#ESTRELAS VELAM O OSSUÁRIO DA TERRA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ***



"O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a redenção, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS..."+
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“... porque a sabedoria abriu a boca aos mudos, e tornou eloqüente a língua das crianças”
(Sabedoria, 10,21)
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A face da serra, voltada para mim, frente aos olhos, ilumina-se agora toda, branca e solene. Como um olhar gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge. Calado, ouço o que me segreda a água – esta que cai a todo instante lá fora, regando os jardins de rosas brancas, canteiros de flores vermelhas, amarelas, no tronco da mangabeira, orquídeas lilases, as calçadas de residências e comércios, descendo as ruas, seguindo o seu destino, tudo se destina a algo, não tenho comigo nada que contrarie esta verdade, deixando-as lavadas de todo o lixo que os transeuntes deixam nelas, enquanto andam daqui para ali, com seus afazeres e obrigações, simplesmente espairecendo as idéias das tensões por com-preender e entender as contradições da existência e do mundo ou passeando descontraídas, sentadas à mesa de lanchonetes, tomando um lanche, jogando conversas fora com amigos ou íntimos, neste segundo em que, de costa, sentado em minha cadeira de balanço, busco escrever este momento por intermédio de uma descrição subjetiva e emocional.
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Letras de solidão e sombras.
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Quem sabe devesse eu tecer algumas considerações que penso e sinto serem primordiais no sentido de tornar lúcido o que dentro trago em mim, o paradoxo, que, por vezes, não encontro modo algum de definir, conceituar as situações indecorosas e inconseqüentes em que me envolvo, muitas vezes tendo de calar-me, nada dizendo, deixando-me exposto a todos os ventos e sibilos deles de entre as serras e montanhas. Há quando penso comigo que questiono a natureza da arte, expressá-la de modo exemplar e único, num estilo muito particular e singular, tendo então de carregar a tinta no que há de contraditório, sem senso, quem sabe assim atingindo o efeito pretendido, o que requer submissão às constantes análises sobre a própria produção quotidiana. A ideia assume o papel de um motor que faz a arte.
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Escrevo absolutamente de memória, - procuro, principalmente, por emoções que provocam não somente sentimentos puros, mas também os que buscam uma sensação nova, intrigante, complexa, multifacetada, dilacerada, ambígua, e, ao mesmo tempo, tênue, como o sentimento de deslizar a mão no forro de seda da mesa da sala de estar -, sem documentos, sem material que me ajude a recordar. Há na minha vida acontecimentos que me estão sobremodo presentes como se acabassem de acontecer; mas há lacunas e vácuos que só posso preencher com o auxílio de histórias tão estranhas quanto a lembrança que delas me ficou.
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E, em me referindo ao ambíguo, não posso deixar de registrar, ainda que penso não devesse estar tecendo tais considerações, para que irão servir, pergunto-me, angustiando-me, pois que não saberia responder por elas. O ambíguo se me apresenta num campo aberto de sentidos, revelando ou sugerindo diversos significados, símbolos, signos, metáforas, às vezes até opostos, sem confirmá-los jamais, se o fizesse, creio, perderia a sua originalidade pois que intencionam ser imagem do mistério, efígie sinistra. Como o objeto ambíguo aponta aspectos e valores múltiplos, perpetua-se o equívoco, que não se extingue, não se dissolve, mesmo quando, por um instante, penso que encontrei o sentido verdadeiro.
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Na minha opinião, a ociosidade não é um flagelo social menor do que a solidão. Nada diminui tanto o espírito, nada engendra tantas ninharias perniciosas, intrigas, aborrecimentos, mentiras do que viverem pessoas eternamente fechadas umas defronte das outras numa sala, reduzidas, como único ofício, à necessidade de tagarelar constantemente, parecendo-lhes que palavras e sons encobrem todas as carências da alma.
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Sartre afirma que a fenomenologia do ser humano, isto é, a descrição de como se manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele não é um ser em si, mas que se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se abre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele se recusa a aceitar que esta abertura tenha um objeto.
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Um colóquio mantido desde há dias, cuja aparência ou cujo destino, sempre que a água me confia uma boa nova, entreolhamo-nos ambos, assim, com pensamentos id-ênticos, contentes de termos recebido a mesma resposta à mesma pergunta, e nem sabemos em palavras dizer. Tenho de prosseguir trabalhando o fio tênue de água que escorre na vidraça, tecendo sempre mais de teia na obra, esse fiozinho frágil, único, todo dia, toda hora, perdendo e retomando o fluxo de sonhos, idéias, lembranças, para adensá-la enfim numa suave melodia, em que, ao final, as horas tristes e compridas são agora leves e prazerosas, o tempo reverso às intenções de abrigar-me seguro nos sentimentos de prazer e alegria torna-se o coração dos desejos mais profusos da existência espontânea; os olhos não tiveram de desaprender de chorar, se porventura choravam antes. O tempo desata de imediato todas as saudades e ressurreições. Diminuir-se-ia a emoção, decerto se anularia, se as idéias visassem a uma demonstração.
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O mais não digo para não dar a esta página um aspecto misterioso, místico, enigmático, mas posso imaginar, na dobra do lençol sinto os dedos leves tocarem-me como tocava o piano, tu tocavas “Canção Agalopada”, e te sentias volúvel e susceptível, tu tocavas para ti e para mim, tu tocavas as nossas almas em uníssono repletas de esperança. A alegria sutil e perspicaz desde o fundo da madrugada, desde o silêncio que projeta as imagens até ao limiar de sua evid-ência e também de sua contingência. Como um olhar gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge.
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Deus tem pleno sentido, Deus só tem sentido existencial se for resposta à busca radical do ser humano por luz e por caminho a partir da experiência de escuridão e de errância, de solidão e sombras. Ou simplesmente pela experiência iluminadora de sentido que deriva da vida, da majestade do universo, da inocência dos olhos da criança.
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Deus olhou suas criaturas e com divino e paternal cuidado constatou que a solidão não lhes faria bem, não realizaria suas vidas. Olhou-as com um olhar preocupado, sentimento de alguém que só quer o melhor para elas, pois na vontade divina não cabe a solidão, nela nada cabe. Con-templo agora nós, geração marcada por estar assim, tão só, desolada, perdida na imensidão do mundo. Mergulho em alguns temas procurando respostas... Vejo a solidão com três faces: a primeira, espiritual. Quanta gente só, diante do mistério, diante do inefável, diante da Vida. Não escuta Deus, não fala com ele, não o encontra, não o pensa, e ainda tem a petulância de ser ateu, o maior inconsciente é aquele que negligencia a sua inconsciência. Falar de Deus os homens somos capazes mesmo sem palavras, mas falar com Deus é necessário haver palavra que possa Ele ouvir, e esta só poderá ser dita através do Amor e da Compaixão. Que solidão terrível, esta: a criatura desencontrada do seu criador, semente sem campo para germinar, alma que ainda não encontrou o caminho da própria casa.
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Não sei mesmo se vocês os homens já passaram pela situação de ouvir alguém agradecer ao outro por ele existir. Nossa!... É uma experiência sem limites. Às vezes, digo à minha companheira: “Que bom que você existe, meu amor!...” E sinto bem fundo a não presença da solidão em mim, da sombra em seus olhos a perguntar-me de meus verdadeiros sentimentos por ela.
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Estendo-me ao longo do que trago interiormente em mim. Amável faceirice substitui a ternura. Acho que nunca me esforcei tanto por desejar e querer a vida, senti-la-sendo em mim, ouvi-la, dizendo suas palavras de sabedoria e conhecimento; por agradar–me nem nunca fiquei tão contente comigo mesmo. Posso ocultar-me na luz de um abat-jour aceso e fazer de mim, de minhas próprias desgraças, infortúnios, infelicidades, e alguns momentos de alegria, júbilo e glória, um modo de descobrir-me, revelar-me, enfim, de ser-me. Posso expressar-me com empáfia e sabedoria, posso oferecer a Éblis uma gota de lágrima por estar feliz e contente com o conhecimento adquirido de quem sou, e pela indiferença da oferta o demônio imundo não irá se insatisfazer.
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Certa vez, Camilo Castelo Branco disse: as almas infelizes envelhecem cedo. Esta é uma das maiores verdades que conheço. Como é grande a força da tristeza, da desolação, do medo! Como ela nos envelhece! Marca nossos olhos com sombras frias, encurva nossos ombros, estica a corda da vida, anda-se nela como se a qualquer momento pudesse se romper...
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O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a redenção, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS, e quem a outrem, que en-vela e re-vela, não poderá, Senhor, alguma vez, desalgemar de mim as mãos rápidas de gestos, deixando-me-ser aos olhos e ouvidos atentos e à minha nítida simplicidade de Alma?


#RIO DE JANEIRO(RJ), 21 DE MAIO DE 2020, 06:30 a.m.#

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