**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XX PARTE** - Manoel Ferreira


Saindo do hospital, tendo ficado cinco dias internado:
- Berenice, estou brincando, e com pouca arte, ou nenhuma, não faz a mínima diferença, mas tudo não é alegre na minha galhofa. Quiçá ranja os dentes... Berenice: vários mistérios me inquietam: explique-mos!
Falava sério, cada palavra muito bem pronunciada, em voz baixa. Ultrapassando a porta do hospital, tomaríamos um táxi, dissera-me:
- Saindo do hospital, você com as suas coisas sérias engraçadas. Valha-me Deus!...
- Não é nada engraçado, meu amor querido. Pense bem: querem transformar o homem segundo as exigências da ciência e do bom senso. Já pensou o bom senso de um homem? Prefiro o nonsense do homem, é uma coisa linda de se con-templar, enquanto o bom senso é de se arrebitar o rabo e sair na carreira de tão ridículo. Mas como sabem que o homem pode ser trans-formado, que deve ser trans-formado? Como sabem que essa trans-formação será útil ao homem. É uma suposição gratuita. É lógica, mas não humana. Você deve estar pensando que estou louco?
- Você não é louco, não está louco, meu amor - disse, abrindo a porta traseira do táxi, mandando-me entrar.
O táxi dera partida.
- Está se sentindo bem, Sérgio? Vou cuidar de você. Ficará de repouso completo.
- Está bem... Mas continuo com o que estava dizendo. O homem gosta, ama, é apaixonado por construir, é evidente. Mas por que gosta também de destruir? Não será porque sente horror instintivo de chegar ao fim, de terminar suas construções - Berenice dera uma gargalhada. Sabia o que causara a gargalhada: "horror instintivo". Até o motorista riu, aquele risinho comedido, de quem só deveria ouvir sem nada expressar, estava a serviço, coisas de clientes são coisas de clientes - Talvez só chege a construir em projeto: talvez goste de construir casas para não as habitar, em seguida abandonando-as às formigas e aos animais caseiros. As formigas tem outros gostos que o homem. Constroem seus formigueiros para a eternidade, é a finalidade de toda a sua existência e o seu único ideal, o que lhes honra a constância e o espírito positivo. Vamos construir juntos o nosso "ninho" de amor, com amor, carinho, ternura, amizade, é a finalidade de nossa existência, o nosso único ideal.
- Amor, pára com esta palhaçada... Não sei se fico contente com você ou se lhe puxo as orelhas - ria, ria, ria... - Sair do hospital com este espírito galhofeiro, é realmente muito bom, fico feliz.
- O homem, ao contrário, espírito leviano, é um eterno jogador de xadrez: gosta mais dos meios que do fim e - quem sabe? - não serão os meios o verdadeiro fim? Não consiste a vida humana em certo movimento para um certo fim? E qual é esse fim? Esse fim, é óbvio, só pode ser uma fórmula, duas vezes dois são quatro, fórmula que já não é a vida - Berenice - mas o começo da morte.
- Não, Sérgio, dois e dois não são quatro, são cinco - ria de deixar lágrimas nos olhos - Você está de amargar, Sérgio.
- Vamos supor que o homem consagre toda a sua vida a procurar essa fórmula. Atravessa oceanos, pula no abismo, salta o muro do cemitério à meia-noite, expõe-se a todos os perigos, sacrifica a vida a esses estudos.
O motorista deixou de lado as suas diplomacias de profissional, ria demais, ria a bandeiras soltas.
- É seu marido, senhora? - virou a cabeça para trás.
- Meu namorado.
- Tem um humor muito engraçado. Ah, quem dera tivesse clientes com este humor nas corridas.
- Não é humor, motorista. Sérgio é um verdadeiro palhaço. Não viu nada ainda.
- Mas, asseguro-lhe, Berenice, o homem tem verddeiro pavor de conseguir encontrar a fórmula. Percebe perfeitamente, genialidade pura, que, quando a tiver des-coberto, não terá nada mais que procurar.
- Amor, o que você tem? Está me preocupando... Você está bem?
- Estou bem, querida. Os operários, quando terminam o trabalho recebem o dinheiro, vão ao botequim e, dali, à delegacia. Eis um trabalho para toda a semana.
- Do botequim para onde, Sérgio?
- Do botequim para a cadeia.
Se antes estava rindo com moderação, neste momento não conseguia parar de rir. O motorista também não. "Do botequim para a cadeia" Mas aonde irá o homem? Atrás da fórmula? Quê burla! Numa palavrita apenas, o homem é uma máquina ridícula, seu ambiente é o trocadilho. - o motorista deu uma freada brusca.
- Sérgio, pare com isto! Por favor... Suas idiotices quase fazem o motorista atropelar um pedestre.
- Concordo que duas vezes dois são quatro: é uma linda coisa, fascinante, mágica, maravilhosa, esplendorosa... Mas, no fundo, duas vezes dois são cinco: também não está mal...
O motorista estacionou o carro na porta da casa de Berenice.
- Senhor, aqui está o meu cartãozinho - estendera-me a mão - Quando precisar de corrida, pode chamar-me. Muito boa a sua presença. Estava com algumas preocupações, sumiram todas.
- Não queira, motorista... Sérgio é um palhaço. Muito obrigado.
Entramos em casa.



Manoel Ferreira Neto.
(30 de março de 2016)


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