#INÉDITO# **PREFÁCIO DE O VAZIO, POR PAULO CÉSAR CARNEIRO LOPES** Paulo César Carneiro Lopes: PREFÁCIO Manoel Ferreira Neto: AUTOR DE "O VAZIO", ROMANCE ###



As construções são como que retratos de épocas. Cada época possui sua arquitetura própria que é, na verdade, um resultado, um reflexo daqueles tempos.
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A rua, de onde parte o romance “O vazio”, é, como facilmente se constata, uma construção de uma cidade grande típica da segunda metade do século XX: a angústia é seu mais típico sentimento. E a rua é angústia. Ela nos fala de uma vida que, como um rio violento, avança, avança, levando tudo, levando todos, de modo irrevogável!
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Rio, ou talvez represa, vez que fora construída pelo homem; as águas estiveram presas, mas, quando as comportas foram abertas, correram livres e selvagens.
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Rua Século XX, já diz tudo. Só que ela – no romance –, que quer ser mais que um retrato, não apenas constata, também analisa seu tempo. Em determinado momento ela diz: “Os olhos precisavam deleitar-se com algo exótico e, esse, iria modificar algo nos homens, dar-lhes maior otimismo, proporcionar-lhes maior maiores esperanças”. Entretanto, o exotismo não solucionou nada, despistou um pouco a angústia que logo depois ressurgiu mais terrível ainda, talvez doida.
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E os homens, cansados, derrotados, já não tentam lutar, “acostumaram-se com o caminho que lhes oferecia eu”.
A rua vê: um ensino falso e interesseiro, libertinagem e pornografia, valores fugazes e irreais; e liga tudo isso a uma humanidade triste e entediada.
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Um lamento de desespero é o que a rua diz, é o que a humanidade diz em voz única, sim, em voz única, pois ela está massificada e caminha como gado de corte para o matadouro. O homem individual já não existe. Romualdo, porém, não se entrega. Quer existir. Quer ser ele mesmo.
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A rua cala-se e Romualdo toma a palavra. Ele é apenas um. Contudo, dispõe-se a enfrentar o seu tempo, não está disposto a aceitar o que há de falso neste tempo. Só que justamente neste instante, no momento deste belo e quase heroico ato, é que a tragédia alcança seu clímax. Mais forte que a angústia, mais arrasador que o tédio, o vazio surge.
A sociedade, que Romualdo vê e rejeita, por si mesma, elimina a possibilidade de Deus Ser. Como poderia Deus – que é Amor – existir em tal lugar? A dita sociedade é falsa, Deus é real; logo um não pode existir no outro. O dinheiro, o consumo, as coisas (o que se pode ter) são os deuses da sociedade, que, porém, não o nega diretamente (ao menos ainda); quer, como faz com tudo, inclusive o homem, usar também a Deus. Mais tarde verá que não é possível manter atitude e, então, o negará diretamente; por enquanto continua tentando usá-lo.

Romualdo, com a sociedade, se associara ao Catolicismo, ao Cristianismo, a Deus. Teve, diante de si, um catolicismo, um cristianismo, um deus, falsos e deturpados. E quando disse “Deus não existe”, na verdade, estava dizendo “Este Deus não existe”. Seu interior era o mesmo: Deus não existe. Para ele aquilo era Deus e não existia. Ele desconhece o Deus que liberta, o Deus que se manifestou a Moisés e libertou seu povo da escravidão; o Deus que é com Jesus; o Deus que, talvez, tenha tentado se manifestado a ele mesmo, homem sincero e que busca a verdade, mas que, paradoxalmente, por isto mesmo, o rejeitou.
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Uma página de Larrañaga, que li algum tempo e que transcrevo aqui, explica de modo admirável a situação em que se encontra Romualdo: “Afastado Deus, a vida é como uma flor que se despetala. Tudo perde o sentido e acontece aquela terrível descrição de Nietzsche em seu livro ‘Assim falava Zaraustra’:
Para onde foi Deus? Eu lhes vou dizer. Nós o matamos, vocês e eu (...). Para onde vamos agora? (...). Andamos errantes através de um nada infinito? Não sentimos o sopro do vazio? Não sentimos um frio terrível? Não está anoitecendo continuamente? ”.
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Deixamos Deus ‘morrer’, mas nascem os monstros: o absurdo, angústia, a solidão, o nada. Como disse Simone de Beauvoir, suprimindo Deus ficamos sem o único interlocutor que valia a pena. E o homem se torna, como disse Sartre, “uma paixão inútil, como um relâmpago absurdo entre duas eternidades de escuridão”.
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Entretanto, Romualdo está em melhor situação que Nietzsche e mesmo que Sartre. Nietzsche valorizou coisas falsas, como a exploração do mais fraco pelo mais forte e o proveniente disso, às quais desvendou sofisticamente. Sartre, embora sincero, criou sua filosofia praticamente sozinho, embora uma certa ligação que há entre esta e a de Heidegger (os especialistas, como o próprio autor de o Vazio, dizem que o ponto de encontro é relativamente pequeno).
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Romualdo não; ele está à procura de valores reais. Ao invés do ódio que Nietzsche prega, nele podemos sentir um amor profundo e desinteressado (coisa que o autor de Zaratustra achava impossível) pela humanidade. E em relação a Sartre, o próprio Sartre é a vantagem; Sartre já criou uma filosofia, já lançou uma base da qual Romualdo pode partir para voos maiores e, no próprio romance, podemos entreter que tal voo se esboça.
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Mesmo estando morto no coração de Romualdo, Deus, como o Cristo histórico, pode ressurgir.
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Na verdade, é a alguém, como Romualdo, que mergulha tão profundamente em si mesmo, que Deus costuma se manifestar com mais força. Há um limite entre o nada e o tudo do além-matéria. Como diz Facchini, a angústia, o tédio, o desespero, são lugares da experiência do Absoluto. E o próprio Facchini continua: “A experiência do absurdo, do vazio, do nada, empurra-nos, com as poucas forças que nos restam, para os braços de Deus”.
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O vazio, terrível! Entretanto, ele não é tudo, existe “um abismo imenso” diante do qual Romualdo para. Ele quer avançar, mas tem medo, recua. O abismo, porém, não o abandona, volta em cenas fortíssimas, como a do cachorro de cabeça esmagada, ou aquela outra em que os seus próprios olhos, sem quererem, veem o que ele sente, e fogem-lhe das órbitas.
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O abismo persiste e desafia Romualdo ao mergulho total. E, no abismo, eu escuto a voz de Deus:
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Por que você tem medo de mim?
Por que desvia os olhos
E diz que eu não existo,
Se já me viu e pode sentir minha presença?
O morcego esconde-se da luz,
Mas ela existe;
Por que agir como o morcego,
Você que tem olhos?
Por que não olhar
E deleitar-se no brilho da luz?
Por que não sentir sua força?
Não, não tenha medo...
Eu gosto de você.
Na verdade, há muito tempo lhe sigo os passos
E lhe chamo.
Pare e volte-se para mim,
Eu o amo!
Satisfarei sua sede de amor.
Você está tão ferido,
Tão machucado,
Deixe eu tocar seu corpo!
Verá como as feridas irão sumir.
Sua língua está seca,
Mas algumas gotas de água, que lhe darei,
Matarão para sempre sua sede.

SETEMBRO DE 1983/DEZEMBRO DE 2020
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Post-Scriptum:

Setembro de 1983, procurou-me Élisson Ferreira numa mesa de clube social, num domingo, na cidade de Curvelo, Minas Gerais, em nome de Paulo César Carneiro Lopes: havia escrito uma novela, SONHO DO VERBO AMAR, desejava que eu lesse, desse a minha opinião. Disse-lhe que Paulo César podia me procurar duas semanas depois, sábado, às quatro da tarde. Estudava eu Filosofia na Universidade Católica de Belo Horizonte, retornaria nesta data.

Esqueceu-me o encontro, mas estava em casa. Às quatro horas, bateram palmas, estava eu lendo Madame Bovary. Olhei através da cortina da sala de visitas, era um jovem, trazia no peito uma pastinha. Fui atender: era Paulo César.
Conversamos longo tempo, Filosofia e Literatura rolaram em nosso primeiro encontro. Jovem de dezoito anos, de um intelecto privilegiado, o sentimento de amizade surgiu de imediato.. Havia terminado o Curso Científico. Sonhava fazer Letras. Apresentou-me sua novela. Disse-lhe(isto ele guardou de nosso encontro): "Se eu gostar de sua novela, escrevo um prefácio. Se não, não significa que não tenha valores, outro irá reconhecê-los". Naquela tarde mesma, li a obra, e no domingo escrevi o prefácio, deixando com sua irmã Soraya, o original e o prefácio. Apresentei-lhe alguns dias mais tarde O VAZIO, em sua residência. Lera e escrevera este prefácio: era um intercâmbio cultural, entre jovens escritores. O meu prefácio ele perdeu, a obra foi publicado em 1988. Dei também por perdido o meu, mas havia deixado com um amigo em Belo Horizonte, devolveu-me em 2018.

Hoje, Paulo César Carneiro Lopes, é mestre em Literatura, com a dissertação UTOPIA CRISTÃ NO SERTÃO MINEIRO, Editora Vozes, em Guimarães Rosa, uma Leitura de A hora e Vez de Augusto Matraga, e doutor em Guimarães Rosa com a tese DIALÉTICA DA ILUMINAÇÃO(esqueceu-me a Editora, no momento), pela Universidade de São Paulo
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Trinta e sete anos de amizade, trinta e sete anos que ambos escrevemos os nossos primeiros prefácios longos caminhos juntos na Vida e na Intelectualidade.

#RIO DE JANEIRO(RJ), 02 DE DEZEMBRO DE 2020, 17:35 a.m.

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