DE ONDE A CURVA RE-CONSTITUI VENTOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ***



Encontro da vida, a vida de encontros, a vida de re-fazendas...
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De tempos em tempos, tenho de acreditar que sei por que existo. Se me é assim tão difícil saber, sirvo-me do talento e dom gratuitos para desejar esta sabedoria, para estabelecer um saber, para inventar um conhecimento, e sigo a longa estrada de onde a curva re-constitui ventos, mesmo que me conscientize de que a sabedoria desejada e sonhada não é ainda aquela que a minha espécie acredita não poder germinar sem uma confiança periódica na vida. Os estabelecimentos e invenções, assim acreditam os de minha espécie, não são ainda a fé na razão de viver.
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Se a vida não me reservara nenhuma felicidade, quanta vez assim o pensei, quanta vez assim o senti, mas algo de mais profundo gritava e murmurava no intimo, dizendo que se não me reservara a vida felicidade alguma, se nada usufruí que constituisse um tesouro, lembrando-me com justeza a felicidade consiste essencialmente em querer-se ser o que é,
a-felicidade-consiste-essencialmente-em-querer-se, deveria, então, criar e re-criar os incomensuráveis momentos dela, acreditando que são eles que criam a felicidade, pelo menos assemelham-se muito à felicidade, sobretudo pela intangível e etérea qualidade que desaparece a um exame mais minucioso.
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Diziam-me as muitas vozes que a gozasse enquanto pudesse, não fizesse perguntas, não murmurasse palavras de não, mas contribuísse com o que fosse possível para me sentir feliz.
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Com aquele aspecto infantil, melancólico, embora às vezes jovial e parcialmente inteligente, aparecia pela fresta da cortina da janela, observando a monotonia das ocorrências quotidianas com um interesse inconsequente e virando-me a cada palpitação do meu coração para o quarto solitário de todo, o único recanto em que por toda a existência senti-me seguro.
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Da janela, ouvia o silvo estridente da locomotiva e, se me inclinasse um pouco, veria de relance os carros brilhando rapidamente no final da rua, esperando-a passar. Minha emoção era sempre nova e parecia afetar-me tão desagradavelmente e com tanta surpresa na milésima como na primeira vez. E por que? Poderia vislumbrar os poemas do silêncio não desesperado, "Que alcem-me às emoções/E me acordem da bocejante sobriedade/Sendo mais um excitante no dia-a-dia/No "Modo de Vida" deste eterno rebelde/Ao equilibrar-se no simples/natural às dificuldades." Nada revela tanta decadência quanto esta perda de lidar com os homens, com as pessoas, e de acompanhar o momento atual. Só podia ser uma animação transitória a passagem da locomotiva à porta de minha residência, pois, se o poder desta afetação perecesse, de pouco valeria a imortalidade.
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Precisava do silvo estridente da locomotiva, de um mergulho nos sons de ventos reconstituídos pelas curvas por onde ela passava e seguia o seu itinerário, onde ficasse imerso por algum tempo, para depois voltar à vida vigoroso, reintegrado no mundo e dono de mim mesmo.
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Reconhecia no fato de ficar à janela de meu quarto, enquanto passava a locomotiva, a proteção divina para comigo, pobre criança abandonada, que devia ser perdoada por me considerar um deslocado, esquecido e deixado ao sabor de encarniçado limite.
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Há sempre uma enorme confusão quando o espírito foge do momento presente, seja para o passado, seja para o mais longínquo futuro, tornando-se o corpo guia de si próprio. Confusão maior deveria ser a minha cujos deveres atuais estão compreendidos em tão minuciosas minudências. A vida e a realidade de minhas emoções tornam todas as circunstâncias imateriais como fantasma de um cochilo semiconsciente.
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De qualquer modo, acho a imensidade suficientemente grande e a eternidade suficientemente longa para todos os homens, para toda a raça humana, para toda a humanidade. Tento entabular um itinerário propício para as descobertas essenciais, impelido pelo bondoso impulso de tornar as horas mais agradáveis que as anteriores e as que ainda sobrevêm os sentimentos mais sublimes, por vezes angustiantes.
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A presença da vida – sonhei que sentira de todo a presença da vida em mim, tão forte e refulgente esta presença que me olhei de cima a baixo procurando-me, não me lembra se encontrei esta vida no que olhava em mim, o corpo – é tão agradável como um brilho de sol caindo sobre o chão através da sombra de folhas balouçantes, ou como o revérbero da luz da lareira, dançando na parede, enquanto a tarde se transforma em noite.
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Dia claro, luminoso, de atmosfera santificada, em que o céu parece difundir-se sobre a terra, num solene sorriso. Hoje, se fosse suficientemente puro, sentiria em mim, em qualquer que estivesse, o culto natural da terra.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 30 DE MAIO DE 2020, 07:51 a.m.#

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