FONTE LUMINOSA DO TEMPLO DE FESMONE XI PARTE ==== #FÁBULA ONDE UM LOBO BEBE ÁGUA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



Qualquer que examine os instintos fundamentais do homem com a finalidade de saber até que ponto eles desempenharam, exatamente aqui, um papel de gênios – ou de demônios e duendes – inspiradores, reconhecerá que já todos esses instintos fizeram filosofia, e que o maior desejo de cada um seria apresentar-se a si próprio como fim último da existência, e como soberano legítimo de todos os outros. Já que todo instinto é ávido de domínio, e enquanto tal intenta filosofar.
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Ia Belarmino Honorato pela rua entristecido, bem amargo da condição humana, pensando no devir do não-ter-sido, e no que é, semana após semana, vivendo na órbita de um salário, morrendo na defesa de um emprego; ia ele, no seu passo de operário, ia ele, no seu vôo de morcego, pela rua, noturno, avariado, com o peito vazio de amanhãs, ia ele, só trazendo o seu passado, tão inútil ia, tão miserando, descrente de que há almas irmãs, que nem viu o assaltante o matando.
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Estava ele convencido da incerteza e da utopia das opiniões e da eterna mudança de todas as leis, teoremas, conceitos humanos. Antigamente, não se sabia nada a respeito da mutabilidade de tudo o que é humano, o hábito da moralidade mantinha a crença de que toda a vida interior do ser humano estaria agrilhoada com garras eternas à pétrea necessidade.
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Não sei quantos cadáveres estraçalhados
não sei quantos defuntos difundidos
nas páginas dos jornais, como classificados
do morticínio diário nas esquinas.
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É preciso atravessar a rua
talvez como um verso atravessa
a mata hirsuta de uma conversa de negócios.
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É preciso atravessar a rua
talvez como um carneiro atravessa
a fábula onde um lobo bebe água.
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Não sei quantos segundos restam
antes que desapareça o vulto verde
e surja o homenzinho ensangüentado no semáforo.
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É que tudo se acha fora de um livro falho. Não conheço maior jogo de dados que o jogo do nascimento e da morte: preocupados, interessados, ansiosos ao último ponto, os homens assistem a cada partida, porque a seus olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário, que não mente nunca, a natureza, sempre franca e aberta, exprime-se a este respeito de um modo muito diverso: diz ela que a vida ou a morte do indivíduo nada lhe importa; é o que exprime entregando a vida do animal e também a do homem a todos os acasos, sem empregar o mínimo esforço para os salvar. Observem o inseto no nosso caminho: o mais pequeno desvio involuntário do nosso pé decide da sua vida ou da sua morte. Veja-se os equus asinus, estúpidos, tapados até a fuça, empacadores, teimosos, mesmo morrendo, quando empacam, não há quem possa reverter a situação; veja-se a lesma dos bosques, destituída de qualquer meio de fugir, de se defender, de enganar, de se ocultar, presa, exposta a todos os perigos... A natureza abandonando assim sem resistência os seus organismos, obras de uma arte infinita, não só à avidez do mais forte, mas ao mais cego dos acasos, à fantasia do primeiro imbecil que passa, algum ímpio que insiste e persiste em se persignar diante do tabernáculo, pedindo perdão por seu pecado e pecadilho de não ter um senso crítico acerca da hipocrisia que é seguir alguma coisa ao pé da letra.
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O cadáver sobre a mesa
Esse macabro cardápio
Recheado de mistério
Congelado em pergunta,
Choro, rezas e velas.
Compulsória serenidade
Ímpar figura na sala
O cadáver sobre a mesa
Foi de todos bom amigo,
Tolerante, compreensivo
Pai exemplar, esposo
Amantíssimo, fiel,
Bom pagador, religioso,
Lugar garantido no céu
mas por ora é cadáver
em postura circunspecta
frias mãos entrelaçadas
gravata, terno e meias,
rigor do traje completo
talvez use cuecas
é como um violoncelo
afinado para a festa
nos amplos salões da terra.
Em volta o tempo trabalha
A fisionomia das almas
Dos comensais taciturnos
Que à força de algumas lágrimas,
Apertos de mãos, palavras,
Tapinhas mudos nas costas,
Se conforma com a perda:
“o coitado descansou”
“pois é, parou de sofrer”
“pior é a gente que fica”
“pra morrer basta estar vivo”
Alguns instantes depois
Dos passos lentos do féretro
Dos panos quentes dos pêsames
Do pano cobrindo a peça
Resta o tédio do cadáver
Ao término dessa comédia.
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Cansado está mesmo de ouvir o mesmo disto e daquilo, enfastiado está sim de ver as coisas acontecendo, tendo de se calar, a fim de não se envolver com os julgamentos alheios, o que irá prejudicar-lhe em todos os sentidos que possa não apenas pensar, mas intuir a poucos centímetros diante de seu nariz, nada podendo fazer senão pensar que teve responsabilidade com o que acontece, disse o que não devia, agiu de modo e estilo como não devia.
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Há muito que deseja com intensidade e pujança dizer o que lhe vai dentro, o que realmente pensa, aliás, sempre dito, por não ser homem que algo faz aqui e ali desmente, até se colocando em nível de só quem não está “batendo bem da bola” para ser capaz de algo deste calibre, uma baixaria. Óbvio que palavras de baixo calão não fazem parte de seu vocabulário, até duvida se inconsciente pensa e sente-as. Se isto realmente acontece, não o sabendo ele, o que pode lamentar é não haver sido desde sempre autêntico.


#riodejaneiro#, 20 de outubro de 2019#

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