**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XIII PARTE** - Manoel Ferreira


Depois do almoço na casa de Beré, decidimos ir visitar um velho amigo de seu, o senhor Renato Borges, um velhinho sobremodo introspectivo, circunspecto, fala com a alma.
Logo que chegamos à residência de Renato, todo solícito, colocou a mesa no quintal, forrou-a com todo o carinho. Pediu à esposa que colocasse as guloseimas e um litro de vinho. Explicamos-lhe que havíamos acabado de almoçar.
- Quem de nós - disse Renato, sorrindo, olhando para a esposa que estava ao seu lado à mesa - não tem as simpatias dos outros? Em todo o caso, vocês dois tem a minha e beberão comigo, pois os dois me agradam muito, considero-lhes grandes amigos, a minha Berenice considero-a minha filha. Bebamos, pois, pelo amor e a concórdia de todos.
Sim - disse eu com voz emocionada - bebamos e afoguemos no vinho os pensamentos tristes, as coisas vazias que trazemos em nós dentro.
Renato estendeu silenciosamente seu copo.
- Um minutinho só! Aquele de nós que, neste mesmo minuto, tem um desejo, que o veja realizado - disse Renato erguendo o copo, olhando Berenice com tanto amor, os olhos brilhavam de felicidade, alegria por recebê-la neste domingo, por receber-nos. Carregou Berenice no colo. Agora já está adulta, trabalha na Perfumaria Natura de Minas, é estudante universitária, faz História.
Brindamos e bebemos.
- Agora nós, velhice! - disse Céline, dirigindo-se ao marido - Se ainda tem, no fundo do coração, ternura por mim, bebamos! Bebamos à nossa felicidade vivida. Saudemos os anos findos, saudêmo-los! Encha o copo, se me ama.
- O vinho é forte, meu rouxinol, e você apenas molha os lábios - disse o velho Renato, sorrindo. E novamente estendeu o copo.
Sinceramente, achei aquele tratamento um tanto forçado, pareceu-me que queria uma cena teatral, mostrar que o casal vivia bem, no fundo tinham muitos problemas. "Rouxinol".
Percebendo o arzinho de indagação, disse Berenice:
- Amor, Céline é o rouxinol de Renato. Sempre a chama de "rouxinol", desde que o conheço, sempre foi assim. Não se espante. É a primeira vez que vimos aqui. Acostume-se com ele.
- Pois é... - disse Celine, passando a mão esquerda com muito carinho no forro da mesa - Vou provar, mas você beberá tudo. Para que viver, velho, com um pensamento penoso? Um pensamento assim desgasta o coração. Pensar é atormentar-se: devemos viver sem pensamentos, eis a felicidade. Beba, velho, afogue os pensamentos.
- Tão grandes são suas mágoas, que você conhece o único meio de as dominar? Vamos, bebo à sua saúde, meu Rouxinol. E você, Sérgio? Você tem mágoas?
- Estou vendo se as tenho - murmurei, sem tirar os olhos de Beré. Perpassou-me um calafrio na espinha que tive de disfarçar.
- Ouviu, velho? - continuou Céline - Há pouco tempo que eu também sei olhar dentro de mim. Não tinha recordações e, súbito, quando veio a hora, lembrei de tudo. Tudo o que passou vi-o na minha alma insaciável.
- É triste começar a contentar-se com o passado - disse eu melancolicamente. Beré olhou-me surpresa; não esperava este comentário de mim - O passado é como o vinho bebido. Que há de bom no passado? É um cafetão surrado: joga-se fora.
- E é necessário outro novo - interferiu, rápido, Beré, rindo com esforço, ao passo que duas grossas lágrimas, perduraram-se-lhe nos cílios, como diamantes - Não se pode viver só, nem um instante. Você, Sérgio, quer se mostrar a todo custo que é feliz sendo um homem sozinho, viver só. E isto não é verdade. Desde que nos conhecemos, percebo perfeitamente que está lutando contra esta solidão. Quer se entregar a mim, mas tem medo. O coração do homem é vivo, e o seu não baterá sempre uníssono. O amor é a prova mais evidente de que o homem não vive sozinho. Só se você não tem alma.
Remexi-me na cadeira. Levantei-me e tornei a sentar-me tão sem jeito me senti com a afirmação de Berenice. Senti que estava me chamando de embusteiro, um embuste sem limites e fronteiras. Renato e Celine olharam-me espantados.
- Foi com muita dificuldade, Sérgio, que você pagou a sua solidão? Pagou caro por ela, não foi? Tão caro que se enveredou pela vida literária a fora. Quis ser escritor para esconder as dores e sofrimentos. Mas por que fugia da vida, do mundo? Encontrou-me. Começou a sentir que a vida solitária não tinha qualquer sentido. Não consegue se entregar a mim, apesar de estar lutando bastante. E agora, o que vai colocar no lugar das letras, o amor por mim ou vai se entregar a outra coisa?
Comecei a rir.
- Por mim, paguei a solidão com a minha vida - disse-o com voz algo acre, e descontente. O que parece muito a um é pouco para outro. Um quer dar tudo sem tomar nada, outro toma e não dá. Nada de censuras, Berenice, por favor.
- Não estou censurando, benzinho. Estamos conversando livremente.
Celine e Renato prestavam atenção ao nosso diálogo. Quem sabe se lembrando de conversas tidas no passado, quando eram namorados.
- Conhece você, Beré, alguém para quem a vida seja doce? Renato, por favor, ponha vinho no meu copo. Vamos beber à felicidade de sua filhinha bem amada, sua doce filhinha do coração.
- Não seja cínico, Sérgio. Por favor... Estamos conversando.
Interferiu Celine.
- Vamos conversar, meus amigos. Nada de insatisfações. Está uma tarde de domingo tão agradável.- dirigiu-se ao marido - Espere, velho, espere! Deixe-me, antes, dizer-lhe uma palavra.
Céline apoiou os cotovelos na mesa.Os seus olhos apaixonados mergulharam nos de Renato. Uma resolução particular, peculiar lia-se-lhe no rosto. Seus movimentos eram bruscos, inesperados. Parecia inflamada, algo de estranho passava-se nela. Mas a beleza aumentava-lhe com a animação. Os lábios, entreabertos por um sorriso, deixavam resplancecer a brancura dos dentes. A respiração era agitada. As narinas palpitavam-lhe. As tranças, três vezes enroladas na nuca, caiam-lhe negligentemente sobre a orelha direita. Um ligeiro suor perlava-lhe a fonte.
- Diga-me o futuro, velho, diga-me o futuro antes de afogar seu espírito no vinho.
Fiquei de cabeça baixa, olhando para as minhas pernas cruzadas. Berenice, cotovelo sobre a mesa, mão esquerda, amparando o rosto, prestava atenção na conversa dos amigos.
- Você, velho, estudou nos livros e conhece todas as ciências dia-bólicas. Olhe, pois velho, olhe e diga-me todas as desgraças que me esperam. Não, não minta! Diga o souber. Beré, sua filhinha querida, será feliz com Sérgio?
- Diga-me, Renato - interferiu Berenice, erguendo-se na cadeira, olhos fixos no rosto do amigo - Serei feliz com Sérgio? Diga-me, terei um aconchego em minha vida, ou, como um pássaro errante, serei órfã entre as almas santas, procurando, em vão, meu lugar. Meu coração ficará solitário? Meu coração, tão jovem, tão ardente! Solitário na velhice e morto antes de morrer. Ou antes, encontrará a felicidade ao lado deste homem casmurro a quem amo loucamente. Nossos corações baterão uníssonos. Sob que céus azuis, além de que mares e florestas se encontra meu bravo prometido, se não é Sérgio? Amar-me-á muito? Cansar-se-á logo de mim? Ser-me-á fiel. Diga-me também, Renato, vamos ainda viver juntos os dois, no nosso cantinho? Repare bem, diga-me toda a verdade, não minta, mostre sua ciência.
A animação de Berenice ia crescendo até a última palavra, e, bruscamente, apagou-se-lhe a voz. Faiscavam-lhe os olhos, seu lábio superior tremia. Havia uma ironia cruel nas suas palavras, mas a voz estava cheia de soluços. Inclinou-se sobre a mesa e olhou Renato na face, fixamente. Ouvia-se-lhe bater o coração.
Dei um grito altissonante, ensurdecedor, excitado, e fui levantando da mesa. Mas um olhar oblíquo de Renato pregou-me de novo no lugar.
Naquele olhar oblíquo havia, ao mesmo tempo, desprezo, ironia, inquietação e despeito, assim como uma curiosidade maliciosa, que cada vez me estremecia e reduzia as minhas impotências, os meus ardentes vazios que me consumiam inteiro. O velho estava dentro de mim, lia-me. Queria saber se iria eu insistir em enveredar-me pelo vazio a fora ou iria assumir amor por Berenice.
Desconfiei se na verdade aquele convite de visita a Renato e Célia não era uma encenação. Berenice comentou com ele a nossa relação.
Por volta das quatro e meia da tarde, despedimo-nos de nossos amigos. Berenice queria porque queria tomar um sorvete na lanchonete ao lado da Prefeitura. Perguntei-lhe, indo embora, se havia comentado algo de nossas relações com os amigos, respondeu-me que não.



Manoel Ferreira Neto.

(29 de março de 2016)

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