#RADÍCULAS IMPERTINENTES DO NADA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***



Se algum homem que tem problema sério de bílis, e isto haja, sem dúvida, exercido acentuada influência nalgum distúrbio do caráter e da personalidade, o que é rotineiro, comuníssimo, desejar dizer o que quer que seja, esteja imbuído com todas as suas justificativas, explicações, argumentos e oratórias, de toda a sua verborréia de convencimentos e persuasões, esteja desde este momento livre para todas as considerações e comentários. A carta é branca, podendo deitar e rolar à vontade. Pensando este homem que apenas dizer suas contradições não irá de modo algum deixar as palavras conhecidas e reconhecidas, pode tomar de sua pena escrevendo o que pensa e sente, fundamentando suas idéias e pensamentos, lendo; boa leitura com todos os estilos de entonações, ênfases é demais, os prazeres que lega são inestimáveis – assim, tudo está registrado e ficará por todo o sempre. Memória e testemunho.
***
Há quem finque os pés no chão, dizendo que os problemas de fígado causam sérios distúrbios psíquicos e emocionais no homem. Em verdade, digo deste modo, usando o que ouço e algumas vezes li, mas não me preocupo com a veracidade da informação, aliás, tudo isto é algo que semelha uma pequena raiz, ademais o que isto me afetaria para entrar nos méritos da questão? A impertinência destas radículas funda-se no desejo e vontade sentidos de encontrar uma idéia, um pensamento sublime, destinado a aliviar as crises melancólicas, nostálgicas, náuseas existenciais de nossa humanidade. Há quem afirme que o amor da glória temporal é a perdição das almas. Outros ainda afirmam que o amor da glória é a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem. Assim com todas as coisas: uns dizem algo, outros o desdizem, jamais se tem idéia do que elas sejam. Não o sei responder com categoria e empáfia. Não me preocupo. Se me preocupasse, com certeza, perderia a idéia original que é esta.
***
Nem por isto, por não haver preocupação com a veracidade da informação, quem quer que seja terá o direito e o dever de contradizer as palavras que agora pronuncio com todas as pompas e empáfias; não há o que não concordar, duvidar, terá num estilo simples e comedido que assumir a doçura que é a existência, existir é algo sobremodo doce, doce seco de laranja da terra não o é tanto, fazendo-me até sentir o paladar de uma cocada baiana, destas que são compradas em latas nas mercearias, acompanhada de um bom queijo mineiro – assim, não há paladar que seja mais agradável. Viver é algo muito doce.
***
Assim registrando, no início dizendo da bílis e logo de imediato sobre a doçura que é viver, é que estabeleço idéias contrárias: a bílis é amarga e a vida é doce. Não sei onde li, título e nome do autor, que um estilo que visa sobremodo a beleza é tecido através de idéias contrárias, o nada deles é o objetivo primordial da obra, o paradoxo, a estética vista à luz do paradoxo. Sem esta idéia, ser-me-ia de todo impossível qualquer criação, não apenas esta mas qualquer outra. É que deste momento em diante quero viver serenamente, metodicamente, ouvindo os soluços dos jograis nos salões de dança, os suspiros das damas nos chás vespertinos, algazarra dos jovens no barzinho, acompanhados dos amigos e namoradas, as conversas sussurradas dos doutos e celebridades, a euforia e a diplomacia, no jogo de consinto ou censuro as premissas e conclusões, no churrasco de domingo, após, uma partida séria e inteligente de pôquer, tomando vinho francês, chuva que tamborila nas folhas da samambaia à soleira da porta, e o som estrídulo de uma faca que o açougueiro está afiando ao lado de minha residência, com quem de quando em vez brinco: "Quando sua faca cortar de ambos os lados, quando só possui uma lâmina, aí acredito que seja açougueiro."
***
A vida rejubila-se-me no peito, com uns ímpetos de ventania no topo da serra, esvanece-se-me a consciência, desço à imobilidade física e moral, e o corpo faz-se-me planta, e terra, e pedra, e coisa nenhuma.
***
È o que penso comigo algum tempo antes de estar numa reunião de atores que vão encenar uma peça de teatro, intitulada “Milagre em Pitibiriba”, para que fui convidado a representar um Advogado de Defesa. Penso assim, imaginando um público que assiste à peça no palco, e os atores que representam para uma platéia, mostrando a triste condição de homens que estão diante de uma guerra, guerra esta que faz lembrar uma fala de Cassandra na peça de Eurípedes, As Troianas, “Todo homem sensato deve evitar a guerra”. É isso precisamente o que a peça demonstra: os Gregos destruíram Tróia, mas não tiraram nenhum proveito da sua vitória porque a vingança dos deuses provocou a sua perda total. A minha participação é defender os gregos, a intenção da defesa é persuadir os deuses a não destruírem a Grécia. Um país de cultura milenar, cultura que até os dias hodiernos traz as suas reflexões e meditações, um bálsamo para as dores da alma e do espírito, moléstias do psíquico e doenças dos instintos.
***
Porque, enfim, não levo em mira nenhuma recompensa ou virtude em pronunciar com todas as letras prenhes de intenções e desejos mais ingênuos, isto de a existência ser algo doce, viver é de uma doçura sem limites, existir é algo sobremodo açucarado. Cedo-me a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício de procurar despertar num simples mortal, se o conseguir com a metade dele, por mais impossível que seja a idéia da metade de um homem, estarei a sentir-me mais realizado do que se pudesse abarcar os sentidos completos da idéia e do pensamento.
***
Acresce que a circunstância de estar, não aquém nem além, não do lado de cá dos confins, à margem das cafuas, mas justamente no ponto de sentir o prazer de estar comendo um doce de leite com fatias de queijo, até babando de tanta alegria e contentamento. O mérito de estar degustando este alimento é positivamente nenhum. Simples isto de um doce de leite com fatias de queijo ou de queijão, valendo ressaltar que existe o requeijão e o queijão, este para o meu finíssimo paladar é mais gostoso.
***
Fico sobremodo desconsolado com isto, pois por momentos tive a sensação de que poderia ir mais profundo na condição humana, dizendo desta doçura que é o existir, haver um mergulho na busca de compreensão e entendimento disto que é estar desfrutando alguns segredos e enigmas das criações que, desde o início da manhã desta semana, estive pensando em abordar e procurar assim dar um outro sentido às criações.
***
Chamo-me pródigo por estar pensando em trabalhar com o gosto das letras que pronuncio com empáfia e prepotência, lanço um cinismo diferente dos que até o momento estava acostumado, precisando de haver uma mudança mais sutil, inclusive o amadurecer e o crescer da idéia e das atitudes do mundo. E, enquanto isto, o homem que tem sério problema de bílis amargura-se por não poder comer as palavras; até que pode, mas comê-las com os olhos.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 31 DE MAIO DE 2020, 00:36 a.m.#

Comentários