**VOZES SIMULADAS EM QUIMERAS** - Manoel Ferreira Neto.


(Título escrito aos 05/06.01.2004/Revisado ao 01/09/2016)



Quem diria?!
Aperfeiçôo-me na arte de ouvir as vozes simuladas em quimeras, dissimuladas em sorrelfas, de prestar atenção devida às suas inúmeras palavras bordadas e tecidas com a linha oriunda da agulha, a tensão e vontade explicita de pronunciá-las com vigor e pujança, dizê-las escorreitamente com os dogmas e preceitos da fonética, com o coração tranqüilo, o peito arfante de desvarios e heresias, o espírito receptivo a todas as manifestações, mesmo que não dando saltos de alegria e felicidade, como, às vezes, desejo, mas por impossibilidade, quiçá limite, não tenho é cor-agem e dignidade de rasgar as sedas e os verbos; aliás, é a natureza, a vontade é dizer tudo o que vem ao espírito, revelar as verdades todas que habitam os recônditos da alma.
Creio haver necessitado não atravessar o silêncio de entre estas manifestações com a própria ilusão de as coisas seguirem a minha vontade, desejo, sou quem as cria, re-cria, in-venta, constrói, e por isto mesmo é de minha obrigação, de minha suprema responsabilidade torná-las ao menos a minha verdade, embora contestada por todos em quaisquer lugar do mundo, nesta imensidão sem limites, neste mundo sem porteiras e cancelas, nesta terra sem mata-burros e confins. O silêncio em que me retrate sou eu, mas o silêncio vazio é que é o silêncio vivo.
Só alguém muito fino, de uma finesse sem igual e medida, pode entrar no silêncio vazio onde há um pensamento e idéia vazios, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a paixão não marca, que o amor não fundamenta, espera a completude ansiosa e aberta para seguir pensando e buscando intuir onde o espírito deverá estar, onde é ou se tornará o seu egrégio habitat. Perturba-me o mistério daquele compromisso com os tempos futuros, com os tempos para lá da velhice, para aquém da morte, em que serei tão nada como era antes de haver nascido num lugar onde, se as palavras não são mesquinhas, os espíritos são medíocres, as mentalidades são insossas, para frutificar e dar sombra daí a uma infinitude, a uma eternidade.
Eis-me, vez outra, e não me é dado saber quando irei, enfim, deixar de buscar a sua plenitude, perder-me e encontrar-me nele, perceber com muita clareza a afinidade que existe entre o sibilo de vento entre serras e a volúpia, ser ele a sala de audiência onde Deus me recebe para colóquios os mais sinceros, compassivos, solidários, para diálogos os mais percucientes e gnósticos.
Se me lembrou ora o início da fonte límpida do rio, como me surgira esta imagem, em princípio, ao longo do tempo, diante de experiências inúmeras e várias em quaisquer ângulos possíveis e impossíveis de visão, tornou-se a verdade incólume. Naquele momento, anunciou-se o que viriam ser as simples palavras, percebi-as, acolhi-as, re-collhendo-as da fonte, eram águas cristalinas que desejavam abrir as terras, vales, florestas, aspiravam regar os campos e pampas.
Aprendera um dos mistérios, e como estes não existem para ser desvendados, e sim para serem vividos, vivenciados, acolhi-os e recolhi-os no íntimo, os mistérios são as imagens, em cada anunciação de simples a elitizadas, podem tornar-se outras verdades, e ai será o momento de lhes consagrar inteligência e sabedoria.
Então um silêncio, longo, enorme, enquanto trago a fumaça do cigarro, expelindo-a, olhando-a desaparecer, deitado à rede de minha residência, perscrutando o imenso quintal todo arborizado, pássaros trinando, borboletas voando. Depois de longos e longos anos, eis que desfruto desse prazer novamente, sinto como se re-tornasse à minha infância, adolescência, e o sentimento é tão forte e verdadeiro que me ponho a passear por esse quintal como o fazia na infância, na adolescência. Estende-se pelo alpendre, sacada, a gosto de quem ouve e olvide, não me responder. Um mergulho com lentidão precisa e segura, um nada irreal, de escafandro. Não é verdade que não exista amor feliz. O que acontece é que a felicidade é experienciada, primeiro o desejo, depois a luta por a construir, e isso é no tempo... Se digo noutra linguagem: a felicidade dá tempo ao tempo. A agonia ou a ansiedade, creio que estão unidas, buscam as vozes simuladas em quimeras, palavras dissimuladas em fantasias, e não se é possível ouvir os cânticos que a felicidade entoa no espírito.
Se as vozes tudo perguntam, as quimeras nada indagam, só oferecem respostas, são músicas que fluem, permitindo que os sons se mostrem livremente. Resta-me apenas encontrar o tom com que abordar os sentimentos, sonhos, desejando a cada passo, seja no deserto ou na floresta íngreme, revelar o íntimo. Achado o tom para as abordagens à busca de revelações, espero que se abram vários eixos e que eles cubram a cidade por cima, um sudário.
Aumentando o calor, a sombra também se aquece, sinto o sol na pedra acima de mim, ele, bate, bate, como um martelo sobre todas as pedras, e é a música , a vasta música de meio-dia, vibração de ar e de pedras sobre centenas de quilômetros, ah, como antigamente, ouço o silêncio.
Sim, não é o mesmo silêncio que me acolhera há anos, quando me encontrava sem rumo e destino, desesperançado e angustiado, necessitando ouvir vozes que me dissessem algo sublime sobre a vida, mesmo que quimeras. Disse-me o silêncio mais que isto, mostrara-me o sublime e a possibilidade de atingir a sublimidade desde que estivesse dis-posto a abrir-me, deixando as coisas entrarem, esquecendo-me do que foi aprendido, aprendendo todas as coisas.
Desde então, o silêncio acompanha-me, ouço-lhe as vozes todas.
O prazer faz com que toque a tristeza da felicidade, a náusea do prazer e da alegria. É extremo. Conheço a voluptuosidade do vôo e do pairar do pássaro neste lugar nenhum, macio e claro, para onde o prazer me arremessa antes de esmagar-me no chão. Conheço a voluptuosidade de imobilizar o tempo num átimo de segundo e de prender por meio do corpo o corpo mesmo do tempo, antes que se esvaeça, tendo apenas aflorado. Conheço o êxtase e o logro do êxtase. Numa palavra, experimento agora a falsa eternidade da união e não reconheço nisso o meu presente.
Tantos séculos de silêncios armazenados atrás das cabeças conferem à solidão uma densidade de chumbo, e os minutos entre as frases que vou dizendo a mim próprio passam como horas. Até o momento em que os lábios, ou melhor, os maxilares se descerram, e são agora as palavras que parecem violar uma proibição, como uma rachadura fendendo um muro sagrado, os pintores deixaram neles a beleza das cores e das imagens.
Vivo horas cheias de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso mesmo, tão diagonais à certeza retângula da vida. São horas caídas nesse mundo de outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias.
Se pudesse ser sarcástico a ponto de me imaginar rindo, riria, sem dúvida, de me imaginar vivo. Vivo horas impossíveis , cheias de ser eu... e isto porque sei, com toda a carne de minha carne, que não sou uma realidade.
Que horas, ó companheiro de minha solidão, que horas de desassossego feliz, horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa. Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena, que as vozes simuladas em quimeras merecem o olhar aberto, os ouvidos atentos às coisas que existem.


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