//*NO ASSOALHO O FRUTO DA ESPERANÇA*// GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: TEXTO AFORÍSTICO ###


Para quem todo o passado não é estrada de um diminuir a distância que mostra com nitidez o real e o sonho, mas, ao invés, um prado enorme que nenhum inverno nunca toca com flocos de neve ou neblina, de orvalho noctívago do mundo, vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia, possuo a arte e engenhosidade de ouvir os sons que se apresentam ao espírito do subterrâneo, aos ouvidos, ritmos e melodias se presentificam na inspiração; reclino-me, então, na cadeira, desembainho um olhar afiado e comprido ao longo do quarto em que me encontro ora, dando continuidade ao trabalho de manter alguns acontecimentos registrados, no futuro, relendo-os, saberei o que dera continuidade ao amadurecimento, as trevas consumaram-se, luzes mostraram as veredas, em breve acenarei o adeus peremptório a este "buraco de mundo", dando continuidade à vida que se me a-nuncia na sublime trans-cendência do verbo e do amor, da liberdade e da consciência. Mas, inda, seguindo as ausências de conhecimento das coisas, tenho outras contas a ajustar, não será por longo tempo, a consciência e a liberdade se conciliarão, a terra-mãe se a-nuncia, chegarei lá.

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Quando se traduz o pensamento em palavras, as coisas todas, os homens todos parecem razoáveis, plausíveis, sendo mais incisivo, o prado enorme que nenhum inverno toca parece inteligível, o vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia afigura-se mágico; mas, quando se considera os seres humanos, que passam pela rua, a idéia transforma-se em ato de fé. Humn!... Humn!....

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A rua que tomei em declive. Tenho a sensação de já ter andado pelas vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. De alguma parte chega-me aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba nuns degraus que conduzem a um beco em nível inferior, detritos abjectos deixados pelos transeuntes, odor desagradável. Numa das casas reside uma cartomante, já lera a minha sorte certa vez, as palavras coincidiram com acontecimentos da vida. Arquitetura, urbanismo dos tempos leôncios, por isto patrimônio, patrimônio que ascende não as chamas de outros tempos de realizações, ascende os interesses mais obtusos e a alienação companheira fiel e leal de estrada. É preciso força para seguir.

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Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro lado do beco, há um barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na verdade estão cobertas de pó, difícil vê-lo aberto para os "bebidos", inúmeros falecidos com doenças diversas produzidas pelo consumo exacerbado; não conheço outro lugar onde se bebe mais pinga, só falta a prefeitura canalizá-la, todos a terem na bica da pia da cozinha, patrocinada pela instituição competente. Algum som que desconheço, um sibilo, que entre serras, manuscreve o pórtico partido para o Impossível que não deixa em seu atrás senão seus vestígios de harmonia e serenidade. O grande papel é a vivência de extrema lucidez que percorre além de todos os limites do tempo, que passa fora da cerca, e que nem as flores senão flores, a terra, de quando em vez, estremece, rolam as ondas, algumas vezes sua fúria de compreender as próprias ilimitações não deixa apenas vestígio, mas ruínas. Terra de ruínas, patrimônio cultural, o povo enchafurdado em suas ruínas morais, éticas. Pensar como quem anda um caminho é pensar um caminho, é pisa-lo e senti-lo por baixo, senti-lo interiorizando-se em cada dimensão. É chupar um fruto e saber-lhe o sentido. Sentido de outros ideais, intenções, idéias, pensamentos, in totum, em todas as dimensões.

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Para mim, é uma situação nova de nosso amor, uma aparência de encontro exclusivo, de busca de conhecimentos e desejos outros, alguma coisa que nos faz adormecer a consciência e resguardar o decoro. Não me esquece estar com dois amigos, num restaurante, conversando sobre o olhar, o que é o "olhar". Sinto-me livre de poder evitar os encontros nos bares, a cachacinha acompanhada de um salgadinho, conversas inúmeras, o chá de algumas noites, enfim a presença de outra alegria senão ás portas de um desejo da experiência de amor. A sua presença resgata-me tudo; o mundo vulgar termina à porta; daqui para dentro é o infinito, o eterno, mundo superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem desejos, um mundo de nos fundirmos um ao outro, de nos completarmos. Um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição e carinho, consideração e entrega – a unida ética e sensível de todas as coisas pela exclusão das que nos são contrárias.

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O que na verdade desejo saber é se há mais liberdade, se há mais esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia inteiro a esperança exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de seu ventre.

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Pela primeira vez, eu, quem sou ser votado aos sonhos, às utopias, pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração pelo instante-limite da realização e da felicidade. Numa palavra, pela possibilidade. E pela primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela esperança. É um amor pedindo realização, a concepção, a vida possível.

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Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso enxergar bem na tela do computador com os óculos embaciados. Tento, embora com certa isenção, o golpe da inteligência de poder ver no assoalho deste barzinho miserável o fruto de alguma esperança de outrora. Esperanças não houveram outrora, seguir claudicante pelo Caminho dos Escravos. Mas... A mente projectou outros brilhos de constelações

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Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm lúcidos nas curvas de montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre, e os dedos, movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos articulados em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a voz da Terra, que é tudo e ninguém é ninguém. No silêncio absoluto, as palavras de outrora estremecem de insanidade, o silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me os ossos. Toda essa água que anuncia Deus é isso mesmo – um anúncio, do que jamais foi, na pálida auréola do ar, das casas silenciosas, da copa das árvores ao longe, raiadas de pingos de chuva, quando o silêncio é tão profundo que me ouço ser.

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A única vida verdadeira está no presente. O tal-aqui-agora. Mas a que distância está esse presente não há como se prever. Pode ser daqui a mil anos, no século XXII, quando nem as cinzas existirão de mim, do que fui, do que represento no mundo. No momento nada é possível exceto alargar a idéia de esperança e de liberdade, senti-la na carne e nos ossos.

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A emoção traz-me lágrimas aos olhos, e eu volto a cabeça, a fim de não me trair, negligenciar-me. O senhor que me atendera, provavelmente de uns sessenta, setenta anos, encontra-se agora palitando os dentes, enquanto olha o pequeno movimento de seu barzinho miserável. Encontro-me eu a tomar a minha bebida, uma cerveja. A registrar no computador um agora-aqui.

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A rua que tomei descia em aclive, aproveitei deste momento para refletir e meditar sobre o amor que tudo modificou em minha vida, devolveu-me a esperança, devolveu-me a liberdade, percepção de coisas novas, desejos inusitados e excêntricos, ao avesso da terceira lãmina que cria ilusões e quimeras, fantasias, as lãminas múltiplas da busca de integração e de visão do jardim estar bastante florido e já ser o final do inverno. Aproveitei para subir os degraus do conhecimento de sentimentos que sei, hoje, serão a redenção e a ressurreição, serão o húmus de toda a vida.

COMEÇO E RECOMEÇO DE UM INÍCIO!....

#RIO DE JANEIRO(RJ), 22 DE DEZEMBRO DE 2020, 09:11 a.m.#

 

 


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