#ELOGIO AO DESPAUTÉRIO E NONSENSE# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA




Estar deitado por sempre em berço esplendido é a demonstração mais plena de que todas as coisas foram realizadas a contento, todos os desejos foram concretizados, todos os sonhos tornaram-se realidades, todas as quimeras subiram ao topo das alegrias e felicidades, nada há para se duvidar, nada foi deixado em suspenso, a ser desejado, nada mais é preciso ser feito, imaginado, pro-jetado, nada há para o futuro, nada houve no passado, o presente é só a calmaria do sono, tudo pleno, tudo perfeitíssimo ao som das cítaras e harpas a executarem os cânticos solenes e divinos do amor e da paz, ao som das guitarras e violões executando “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, “estava à toa na vida, meu amor me chamou”, “pai, afasta de mim esse cálice, pai afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”, “os amores na mente, as flores no chão/a certeza na frente, a história na mão”, ou à beira-mar ouvindo o canto das sereias nas noites de lua cheia e estrelas brilhantes, sob o jingado de "boa sorte", haver muitas pessoas especiais no mundo, ou nos quartéis quando os raios fúlgidos brilham na cabeça dos militares que aprendem antigas lições. Só os sons são ouvidos em todos os cantos e recantos, pois ninguém dança ou arrasta os pés nas ruas calçadas ou asfaltadas, nos becos de buracos, nas alamedas de poeira, ninguém se di-verte ou extasia com as óperas do silêncio ou dos mortos, sinfonias do deserto ou dos cânions perdidos, ninguém faz amor nos românticos crepúsculos e madrugadas de inverno suave e sereno, nem escreve missivas de amor nas auroras de manhãs de inverno ou de verão, ninguém baila na chuva à lá Astaire, as performances desta película estão esgotadas, apenas curte o esplendor do berço, a magia do sono, a magnitude do eterno.
Nada há de mais emocionante que estar eternamente deitado em berço esplendido, iluminando a vida de outros horizontes e uni-versos, pelas ruas os foliões do silêncio de queixos caídos assistindo ao desfile suntuoso das medalhas e patentes, das seriedades e utopias da obediência e servidões, a marcha sublime e rítmica de um pé após o outro, os tambores ressoando a todos os cantos e re-cantos, na generalidade dos espaços, os olhos fixos à frente, con-templando os píncaros da glória e do louvor, os braços na cadência do vai-e-vem, a cabeça em estado erecto, sem movimento. Quê espectáculo emocionante! Quê teatro de sentimentos e emoções pósteras e póstumas! Quê película extasiante de volúpias e êxtases! Sonho não é. Em berço esplendido não se sonha, não se cria quimeras, não se re-cria fantasias, não se inventa ideologias e interesses, refestela-se nos braços do tempo que se vai a passos melodiosos em direção ao infinito de todos os horizontes, aos horizontes de todos os uni-versos, "caminhando e cantando, seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não, fazendo das flores o mais forte refrão."


Pois que não?!... Pois que não? Pois que não? Infantil e destrambelhado sê-lo-ia, não consentisse o húmus e sêmen de questões além da loucura ou além do elogio a ela atribuída: segundo a definição dos estóicos, o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de "um para vinte e quatro." Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda não satisfeito com isso, uniu Júpiter à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Cólera, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a Concupiscência, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade mais madura.


Não se sonha, sente-se a eternidade do belo, dos campos floridos de rosas, crisântemos, em grandes plantações o alimento para todos os verões e invernos, nas escolas, campos e construções, as lições da liberdade e da livre expressão, formigas e cigarras deliciam-se no repouso e descanso.
Deitado eternamente em berço esplendido, o espírito é variável com os ventos, de leste a oeste, sibilos de ventos por entre as montanhas, mais coerente é o corpo, e mais discreto. E eis que, ante a infinita Criação, o próprio Deus pára, desconcertado e mudo, circunspecto e meditativo! Cessaram as esperanças do paraíso celestial, cessou a fé no amor que há de vir, na felicidade que desabrocha todas as flores da vida e do eterno, salve, salve idolatrados campos, idolatrados amores nos seios, é necessário que cada qual lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a si mesmo uma boa coleção de elogios, em lugar de ambicionar os de outrem. Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se querer ser o que se é. Ora, só o divino amor próprio pode conceder tamanho bem. Em virtude do amor próprio, cada qual está contente com seu aspecto, com seu talento, com sua família, com seu emprego, com sua profissão, com seu país, de forma que nem os irlandeses desejariam ser italianos, nem os trácios atenienses, nem os citas habitantes das ilhas Fortunadas. Depois não vão dizer que Ele é gozador, adora brincadeiras, botou homens no mundo de barriga na miséria, nasceram brasileiros. No berço esplendido de todos os séculos e milênios, na continuidade do tempo e dos desejos, o belo e o feio, o bom e o mau, dor e prazer, tudo, alfim, são formas e não degraus do Ser, tudo são conteúdos e não escadas da Vida.
Ah, quem me dera, ante o espetáculo do mundo, ante o esplendido sono do berço eterno, sem mais hesitações e sem maior fadiga, sem mais dúvidas e sem maior desconfiança, o instantâneo olhar de um juízo ab aeternum de outros refrões de “Ordem e Progresso", de um des-juizo ad aeternum de outras visões da "Libertas Quae Sera Tamen” não lessem e con-templassem as variações da lua e das estrelas de todos os brilhos a iluminarem o azul do céu! Alfim, quem quer, deseja, a fissura de dormir tomou-lhe tão profundamente, escurece o seu quarto ou esgueira-se para dentro de uma caverna, mister re-conhecer os espíritos que buscam o descanso ou vivem ipsis litteris e verbis o descanso no berço. Este momento de euforia, de êxtase, dormindo no berço da vida sem limites, sem princípio, meio, fim, é a flor da eternidade, é o cheirinho agradável da imortalidade nos epitáfios de mausoléus, vivendo sob a sua proteção, ficam encantados de encantamentos pela excelência do mérito e apaixonam por exímias qualidades, o que proporciona a vantagem de alcançar o supremo grau de loucura. Mais uma vez repito: se desgostam de si mesmos, persuadir-lhes ou persuadi-los de que nada poderiam fazer de belo, de gracioso, de decente, é condição sine qua non antes e aquém do desvario solene. Roubada à vida, essa alma languesce o orador em sua declamação, inspira piedade o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o cômico vaiado em seu papel, provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor não conquistará senão críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com todas as suas receitas... E essa minha alegria inclui também minha tristeza – a nossa tristeza...Tu não sabias, oh, meu companheiro de viagem, neste berço esplendido ao som das cítaras e harpas, violões e guitarras, todos os esplendores do berço vão para o infinito! Todas as magias do belo sono vão para os uni-versos, que talvez nem tenham ainda nascido, ainda não acreditam nas flores vencendo o canhão.


Sigo, indiferente, o meu caminho, pensando em como o Diabo subestima os esplendores do berço eterno, as magias todas da eternidade e do eterno. Meu Deus, como são fúteis as promessas do Diabo! Para mim que, de todas as minhas andanças, no re-verso dos vinhos e dos pães, comi a hóstia sagrada, no in-verso das estrofes de amor fechei os olhos para não assistir à banda passar, cantando suas melodias de amor e felicidade, no avesso dos versos descansei a língua fora da boca para não dizer Deus lhe pague, recitar seus versos, declamar suas tristezas e angústias. Desejo de um dia ficar repousando no esplendido sono de um berço sob uma dessas cruzes de volta ou curva de estrada que parecem também estar viajando nas asas de uma águia por sobre as águas dos rios, mares e oceanos.


#RIODEJANEIRO#, 25 DE MARÇO DE 2019#

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