**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - VIII PARTE** - Manoel Ferreira


Havia saído de casa às duas horas da manhã para comprar cigarros, de meu casebre à rodoviária quinze minutos, único lugar para encontrá-los. Era andar no meio da rua. Lembrava-me de um texto lindíssimo, de grande profundidade literária, cuja estrutura eram as estações do ano, mas que a escritora recriou com o sonho, amor, esperança, liberdade. A foto de capa do livro era uma Maria-Fumaça percorrendo campo de trigo. Fiz um comentário atrás da orelha, obra de prosa poética sensível e eidética.
Quem dera eu escrevesse com a alma nas letras, como a escritora. Apenas criei, inventei sensibilidade para escrever. Conviveria nas letras com a sensibilidade. Triste não sentir que sou sensível. As letras me fazem con-templar a vida, visuá-la à distância. A vida na sua dimensão mesma não existe sem alma, sem espírito, sem sentimentos, sem emoções, sem sensibilidade... Criei a sensibilidade para fugir a isto. Paliativo para as minhas dores e sofrimentos, para as contingências. Por anos, era só pensar nisto, abria atalhos por todos os cantos e recantos, embrenhava-me nalgum. Agora, com esta crise havida, não me são dadas estas fugas, queira ou não tenho de conviver com estas verdades. E não vejo saída.
Comprei o o maço de cigarros. Havia um restaurante aberto. Passei na rua do cemitério. Parei e fiquei observando a alameda que leva ao necrotério, pensando com os meus botões: "A verdadeira esperança do sonho eterno da verdade é aqui. Algum dia estarei representando esta esperança no túmulo dos irmãos." Sorri sorriso desbotado, continuando o itinerário até ao restaurante onde pretendia tomar uma cerveja Brahma, acompanhada de um aperitivo de Salinas.
Só uma cliente sentada na mesa da calçada, blusa, branca, calça jeans verde, belos cabelos louros caindo-lhe no ombro, a pomposidade da postura parecia ser paulista. Estava passeando na cidade. Pensei comigo, ajeitando o chapéu branco na cabeça. Aproximei-me do balcão, pedindo ao proprietário a Brahma e o aperitivo de Salinas. Sentei numa mesa de dentro do restaurante. Num guardanapo, tentei inspirar-me na prosa poética de Raquel Gusmão. Escrevia. De quando em vez, olhava em direção à mesa da moça tomando sua dose de whisky. O garçom aproximou-se de mim: "Sérgio Palantis, aquela moça pediu-me que lhe entregasse este bilhete - apontou-me a mesa". Recebi-o. Li-o. "Faz uns minutos que observo você escrevendo. Fiquei em dúvida se lesse um bilhete. Poderia rasgar sem abrir. Tomei coragem. Aceita uma companhia?" Não respondi escrevendo um bilhete, não escrevo bilhetes de forma alguma, quanto mais em restaurantes e botequins copo-sujo. São práticas da nata fina da sociedade. "Diga à moça, Gusmão, que terei imenso prazer em recebê-la na minha mesa. Pode trazer a garrafa de Jack Daniel´s, embora não beba whisky. Problema de pressão baixa". "Como sempre sarcástico, não é, Sérgio Palantis". Voltei a atenção pra os dois parágrafos escritos. Escrevi: "O trem de passageiros abre o espaço de montanhas ao longo dos trilhos...", quando ouço uma voz baixa, quase um sussurro, meiga, solene, contrastando com a postura pomposa de se sentar à mesa: "Bom dia. Com licença. Sou Emanda. Sou paulista, estou a passeio nesta cidade". Estendeu-me a mão. Tocamo-las gentilmente. "Prazer, Emanda. Sente-se. Sinta-se a vontade..." Levantei-me, Puxei-lhe a cadeira. O garçom colocou a garrafa de whisky sobre a mesa, o copo da dose com gelo, ainda não bebida uma gotícula. Convidou-me com um tim-tim, o que respondi com a dose de aperitivo de Salinas, tomei apenas uma gota saborosa dela.
Era paulista, doméstica. Três filhos jovens, uma netinha a quem amava de paixão. Outra nora estava grávida de três meses. Separada, melhor dizendo, divorciada havia onze anos. "Nos meus 2 ponto zero de trabalho como doméstica resolvi dar um passeio aqui nas terras de Minas Gerais, aí que povo delicioso, para conhecer a terra-natal de Guimarães Rosa. Sou apaixonada com a obra dele. Li alguns livros. O amor mesmo é o conto A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA." Ouvia-a, sentindo miríades de emoções se a-nunciando à saída de um subterrâneo.
- Permiti-me o "você" - disse-o, acendendo o cigarro com a chama do isqueiro, um gesto sensível, contrastando com a minha frieza.
- Sim. Claro.
- Você é escritor?
- Não sou. Gosto de "baratujar" letras nas linhas de uma página em branco. Só isto. Preencho o meu vazio de palavras.
Nada mais disse a respeito. Tergiversou a conversa para o signo de sua vida: Câncer. Canceriano é persistente, insistente, nunca desiste. Luta por seus objetivos e sonhos. Desde que me sentei à mesa, começando a escrever, observou-me, quê carinho com a pena deslizando nas linhas vazias, registrando sentimentos e emoções. Sentiu tesão por me ouvir a voz, pensou em escrever-me um bilhete, solicitando sentar-se a minha mesa. Tomou gotícula de whisky, tossiu, a etiqueta sensível de colocar a mão escondendo a boca. "Tive medo de você rasgar o bilhete, sem mesmo o ler. Estava enganada. De imediato o aceitou.
Incomodava-me somente ouvi-la, mas sentia verdadeiramente que o vazio não emite a língua salivada de palavras. Mas num momento de suas descrições das características de um canceriano, disse-lhe: "Sou a travessia do vazio às éresis de sarapalhas percorrendo os trilhos da busca da verdade"
Aí, Emanda, no seu estilo pauliceano de interpretar Guimarães Rosa, leu à luz de seus sentimentos e emoções, tomando o seu whisky, "o rio sem margens e sem pressa do nada humano, permeado de idílios e sorrelfas."
Seis horas da manhã levei-a ao Hotel Sagarana, onde estava hospedada. Estendi-lhe a mão, agradeci-lhe pela madrugada agradável de nosso encontro. "Amanhã, Sérgio, é sábado. Vamos jantar juntos. Escolha você o restaurante. No domingo, estarei de vota a Marília." Pedi-lhe licença para beijar-lhe a mão.



Manoel Ferreira Neto.

(28 de março de 2016)

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