#MORRERAM TODAS AS MORTES# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ***



Epígrafe:
"Então, a separação, o silêncio tomaram-lhe de surpresa!..."
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O mundo é ignorante para tantas coisas, até para si próprio. Que sabem os homens de nosso tempo da miragem que é oásis de alegria, da alma que soletra equilíbrios e verbos, da vela do lado de fora cujas chama e luz observam alguém dentro do seu quarto, alcova ou escritório, do olhar da lua reclamando por uma canção, de Deus derramando sobre o universo todo seu amor sobre os bons e sobre os maus?
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Talvez algo saibam, mas as vozes custam-lhes a surgir, as palavras mais ainda, ou talvez não esteja com isto relacionado, mas simplesmente nada sabem, não sabendo, o que poderão dizer. Para quem as palavras jorram na fonte originária do rio, saem de modo fácil, não lhes interessa nem um pouco isto que é miragem que é oásis de alegria, da alma que soletra equilíbrios e verbos, interessam-lhes unicamente rasgar as sedas e, de quando em vez, os verbos. Os homens de nosso tempo não sabemos nada disso, o que isto quer dizer, se interessam pelas suas conquistas, aquisições, seus bens materiais, econômicos, intelectuais, e isto nem de longe lhes interessa.
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Observo e vejo as noites sem conversas na varanda; outrora, foram conversas eufóricas, apaixonadas, em tom bem alto, e, às vezes, não respeitava a sua vez de replicar ou somente de falar - meu Deus!... quanto orgulho e pompa de conhecimento e sabedoria! Restava apenas babar-se em si próprio -, ouvindo-se muitas vozes de imediato, sendo até impossível distinguir a razão e os motivos de estarem tão apaixonadas estas conversas, o que motivou esta toda paixão. De sua parte, conversas intelectuais de alto nível, mescladas de seu orgulho impregnado na alma, orgulho familiar, aquela pompa de grande excelência. Talvez fosse a hora de uma dança ao ritmo de balada, mas não necessitava disto, as palavras fluíam livres e espontâneas. Agora, não existe única voz, único sussurro, o som ínfimo da respiração de alguém. Morreram todas as mortes. Não mais são ases do mundo, do conhecimento, da sabedoria. Ninguém há na varanda.
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Até a lua nasceu por cima do telhado e a varanda não recebe a sua luz, permanece na escuridão, embora a claridade da noite. Acaso existe aqui uma intenção de sarcasmo, não o sei, não pensei nisto, mas num passo de mágica surge livre, talvez por ouvir de longe uma música que ouvia, isto teria influenciado, não era deste tempo das vozes de pessoas reais na varanda, não olhava alguma varanda, a varanda era de minha infância, em minha residência. Creio que seja “How do you sleep?”, John Lennon. Tenha surgido o sarcasmo. Não pensara que teria consciência da farsa, falsidade, mentira daqueles tempos. Mas o momento chegaria límpido, e outro sentimento não seria senão a liberdade. A liberdade, a solidão são dimensões a serem vividas. Compreendo que nisto não haja nem uma pouca sombra de sarcasmo, mas tive desejo de apresentar algo sem qualquer sentido, a fim de mostrar que não pode haver qualquer sarcasmo em a lua haver nascido por cima do telhado, nem sempre seria assim, nalgum tempo iria incidir-se na varanda, iluminando-a de todo. É que me lembrei de quando a despedida, a lua estava por cima do telhado, fora a última vez em que estivemos reunidos. No outro dia, pela manhã, tomaria o ônibus de volta à cidade onde estava residindo. Não esperei o seu evento de publicação de livro. Tempo depois, disseram-me que a minha ausência no lançamento fizeram a diferença para todos. Ficou aquela indagação de por que não estivera presente. E dez anos após, a última conversa através de ligação telefônica, o interessante é que a xícara de café estava sobre a mesinha, cafezinho da hora. Nada mais.
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O restinho de café ficava no bule lá no fogão. Na  medida em que a conversa ia continuando, as euforias, os êxtases, as paixões, era necessário um gole de café para ainda mais incentivar, estimular os espíritos para a conversa, para a demonstração de seus sentimentos e paixões, para a anunciação de suas verdades, para a revelação de seus espíritos, de suas sabedorias. Resta um pouquinho apenas de café no bule, frio, pois que o tempo passou, ninguém mais precisou tomar o café nos ínterins das conversas, nem mesmo necessitou de jogar o resto fora, fazer outro, café frio é simplesmente intragável.
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Escuto canções  de Elton John, enchem o escritório, gotejam em ritmos e melodias de chuva, como se o céu soubesse executar a lira das saudades e ausências. Há um nó górdio na garganta, o coração parece sem alimento. Lembrou-me de minha preferência pelas jabuticabas, pelas tardes, quase ao começo da noite, sentado à sombra da jabuticabeira, encostado ao seu tronco, vendo o rio, as águas que são sempre outras no ponto em que os olhos estavam fixos... A delicadeza da vida me fez partir num tempo em que as jabuticabas estavam prontas para a colheita.
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Quem haverá, se é que alguém há, que ande pelo quintal dizendo que já não caminho mais nele, não me sento à sombra da jabuticabeira, não ando sem rumo para cá e para lá, mas nalgum lugar estou e, quem sabe, esteja bem e lembrando-me das tardes, quase ao início da noite? Talvez não haja ninguém que o diga, há somente quem se lembre, e este alguém sou eu próprio, e este quintal só existe na minha imaginação.
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Para o equilíbrio são  necessários zelos, esmeros, de minha parte. Tenho que purificar o cálice de água, antes de a tomar, erguer o templo, antes de nele viver, e, ao caminhar, descobrir que não venho para rastejar, muito embora o tenha feito, mas isto no início, no êxtase das primeiras conquistas, das primeiras percepções de todas as estradas, de todos os caminhos: é bem para além das arribas que as “coisas” acontecem, que as coisas anunciam e revelam vida.
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Ninguém mais existe nesta residência, fora vendida, segui as estradas, felizmente que um tempo é somente memória, o pior da memória é que o tempo a transforma em imaginação, este tempo das conversas na varanda é apenas uma lembrança. Se agora me lembro disto, bem não o sei explicar, talvez seja a chuva que caíra pela madrugada, e eu, enquanto fumava um cigarro sentado à mesa da cozinha, comecei a observá-la.
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Ironia isto de estar a me referir acerca de um tempo de minha vida, e, lendo, não se é possível detectar o tempo, eis um segredo que não consigo de modo algum desvendar, bem acredito que isto é um estilo de revelar a esperança. Nalgum futuro, poderei perceber que não é mais apenas a esperança, de revelar a esperança, a fé, a busca, o sonho, as realizações, os encontros...
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Vejo surgirem das montanhas, dos interiores, das colinas e vales, bosque e mar imagens de homens trazendo em mãos boquetes de rosas para esse tempo. Conversam, como se já fossem íntimos, como se já conhecessem desde a eternidade.
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Interessante isto: em primeira instância, não há mais as conversas apaixonadas, altissonantes, na varanda. Nela, reina um silêncio profundo. Ao longe, surgindo das montanhas, interiores, colinas e vales, os homens conversam, como se fossem íntimos, como se já se conhecessem desde a eternidade. Trazem nos olhos a esperança há tanto guardada. Trazem no peito a fé há tanto envelada. Trazem na alma e no espírito a misericórdia e compaixão há tanto esquecidas. Conversam, como se já se compreendessem e entendessem. Escuto os risos, que enchem a tarde, quase início de noite.
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O que será que trago interiormente? Quais lembranças têm o poder de mexer no meu presente? Será a lembrança de estar sentado à sombra da jabuticabeira, recostado ao tronco? Será a recordação de na varanda as conversas terem sido altissonantes, eufóricas, apaixonadas? Quais lembranças e recordações me levam para uma janela, fazendo com que o olhar se perca em além montanhas?
Há épocas da vida em que o passado fala alto, faz calar tudo ao redor, o peito pleno de passado, de tempos idos, de outroras de idéias e pensamentos. É como se invernasse tempo adentro. A vontade é de caminhar à beira do rio, em direção à sua fonte originária, em tarde alta numa lua nascente...
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Se acredito que existe uma outra vida a ser merecida além desta, não posso viver sem buscá-la, sem desejá-la, sem ter vontade dela. Neste caso, em tudo que vivo, devo levar em conta a busca, a reflexão, a contemplação.
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Amando a liberdade, as angústias se retraem. Sinto-me bem, à vontade, o amor me tranquiliza sem perceber, sem falar nem fazer nada de especial, simplesmente estando no peito, disponível. Com o amor descobri as contemplações serenas. Amizade mesclada com desejo. Ternura mesclada com vontade dele. Não sinto necessidade de um retiro, de conversas intelectuais, regadas de filósofos e literatos os mais lídimos, para enxergar mais claro dentro de mim próprio. Sei que o amor habita em meu coração e graças a ele estou bem melhor. Não rastejo mais à procura de amizade, consideração, reconhecimento. A solidão é a minha sabedoria.
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Às vezes, quando fico triste, basta-me pensar nisto que me habita, basta sentir as sensações todas que me perpassam a alma, basta sentir os sonhos que fluem livres e espontâneos, basta ouvir as muitas vozes, para sentir a tristeza dissolver-se numa chuva simples e terna.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 24 DE MAIO DE 2020, 13:27 p.m.#

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