*CARÊNCIA DA LÍNGUA** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA METALINGUÍSTICA




Acordei hoje com a língua... Há quem acorde com a macaca - quê coisa desagradável: dá vontade de mandar a pessoa pentear macaco de tanto que ela se torna pentelha, e para performar bem a pentelhice ornamenta com pitis das vaidades, pavonices desmioladas da falácia e verborréia, fala pelos cotovelos, canta pelos joelhos.
Ao longo dos anos, séculos, milênios, no decorrer dos tempos, todos os homens se assemelham, tornam-se semelhantes, todavia é diferente a ordem de seu desenvolvimento, progresso.


Agora sou quem me manda pentear a língua. Entrei num abismo sem fundo. Sei não, mas me parece bem hilário pentear a língua com as serdas da escova dentifrícia no fundo do abismo, sob clima meredional. Nos climas meredionais, onde a natureza é pródiga, aliás, tudo é pródigo nos climas meredionais, as necessidades nascem das paixões; nas regiões frias, onde a natureza é avara, as paixões nascem das necessidades, e as línguas, tristes filhas das necessidades as mais contundentes e punjantes, ressentem-se de sua áspera origem.


Ainda que o homem se habitue com as intempéries, com as penúrias, com as macacas da náusea, com o frio, e até com a fome, há, porém, um ponto em que a natureza sucumbe - nas garras dessas provações cruéis, insensíveis, tudo que é débil perece e tudo mais se fortalece. Não há um ponto inter-mediário entre o vigor e a morte.


As línguas valem mais escritas do que faladas; leem-nos com mais prazer do que nos escutam. Quem sabe para o leitor o sentido só em parte está nas palavras, toda a sua força reside nos acentos. Julgar os autores que conseguem essa façanha de o sentido só em parte está nas palavras é querer pintar um homem tendo por modelo seu cadáver.


Levantei com a língua, mas, engraçado, está mais parecendo que acordei com a macaca. As características assemelham-se: estou muito pentelho. Então, para não conceder primazia a um em detrimento do outro, acordei com a macaca na língua ou com a língua da macaca. Sinto que a criatividade e a ação são parte essenciais da existência. Meu conceito antigo de humanidade acaba de ser destruído. Em conseqüência, parto para uma re-elaboração desse conceito. Não aceito mais des-vendar o universo, trancafiado nos aposentos dos pensares e sentires.
Foram em verso as primeiras histórias, as primeiras arengas, as primeiras leis. Encontrou-se a poesia antes da prosa, e haveria de assim suceder, pois que as paixões falaram antes da razão. A arte literária não está nas palavras que a dizem, mas no que passa entre elas. Assim, o que me importa a mim se as origens são eruditas, clássicas, intelectuais? A poesia escorre por todas as alamedas, desfila suas dialécticas e contra-dicções. Passam entre elas a liberdade da criatividade e as utopias a serem criadas, inventadas, recriadas.


Paixões... Paixões... Paixões... E lá vem a língua cantar nos meus ouvidos que isto de ela estar sempre conubiada com as paixões é que estou carente, numa carência de dar dó, pena, assim "não há ideia simples porque uma ideia simples deve, para se tornar inteligível, ser inserida em um sistema de pensamento", então a macaca da língua satiriza o que de língua houver... A verdade poética, afirmada na imaginação, não pode ser pensada senão no terreno que lhe é próprio; noutros termos, a imaginação somente se dá a conhecer pela imaginação, pela dinâmica ativa da produção de imagens, adágios re-constituídos, "Acordei com a macaca...", metáfora da linguagem e estilo poéticos.


#RIODEJANEIRO#, 24 DE MARÇO DE 2019#

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