**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XVII PARTE** - Manoel Ferreira


Meu Benzinha mais que querida, muito amada, Berenice



"Fim do nunca!
Leitores reclamam de textos grandes, deixam de lê-los, sentir-lhes o gostinho das palavras que se reúnam no baile dos sentidos, assim largam mão de mergulhar fundo, trazendo das pre-fundas da alma mensagens de sabedoria, conhecimento, outros horIzontes e uni-versos que orientam travessias, passagens, mudanças.
Ansiedade, agitação, inquietude. As letras de uma placa de madeira de sapataria, grandes, perfeitamente delineadas, nos moldes estéticos comerciais, mais uma boutique de sapato. P-a-s-s-o C-er-to, separadas por hífen, vão se dissolver.
Eis que a crise se re-vela novamente. Entre pensamento e outro, um hiato. Hiatos. Mergulho profundo. Nítido nulo, a nitidez nula de sentimentos. Saindo da Boutique Passo Certo, tendo comprado o sapato. A sirene da radiopatrulha altíssima, sensação esgarçada de repulsa nos ouvidos, acompanhada do barulho de um esmerilo rinchando. Preciso sentar-me. Deixar acontecer. Esquecimento. Não me lembra se, após adquirir o sapato, liguei para você para lhe dar a notícia da compra do sapatênis, ficou muito feliz com a notícia, estava iniciando um novo homem na sua aparência, um orgulho diferente, cuidava de ser quem sou. Cuidava de ser quem sou. A cor era gelo que contrastava com a camisa vinho e a calça preta que me presenteara no Natal, iria ficar lindo.
Crise de vazio. Tinha de sentar-me. Meu Deus!... Arestas cortadas, pontes amarradas com cordas, abismo abaixo, balançando no ar com os meus passos, mãos segurando o fio de aço de um extremo ao outro.
Sentado na mesa de uma vendinha de esquina, mãos amparando o queixo, sentindo o coração disparado.
Tentarei nas sendas da floresta silvestre inspirar as quimeras de ritmos e melodias de soul, eivado da música do etéreo, primevas primaveras exalando o perfume leve do inaudito. Inocência, singeleza de imagens na moldura do absoluto efêmero.
Tentarei nas veredas dos campos de trigo tecer versos e estrofes no po-ema de etéreos sentimentos das verdades e in-verdades dialéticas do instante-limite.
Tentarei nas margens das estradas a estesia das esperanças o silêncio das árias da alma, eivando-se de luzes e águas cristalinas, ser na liber idade do eterno seduzido pelo tempo a contemplação do espírito.
Pela manhã, quando saímos para fazer umas compras de livros. você estava precisando urgentemente de comprar um livro sobre a Idade Média, para um trabalho importantíssimo, perguntou-me de que tinha medo eu de lhe amar. Dissera-lhe que iríamos conversar sobre isto. Pensei sobre algo que a faria muito feliz. Leria uma carta que lhe escrevera. Aqui está a minha resposta. Mas, sendo-lhe verdadeiro, vou lhe dizer. Seja isto aquilo a que definem como "segredo de alcova".
Na época de estudante de Psicologia, tive uma relação muito forte com a secretária do Diretor da Escola de Ciências Sociais. Tinhamos uma sin-cronia intelectual enorme, amávamos ter longos diálogos. Senti algo forte por ela. Fora na época em que senti em mim, ou pensei, sei lá, que não havia alma em mim. Descobri que a nossa relação era intelectual, sentíamos um pelo outro muitas coisas diferentes, mas tínhamos de seguir cada um a sua vida. Nesta época é que mais me enveredei nas letras. Sônia Lúcia mostrou-me muitas dimensões da vida. Trouxe-a comigo, nunca a esqueci até nos conhecermos.
Não vou me alongar muito. Amor, amo você de paixão. Você é tudo na minha vida. E sabe que não vivo mais sem você. Te amo demais, Berenice. Vamos sim viver as nossas vidas juntos. Sigo com você nas Letras. Você segue comigo na História, será professora de História Medieval. É o seu sonho... Vamos contrui-lo juntos.
Eis a razão da culpa. Sentia que estava traindo Sônia Lúcia, os sentimentos que nutria por ela. Não era amor que sentia por ela de homem para mulher. Era um amor intelectual. Você aconteceu, Benzinha, e mudou todos os meus caminhos.
O que é isto que me perpassa a mente?
Hiatos de pensamentos, hiatos de idéias, a mente tergiversa por aqui e ali, busca sítio em que se refestelar, re-colher imagens projetadas do mundo do real, a memória sensibiliza-se, aguça-se. Quiça a segurança da alma, regela-se só de sentir a incólume presença do abismo, insofismável medo de se perder nas prefundas dele. A alma não tem sentimento aprazível no regaço do abismo.
Eram por volta de nove e meia da manhã, havíamos acabado de tomar banho, produzido para um lanche na padaria. Amou o nosso pão de queijo tamanho família mineiro. Paulistas e paulistanos são hilários: tiram sarro de nós, chamando-nos "povo do queijo", mas, quando vem a Minas, só querem saber do pão de queijo, queijo fresquinho da roça, e, quando se despedem, levam queijo, saquinho de pão de queijo para comerem durante a viagem.
Havia um tempo que estava esperando uma oportunidade para um cerca-lourenço num sujeitinho ridículo que andava fofocando com meu nome, dizendo me sentia superior, um grande escritor, escrevendo em mesas de botequim, não dava confiança para ninguém, nem um bom dia para quem estava nas mesas na calçada, chegava, sentava, pedia cerveja e o aperitivo, abria o caderninho e começava a escrever: "Sérgio Palanti se acha..." Amigos diziam de seus comentários: "Você está equivocado, Hiller. Sérgio hoje é famoso hoje em Belo Horizonte como cirítico literário".
Tínhamos, você e eu, terminado o lanche da manhã: café com leite, o famoso "pingado" lá das terras das paulicéias desvairadas, por mim, não gosto mesmo, o café perde o gostinho forte, o leite, seu gostinho suave, pães de queijo, suco de açaí Estávamos sentados na mesa da calçada, frente ao Grupo Dr Hernani Visconti, um dos maiores juristas de nosso município, lá terminei de cursar o onça do curso primário, do outro grupo fui expulso por haver rimado "régua" com "égua", quando a professora me tomou a régua porque a batia na carteira, pedi-lhe "Me dá a régua, sua égua", contava-lhe daqueles tempos na idade de nove, dez anos. Levantamo-nos, fomos pagar a notinha no caixa sempre a divisão da nota a pagar. "Quando vivermos juntos, amor, vamos dividir tudo. O que começa certo nunca acaba...", quando à porta, Hilller me cumprimentou, olhei-o de frente, a língua remexeu-se na boca como chocalho de cascável. "Não sei, caríssimo Hilller, o porquê de me cumprimentar, sendo que tenho nojo de sua cara..." Perdeu todos os rebolados, sorriu amareliçado, não pronunciou único "a". Olhei você, a fisionomia, branquinha, branquinha.
- Não acredito, amor, no que acabo de presenciar. Você é terrível. Dizer na cara de uma pessoa que tem nojo dela. Amorzinho, ser direto assim é perigoso, pode levar um tiro a queima roupa. Tive medo de você cuspir na cara dele.
- Nem tanto, meu amor. É aquela coisa: Deus fez o mundo de graça para receber as prestações em defunto, mas ninguém quer morrer - ou seja: fofocas são de graça para receberem em prestações as indiferenças, os silêncios, a mudez, mas ninguém quer ouvir ao pé do ouvido as verdades de sua vida ou o coice direto de quem representa no mundo.
- Não quero, benzinho amor, que ninguém toque em você. Fique em silêncio, só olhe para a pessoa daquele jeitinho paulistano: indiferença absoluta. Você sabe e conhece: residiu lá por cinco anos.Benzinho, amo você.
- Está certo. Tudo bem. Também amo você demais.
Havíamos saído dois dias antes do final do ano para passear. Fomos a um restaurante para uma cervejinha. Sentamo-nos. Fiz o pedido. O garçom demorou a realizar o pedido. Quando ele tomou em mão a bandeja, mandei cancelar. Aí, você comentou:
- Benzinho, com a demora de sermos atendidos, pensei: "Se conheço bem meu amor, ele vai cancelar o pedido'. Dito e feito: antes de terminar o pensamento, você cancelou o pedido. Deu-me a mão. Fomos a outro bar onde jantamos um gostosíssimo churrasco de picanha.
- Amor, você é mineiro, mas assumiu um pouco a cultura paulistana.
Memórias.
Amor, sinto-me bem ao seu lado. Amo você, amo demais."



Quando terminei de ler esta missiva para Berenice... Estávamos na sala de visita da casa dela, deitados no sofá. Levantei. Tirei as folhas de caderno do bolso do meu paletó, começando a ler. Sentou-se ela com as cotovelos no joelho, as mãos amparando o queixo. Terminando, Berenice levantou-se num só impeto. Pulou no meu pescoço, chorando e dizendo: "Também amo você demais, meu amor querido. Muito, muito, muito. Esperei tanto por este momento". Abraços e beijos. Era adulta. Estava dentro de casa. Os pais não se importariam de dormirmos juntos. Haviam saído para visitar uns amigos.



Manoel Ferreira Neto.
(29 de março de 2016)


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