**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XI PARTE** - Manoel Ferreira


Ainda muito tempo depois de acordado, não pude perceber as horas. Era a claridade do amanhecer ou do anoitecer? Quanto tempo estive dormindo? Em verdade, desde a crise, não tenho dormido direito, sono agitado, pesadelos que não consigo descrever, só algumas imagens se me revelam. Acordo e fico deitado de barriga para cima, a cabeça cheia de pensamentos, em absoluto desconexos. Os pesadelos acontecem à noite, sobremodo mórbidos.
Passei a mão pelo rosto como para afastar os fantasmas noturnos. Mas, quando quis levantar-me, os membros me negaram o serviço. A cabeça rodava-me, tive calafrios. Pensei, nesta manhã, fosse mais uma crise. Com a consciência, voltava-me a memória. E estremeci ao reviver, num só relâmpago mental, a cena da noite de ontem. As sensações eram tão vivas que não podia acreditar estar separado da noite por algumas horas: que acabava de acontecer?
Coisa estranha: o fato de meus membros me negarem levantar-me parecia-me muitíssimo agradável, conquanto sentisse claramente que o organismo, abalado, não pudesse suportar mais uma comoção parecida. Por um momento, senti-me morrer - tanto me exaltavam as impressões -, aprestou-me a receber a morte como hóspede desejado, a seguir, uma tensão tão possante me invadiu, que minha atividade vital parecia romper-se. Ardia-me inteiro, flamejava até parecer consumir-me num momento, apagar-me para sempre.
Permaneci deitado, inerte sobre a cama.
Lembrava-me de haver assistido ao filme MORRO DOS VENTOS UIVANTES em companhia de Berenice. Não prestei a mínima atenção. Após, durante todo o itinérário do cinema à sua casa, Berenice, alegre, satisfeita, comentava as cenas de que mais apreciara, analisava as cenas. Ouvia-lhe com atenção. Às vezes, dizia alguma coisa sobre a cena que olhei de esguelha, comentava ela sobre. Contradizia o meu comentário, explicando isto e aquilo, talvez não houvesse prestado bastante atenção. Ficamos sentados por quase uma hora no alpendre de sua casa, e ela dissecando a película. Adorou o filme. Pegava um "gancho" aqui e ali, tecia um comentário superficial, para não ficar de todo em silêncio. Contradizia-me e analisava mais profundamente. Por volta de onze e meia, despedimo-nos. Disse-lhe sorrindo: "Beré, se Émily Bronté ouvisse a sua análise desta obra, ficaria estupefacta. Divina a sua análise. Os críticos da época tirariam o chapéu para você. Esplendido! Parabéns!." Sorriu, abraçou-me fortemente, deu-me aquele beijo famoso, chamado "desentupidor de pia" de tanto feliz com o que lhe dissera.
Subitamente, uma voz cantou! Harmonia comparável às músicas internas, familiares da alma nas horas de alegria. Muito perto de mim, quase sobre minha cabeça, a voz clara e firme cantava uma canção doce e monótona. A voz subia, descia, depois expirava numa queixa, como se fosse absorvida na angústia íntima de um desejo insatisfeito, domado, afastado do fundo de um coração lânguido. Em seguida, lançava-se em gorgeios de rouxinol, símbolo perfeito de uma paixão invencível, expandia-se num mar de harmonias poderosas como as primeiras horas do amor.
Levantei a cabeça do travesseiro para olhar se Berenice não estava na porta, olhando-me, como o fizera algumas vezes. Tem a chave de minha casa. Não, não estava. Mas ela cantava.
Distinguiam-se também as palavras, simples, sentimentais, maviosamente apropriadas à melodia. Esquecia-as. Só a música me interessava.
Ora era o último gemido da paixão sem esperança, ora, pelo contrário, o grito de alegria do coração, que, por fim, rompe as cadeias e se entrega, livre e sereno, a um nobre amor. Melodia, ritmo eram os primeiros juramentos de Berenice, algumas semanas depois de nos conhecermos, o pudor perfumado dos primeiros rubores, o brilho das lágrimas, murmúrios misteriosos e tímidos. outras, o desejo estéril de uma vestal, orgulhosa e contente de sua força, sem mistérios, e que, com luminoso riso, escancara os olhos inebriados...
Não ouvi o fim da canção. Levantei-me de supetão e a canção cessou.
Confuso, perdido, devaneado, vesti a roupa que deixara ontem na cadeira. Saí de casa completamente desnorteado. Não sei por quanto tempo andara, em mim dentro só trevas, trevas, nada conseguia enxergar.



Manoel Ferreira Neto.

(28 de março de 2016)

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