**ROUFENHA ESTÉTICA DE UMA VOZ INSOLENTE** - Manoel Ferreira


Que instrumento é a voz humana! Como corresponde às emoções e sentimentos da alma, aos desejos e sonhos do espírito, às saudades e nostalgias do coração!
Instrumento que busca palavras para uma melodia que tenho e uma melodia para palavras que tenho, e as duas coisas que tenho, juntas, não combinam, ainda que venham de uma só alma, combinam, vindo de um espírito sedento de conhecimento, de contemplar a beleza essencial para continuar seguindo o caminho.
Não é a todo momento que surge algo no espírito tão nítido assim, tão pleno de vida e tão refulgente de beleza. Devo confessar que esperava um momento como este há muito, embora tenha até me esquecido, e as vezes que me lembrei não estive nem um pouco ansioso por se revelar, deixei-me livre.
Este é o tempo que posso experienciar o que há de verdade, de belo, de suntuoso nas inflexões e tonalidades da voz, nas suas inúmeras posturas e imposturas. Tem ela a força de me elevar e me conduzir para fora de intensas dores e sofrimentos para o estado de espírito melancólico, mas feliz que me domina quando ouço uma música sublime, uma voz rouca e altissonante, a disposição que vejo apartarem-se de mim os invólucros terrenos e contingentes. O que está sofrido e dolorido pode e deve pronunciar sozinho uma palavra decisiva sobre essas coisas. Apenas desejo a afirmação do sonho e do desejo como uma ilha de prazeres e felicidade.
Às vezes, o silêncio cai, e eu me reencontro, como uma criança brincando com mundos, como uma criança que acorda ao alvorecer e, rindo, esfrega a testa removendo dela os sonhos terríveis, os horrípilos pesadelos. De repente, acordo no meio desse sonho, o sonho da voz, este instrumento que corresponde ás emoções e sentimentos da alma, mas só para a consciência de que estou sonhando e tenho de continuar sonhando para não sucumbir.
A minha voz tem uma profundeza e um calor, como se estas palavras corriqueiras houvessem saído do coração. A tonalidade não consegue dissipar de todo certa inflexão que poderia ter eu tomado por aspereza. É como se um eminente e insigne musicista tirasse sons comoventes de um instrumento, tão profunda a sensibilidade que encontrara órgão na minha voz.
Meu coração inunda-se de lágrimas e exala profundos suspiros. Na grandiosidade de alegrias e contentamentos exultantes, não há qualquer irreverência em perscrutar a face alterada e jovial que se revela.
Estas poucas palavras têm a mesma música misteriosa, melancólica, cujo tom parece jorrar de meu coração, modulado na mais humilde, sincera, simples emoção. A agudeza dos sentimentos logo denunciam a mim uma respiração irregular, vinda de um lugar no íntimo que está imerso na obscuridade, ainda que sagrado.
Do sagrado, no qual acontece o milagre da transformação, da metamorfose, da mudança, nos quais o jogo do devir existe sempre, àquela mais alta e final humanização para a qual toda a natureza se dirige e impele, para salvar-se de si mesma, para transcender-se a si mesma, para encontrar-se a si mesma, olhando o mundo e os homens de cima.
A perseguição da felicidade da voz nunca será maior do que quando ela tem de ser apanhada rapidamente entre hoje e amanhã, entre uma impostura e outra, entre uma inflexão e outra; porque depois de amanhã talvez tenha se silenciado. Não consigo me portar com frieza crítica em relação à música das vozes; cada fibra, cada nervo meu estremece, e há muito não tenho um sentimento tão duradouro de completude, de plenitude. Por muito pouco não me torno mais eloqüente que o som desta voz, de todas as vozes que habitam o meu espírito e que ouço com toda a reverência.
Enquanto acendo a luz da cozinha para apanhar na garrafa térmica um pouco de café, pareço ouvir outras vozes vindas do íntimo. Um impulso açula-me, como se o meu coração estivesse tão cheio de amor que fosse preciso primeiro esvazia-lo um pouco para poder ouvir as outras vozes que se revelam, manifestam-se. Que impulso é este não sou capaz de o saber, mas se me afigura ser uma vontade de reter estas vozes, a fim de que as possa descrever com nitidez e perspicácia.
Ouço o murmúrio de uma voz estranha. É tão indistinta que não parecem palavras e sim a exteriorização de um sentimento de compaixão, solidariedade, simpatia, tão vago que o eco ou a impressão de meu cérebro é como irreal. Penso haver me enganado ou ser aquele murmúrio imaginação minha.



Manoel Ferreira Neto
(26 de setembro de 2016)








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