que não me deixasse perder a esperança, mesmo que fosse apenas andar pelas ruas da cidade, cabeça baixa, chapeuzinho mais que gasto pelo tempo de uso, mas pelo menos tinha alguma coisa em mãos para prosseguir os passos, morreria com a consciência de que tive esperanças, embora nada realizado no mundo. Andava com muito medo de perder as esperanças de outra vida.

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Suas palavras fizeram nascer em mim a esperança e o sonho. Ainda não lhe posso dizer quais os sonhos e esperanças nasceram em mim, qual ou quais desejo ver realizado(os), concretizados, mas posso prosseguir a minha caminhada, passos ao longo da cidade, sem quem segui-los e sentir nos meus sapatos este homem quem sou, deitar na minha cama no casebre em que vivo, ter sono gostoso, sonhar com os anjinhos. O seu amor por mim, andarmos de mãos entrelaçadas, compartilharmos nossos momentos juntos, projetarmos nossas vidas, não o fiz, não o faço, de novo usando uma linguagem vulgar, uma gíria, "não sou para o seu bico". Algo posso dizer com toda sinceridade e seriedade de minha simpleza, humildade: amo você por me haver despertado para outra vida, aquele amor de agradecimento por suas palavras, por seus sentimentos de solidariedade e compaixão, e sempre vou tê-la presente no meu coração. Vivo tão enchafurdado na minha pobreza, na minha miséria, que só posso me sentir feliz com as avalanches de sonhos e esperanças que me invadem a todo instante. Mas sei que a vida existe, é real, descobri com as suas palavras tão carinhosas que me endereçara na sua cartinha.

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Quando nos conhecemos naquele restaurante, onde almoçava com um amigo, estava de cabelo cortado, roupa limpinha, cheirosa, mas fora presente deste amigo, andava rasgado, sujo, e ele carinhosamente me oferecera também o almoço. Você chegou. Conversamos euforicamente - até me desconheci com tanta euforia que revelei. Como posso dizer? Debulhei os terços por falar daquele modo. Descobri isto, pois que os linces de seu olhar se puseram entre a realidade e a aparência. Muito humilde nos gestos e posturas. Depois senti-me culpado, responsável, fui mentiroso, representei demais, fui hipócrita, falso, de uma farsa sem limites. Fui quem não era. Dei-lhe o meu endereço de meu casebre por haver insistido. Não esperava que fosse me escrever. Pensei que depois de pensar um pouco no encontro iria descobrir fui mentiroso, era eu um homem pobre, humilde, simples. Não aconteceu. Recebi a sua cartinha.

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Estou a dizer-lhe sinceramente quem sou, revelando a minha vida mesma, sem aquela roupa cheirosa e limpinha. Tenho essa obrigação, pois suas palavras são verdadeiras e puras. Suas palavras mudaram a minha vida, no meu coração hoje sinto alegria de saber a vida, sou vida no mundo. Quero lhe pedir até que continue sentindo que vai realizar os meus sonhos todos, as energias disto chegarão até mim e ainda mais vou sonhar, ter esperanças, com os sonhos e esperanças prosseguir a vida, embora continuarei vivendo no meu casebre com o que ganho de aposentadoria de meu ofício que era pedreiro, sem amor de uma mulher, sem uma simples companheira de vida, sozinho e Deus. Meus pais faleceram faz muito tempo. Há uma família, mas podendo continuar a minha profissão, isolei-me no casebre que adquiri.

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Agora mesmo, época de Natal, amigo convidou-me para passar na sua casa junto com a sua família, agradeci-lhe de coração, mas não estou acostumado com isto de Natal em família, sempre sozinho. Minha mãe costumava ir passar o Natal na casa de sua irmã, ficava em casa sozinho, ouvindo músicas num radinho. Mais um natal no meu casebre. Compro uns salgadinhos nalgum botequim copo sujo e uma garrafa de vinho e comemoro o Natal, frito uma "bisteka de porco"

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Querida, já é hora de terminar essa cartinha. Quero agradecer-lhe as suas palavras de todos os meus sonhos você irá realizar, irá tornar-lhes reais. Mudaram-me a vida, posso sonhar, receber a todo instante avalanche de sonhos e esperanças, sentir a vida que me habita. O que aprendi nos livros as rúculas de meu destino. Para sempre, vou amá-la por haver mudado a minha vida, tenho consciência de quem sou hoje, eu que andei sem saber quem era eu, sentindo até inveja branca dos outros que eram vida, viviam, vivenciavam suas coisas. Não é aquele amor de quem deseja uma vida juntos, projetar as coisas, viver a felicidade, pois não sou para o seu bico. Professora de História do Brasil na Faculdade, pedreiro aposentado. Você realizou a vida em mim com apenas palavras sinceras e verdadeiras, puras.

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Adeus. Obrigado de coração por me haver dado a vida. Ainda dissera em nossa conversa: "O que professa é o antídoto da hipocrisia dos homens, de toda a humanidade." Maria Santíssima ilumine os seus passos na vida, você encontre um grande amor que a faça feliz.

Beijos.

Afonso Peregrino de Souza

#RIO DE JANEIRO(RJ), 11 DE DEZEMBRO DE 2020, 11:25 a.m.#

 


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