#RIO DE SOLEIRAS ÀS MARGENS# Graça Fontis: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Epígrafe:

"Recusei-me hoje a permanecer no Hospital - fiquei internado dois dias apenas -, vítima de mais um infarto, o décimo, pelo atendimento precário: fizeram do frasco de soro copo para servir remédios aos pacientes, não colocaram nem o aparelho de medir pressão contínua, a enfermaria uma verdadeira muvuca, rádio de paciente ligado em alto volume, televisão ligada, algazarra de conversas altas, tive de pedir calmante para dormir, caso contrário não iria fazê-lo. Tinha de fazer exame de "eco cardiograma". Larguei tudo para trás. Estas são as condições de Saúde no Rio de Janeiro. Disse mesmo ao médico: "Em Minas Gerais a Saúde é excelente. Os hospitais são monitorados de todos os recursos. Passei por vários hospitais lá. E aqui o paciente é simples nada. É um absurdo." Deste acontecimento, compus esta reflexão.

No Rio de Janeiro, faço a minha terceira margem."
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De fato, todo aquele que pensa como pensa a si próprio e ao mundo, à terra em que habita e existe suas contingências, visão-de-mundo, visão-da-existência, há de confessar pública e notoriamente que andou por algum tempo ou por longo nas calçadas ensombrecidas, vendou os próprios olhos, tapou os próprios ouvidos. Se há quem diga "Não é assim não. A coisa não se dá desta forma?", só tenho a dizer-lhe assim tão simples que para a consciência estar presente, ser efetiva, éritos e érisis pretéritos foram vividos, vivenciados, experimentados com todo fervor. De antemão às revezes, é mister, sine qua non decidir as coisas, mesmo que as consequências sejam a morte, decidir a vida literalmente. Decido mesmo: que o mundo inteiro desabe sobre mim, contra a posição dos íntimos, dos amigos. Radicalismo. Pode ser aos olhos do outro; por mim o que penso e sinto.

Andar o córrego de soleiras às margens é ainda muito mais vergonhoso que nas calçadas ensombrecidas, pois que se imagina nada ser no mundo, não trazer em si dentro quaisquer valores dignos de re-conhecimento, e sempre atribuindo, conferindo ao outro suprema inteligência, divina sensibilidade, outro que não só vê e enxerga as margens do córrego, trilha-as satisfeito e imbuído de todos os orgulhos e vaidades, inda sendo capaz de criar a terceira margem deste córrego, acreditando ser ele próprio filho das musas e homem de cultura mais que elevada, trans-cendental em todos os níveis que for possível conceber. A decisão, olhando-a com os linces do olhar, metafísicamente, cria a terceira margem: o amor à vida.

O córrego de três margens deixei para trás.

Andando à soleira do rio sem margens, brilhos nos olhos por sentir-me firmemente convicto de que a "cultura", intelectualidade são a expressão plena e completa do autêntico conhecimento da vida, das artes, da existência, das ciências e, visto que ombreava e encontrava em toda parte pessoas instruídas laia e estirpe, evoluía com o sentimento vitorioso de ser re-presentante da uni-versalidade do conhecimento da vida, e formulava, como tal, exigências e pretensões, reivindicações e intenções. Para que direção seguisse, logo participava de uma convenção tácita sobre uma multidão de assuntos, de idéias artísticas, filosóficas, religiosas, notadamente no domínio da arte. Este "tutti unisono" espontâneo, extrovertido induzia-me a julgar diante da uni-versalidade, diante do conhecimento uni-versal.

O mundo foi girando, rodando na sola de meus sapatos já bastante gastos de tanto trilhar as soleiras do rio, às margens, quase mesmo furados, julgando-me zero à esquerda, zero obtuso. A existência é muita dura, sem nunca conceber repouso, sempre me esforçara ao máximo para os próprios ideais, a liberdade em questão, agi de tal modo e tão bem quanto estava em meu poder.

Num determinado sítio de andanças, percebendo o obstáculo de todos os espíritos vigorosos e criadores, o labirinto de todos os incertos e os desgarrados, o nevoeiro deletério em que se asfixiam todos os germes vivos, virei-me à esquerda, acenei-lhe a mão, não era um espírito acanhado e vulgar, nalgum lugar outro senão aquela soleira do rio sem margens o verdadeiro espírito, jamais julgar haver encontrado a verdade, a uni-versalidade do conhecimento, das ciências e das artes.

Ainda sendo possível ver-me à distância, lembrou-me música que no momento parafraseei. Deveria saber que só há um modo de honrar-me: prosseguindo incansavelmente a busca, dar-me nascimento, não às virtudes do saber elevadas aos auspícios, no mesmo espírito e com a mesma cor-agem. Instante limite! Meus olhos se abriram para a própria caminhada. Refugiei-me no idílio e opus à sede inquieta e criadora do artista uma certa satisfação #plácida#, a satisfação de minha própria estreiteza, de minha quietude, até mesmo de meu horizonte limitado. Alegrias ingênuas e tocantes eclodidas nos interstícios... Persuadido da falta de gosto e da falta de idéias e da grosseria estética do sábio...

E o filisteu seguiu seu caminho,
Nalgum porto do olimpo terrestre,
Os homens entre palmas eufóricas,
Cantando-lhe:
"O filisteu alfim chegou,
Estamos contentes e felizes,
Por que razão demorou tanto
Para nos ensinar todas as lições
Do espírito do conhecimento e da verdade
Quiçá inda escarafunchando os mistérios
Inconscientes,
Por que odeia tanto o gênio que possui,
A justo título,
Incontestável, in-cólume,
A reputação de fazer milagres?
Isto é milagre:
Este "tutti unisono" espontâneo,
Estrovertido se induzia a julgar-se diante
Da uni-versalidade,
Diante do conhecimento uni-versal?"

E continuo as minhas andanças pelas estradas de poeiras, possuindo as duas margens, a terceira margem construindo através das decisões.

#RIODEJANEIRO#, 30 DE MARÇO DE 2019

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