COMENTÁRIO DE ANA JÚLIA MACHADO ESCRITORA POETISA E CRÍTICA LITERÁRIA AO POEMA /*NO ASSOALHO O FRUTO DA ESPERANÇA*/





NO PROPALO O POMO DA CONFIANÇA


Para quem todo o transcorrido não é caminho de um coarctar, mas, ao inverso, um almargeal colossal que nula invernia jamais atinge, haver a dom e destreza de escutar os sonidos que se aduzem à alma, à audição; recurvo-me, então, na silha, desembaraço um mirar acerado e extenso ao comprido do aposento em que me acho contudo, administrando sequência ao quefazeres.


Quando se significa a reflexão em verbos, os factos todos, os indivíduos todos se alvitram arrazoados, o almargeal colossal que nula invernia atinge aparentar perceptível; mas quando se pondera os seres humanos que sucedem pelo renque a concepção converte-se em acção de crença.


O renque que adoptei decai em inclinado. Possuo a impressão de já haver caminhando pelas proximidades e de ter próximo uma alameda primacial. De algum lugar abeira-me aos escutados um grito sem afim. O renque faz uma sinuosidade gilbarbeira e finaliza nuns escalões que transportam a um quelho em condição aquém.


Embargo-me um momento no elevado da escada. Da distinta ilharga do quelho, há um botequim deplorável cujas janelas aparentam ofuscadas, mas na realidade residem tapadas de poeira. Algum sonido que ignoro, um zunido, que entre serranias, quirografando a entrada saída para o Inexecutável que não lega em seu inferior senão seus indícios de entendimento e placidez. A descomunal atribuição é a existência de discerne perspicuidade que palmilha além de todos os términos do tempo, que sucede extra da vedação, e que nem as natas senão natas, o solo de quando em vez vibra, revoluteiam as vagas, algumas ocasiões sua cólera de perceber suas competentes irrestritas não lega unicamente pisadas, mas descalabro. Considerar como quem jornadeia uma vereda é cogitar um trilho, é calcá-lo e experimentá-lo por rasteiro, experimentá-lo introjectar-se em cada extensão. É libar um pomo e conhecer-lhe o significado.


Para mim, é um estado novel de nosso bem-querer, um arremedo de acho único, de cata de saberes e anelos distintos, algum facto que nos confecciona narcotizar o escrúpulo e abrigar a decência. Ajuízo-me autónomo de conseguir escusar os atentatórios nos botequins, a aguardente guarnecida de um petisco, interlocuções incontáveis, a infusão de medianas noitadas, enfim a comparência de distinta ledice senão ao acesso de uma ânsia da prática de querença. A sua comparência recobra-me tudo; o universo trivial cessa à entrada; daqui para dentro é o eterno, o perene, orbe súpero, extraordinário, nosso, unicamente nosso, sem preceitos, sem estabelecimentos, sem ânsias, um mundo de nos liquefizermos um ao outro, de nos colmarmos. Um isolado mundo, um isolado casal, uma só existência, um só querer, um só afeiçoamento e ternura, estimação e outorgamento – a concomitante moral e sentido de todas as realidades pelo ostracismo dos que nos são antagónicos.


O que no rigor anseio conhecimento é se subsiste mais independência, se há superior fé hoje do que nalgum tempo de antigamente. O dia completo a confiança reivindicando um transcorrido que salve a actualidade e o porvir. O dia completo, sem um verbo, a manumissão ordenando que a fé tenha aparecido de sua matriz.


Pela primitiva ocasião, eu, quem sou uma entidade consagrada aos devaneios, às fantasmagorias, pela primitiva ocasião ajuízo-me aliciado pela fé: charme pelo momento - marco do adimplemento e da dita. Num vocábulo, pela oportunidade. E pela primeira vez possuo então querença pela independência, pela expectativa. É um bem-querer implorando efectivação, o concebimento, a existência factível


Limpo as lunetas. Encontram-se turvadas. Não posso enxergar bem na tela do computador com os óculos embaciados. Intento, conquanto com certa liberdade, o golpe do intelecto de conseguir enxergar no propalo deste botequim deplorável o pomo de mediana fé de antigamente.


Detrás da expectativa não há senão a fé. Afluem diáfanos nas sinuosidades de serranias outras a garra que pulsa de vivido, posta emancipada, e os dedos, mobilizam de um lado para outro perfilhando os fustes de eloquências pronunciadas em cada maviosidade do idioma, um asilo e uma alforria, como o som da Solo, que é totalidade e nenhum é nenhum. No emudecimento pleno, as locuções de antigamente sobressaltam de demência, o emudecimento arrebenta a minha boca como um calhau, arrebenta-me os ossos. Toda essa linfa que prenuncia Divo é isso mesmo – uma vaticinação, do que nunca foi, na desmaiada nimbo da aragem, das habitações silentes, da fronde dos mastros ao longínquo, surgidas de gotas de água, quando o mutismo é tão penetrante que me escuto pessoa. A incomparável existência real acha-se na actualidade. Mas a que extensão está essa actualidade não há como se antever. Pode ser daqui a mil anos, no século XXII, quando nem as favilas subsistirão de mim, do que fui, do que caracterizo no universo.


No instante patavina é exequível salvo engrandecer a concepção de fé e de liberdade, sensibilidade na sensualidade e nos ossos.


A comoção acarreta-me pranto aos vistos, e eu giro a cabeça, a termo de não me atraiçoar, descurar-me. O senhor que me acolhera, presumivelmente de uns sessenta, setenta anos, acha-se agora esgaravatando os dentes, enquanto mira a exígua deslocação de seu barzinho deplorável. Acho-me eu a ingerir a minha bebedura, uma cachacinha.


A renque que adoptei decaía em rampa, fruí deste instante para espelhar e ponderar sobre o bem-querer que tudo alterou em minha existência, restituiu-me a fé, restituiu-me a independência, intelecção de factos renovados, ânsias insólitas e extravagantes, ao contrário da intercessora lasca que concebe cegueiras e devaneios, imaginações, as tablas multíplices da indagação de inclusão e de conspecção do horto achar-se muito flóreo e já ser o desfecho da invernia. Fruí para ascender os escalões da erudição de índoles que sei, hoje, serão a remição e a ressuscitação, serão o terriço de toda a existência.


NO ASSOALHO O FRUTO DA ESPERANÇA


Para quem todo o passado não é estrada de um diminuir, mas, ao invés, um prado enorme que nenhum inverno nunca toca, possuo a arte e engenhosidade de ouvir os sons que se apresentam ao espírito, aos ouvidos; reclino-me, então, na cadeira, desembainho um olhar afiado e comprido ao longo do quarto em que me encontro ora, dando continuidade ao trabalho.


Quando se traduz o pensamento em palavras, as coisas todas, os homens todos parecem razoáveis, o prado enorme que nenhum inverno toca parece inteligível; mas quando se considera os seres humanos que passam pela rua a idéia transforma-se em ato de fé.


A rua que tomei desce em declive. Tenho a sensação de já ter andado pelas vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. De alguma parte chega-me aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba nuns degraus que conduzem a um beco em nível inferior.


Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro lado do beco, há um barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na verdade estão cobertas de pó.Algum som que desconheço, um sibilo, que entre serras, manuscreve o pórtico partido para o Impossível que não deixa em seu atrás senão seus vestígios de harmonia e serenidade. O grande papel é a vivência de extrema lucidez que percorre além de todos os limites do tempo, que passa fora da cerca, e que nem as flores senão flores, a terra de quando em vez estremece, rolam as ondas, algumas vezes sua fúria de compreender suas próprias ilimitações não deixa apenas vestígio, mas ruínas. Pensar como quem anda um caminho é pensar um caminho, é pisa-lo e senti-lo por baixo, senti-lo interiorizando-se em cada dimensão. É chupar um fruto e saber-lhe o sentido.


Para mim, é uma situação nova de nosso amor, uma aparência de encontro exclusivo, de busca de conhecimentos e desejos outros, alguma coisa que nos faz adormecer a consciência e resguardar o decoro. Sinto-me livre de poder evitar os encontros nos bares, a cachacinha acompanhada de um salgadinho, conversas inúmeras, o chá de algumas noites, enfim a presença de outra alegria senão ás portas de um desejo da experiência de amor. A sua presença resgata-me tudo; o mundo vulgar termina à porta; daqui para dentro é o infinito, o eterno, mundo superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem desejos, um mundo de nos fundirmos um ao outro, de nos completarmos. Um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição e carinho, consideração e entrega – a unida ética e sensível de todas as coisas pela exclusão das que nos são contrárias.


O que na verdade desejo saber é se há mais liberdade, se há mais esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia inteiro a esperança exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de seu ventre.


Pela primeira vez, eu, quem sou um ser votado aos sonhos, às utopias, pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração pelo instante-limite da realização e da felicidade. Numa palavra, pela possibilidade. E pela primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela esperança. É um amor pedindo realização, a concepção, a vida possível


Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso enxergar bem na tela do computador com os óculos embaciados. Tento, embora com certa isenção, o golpe da inteligência de poder ver no assoalho deste barzinho miserável o fruto de alguma esperança de outrora.


Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm lúcidos nas curvas de montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre, e os dedos, movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos articulados em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a voz da Terra, que é tudo e ninguém é ninguém. No silêncio absoluto, as palavras de outrora estremecem de insanidade, o silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me os ossos. Toda essa água que anuncia Deus é isso mesmo – um anúncio, do que jamais foi, na pálida auréola do ar, das casas silenciosas, da copa das árvores ao longe, raiadas de pingos de chuva, quando o silêncio é tão profundo que me ouço ser.


A única vida verdadeira está no presente. Mas a que distância está esse presente não há como se prever. Pode ser daqui a mil anos, no século XXII, quando nem as cinzas existirão de mim, do que fui, do que represento no mundo. No momento nada é possível exceto alargar a idéia de esperança e de liberdade, senti-la na carne e nos ossos.


A emoção traz-me lágrimas ao olhos, e eu volto a cabeça, a fim de não me trair, negligenciar-me. O senhor que me atendera, provavelmente de uns sessenta, setenta anos, encontra-se agora palitando os dentes, enquanto olha o pequeno movimento de seu barzinho miserável. Encontro-me eu a tomar a minha bebida, uma cachacinha.


A rua que tomei descia em aclive, aproveitei deste momento para refletir e meditar sobre o amor que tudo modificou em minha vida, devolveu-me a esperança, devolveu-me a liberdade, percepção de coisas novas, desejos inusitados e excêntricos, ao avesso da terceira lâmina que cria ilusões e quimeras, fantasias, as lâminas múltiplas da busca de integração e de visão do jardim estar bastante florido e já ser o final do inverno.


Aproveitei para subir os degraus do conhecimento de sentimentos que sei, hoje, serão a redenção e a ressurreição, serão o húmus de toda a vida.


Manoel Ferreira.

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