#NAS CURVAS DE MONTANHAS OUTRAS A MÃO QUE VIBRA DE SENTIDO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA



A rua que tomei desce, em declive. Tenho a sensação de já ter andado pelas vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. Não é de periferia, na Praça Rutten, centro do municipio. De alguma parte chega-me aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba nuns degraus que conduzem a um beco em nível inferior.
****
Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro lado do beco, há um barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na verdade estão cobertas de pó. Frente, há outra rua, cartomante, curandeira atende os clientes. Há uma neblina fina entre o olhar e a imagem, seriam coisas da visão exausta? Algum som que desconheço, um sibilo, que, entre serras, manuscreve o pórtico partido para o Impossível que não deixa em seu atrás senão seus vestígios de harmonia e serenidade.
****
Para quem todo o passado não é estrada de um diminuir, denegrir, subestimar, mas, ao invés, um prado enorme que nenhum revés do estrangeiro nunca toca, vale sem limites e fronteiras que nenhum estranho jamais em toques desenha os gestos da caricia, bosque off-limits onde perscruto o intrincado das galhas e folhas das árvores, possuo a arte e engenhosidade de ouvir os sons que se apresentam ao espírito, aos ouvidos, ritmos e melodias se pres-ent-ificam na inspiração... O automóvel segue em velocidade amena as vias.
****
Reclino-me, então, na cadeira,
Desembainho um olhar afiado e comprido
Ao longo do quarto em que me encontro ora,
Dando continuidade ao trabalho,
Dando continuidade à vida que se me a-nuncia na sublime trans-cendência do verbo e do tempo.
****
O ser humano, em seu olhar para o ser,
Deixa-se prender por ele,
É removido para além de si,
Estende-se ao mesmo tempo
Entre o si e o ser,
Esse ser-erguido-para-além-de-si
E ser atraído pelo próprio ser,
Eis o Eros.
====
Quando se traduz o pensamento em palavras, as coisas todas, os homens todos parecem razoáveis, o prado enorme que nenhum inverno toca parece inteligível, o vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia afigura-se mágico; mas quando se considera os seres humanos que passam pela rua a idéia transforma-se em ato de fé.
****
O grande papel é a vivência de extrema lucidez que percorre além de todos os limites do tempo, que passa fora da cerca, e que nem as flores senão flores, a terra de quando em vez estremece, rolam as ondas, algumas vezes sua fúria de compreender suas próprias ilimitações não deixa apenas vestígio, mas ruínas. Pensar como quem anda um caminho é pensar um caminho, é pisa-lo e senti-lo por baixo, senti-lo interiorizando-se em cada dimensão. É chupar um fruto e saber-lhe o sentido.
*****
Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm lúcidos nas curvas de montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre, e os dedos, movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos articulados em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a voz da Terra, que é tudo e ninguém é ninguém.
****
O que na verdade desejo saber é se há mais liberdade, se há mais esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia inteiro a esperança exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de seu ventre, será a luz que llumia a passagem, a travessia de um tempo a outro, a decisão febunda o quotidiano das coisas e dos homens, a coragem de torná-la verídica, real, senão apenas instantes de re-presentação, fecunda as utopias, a erosão do tempo no silêncio, a irrealidade do real. Calada, vem a boca sorrir, novo alvorecer, aurora para todos.
*****
Pela primeira vez, eu, quem sou um ser votado aos sonhos, às utopias, pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração pelo instante-limite da realização e da felicidade. Numa palavra, pela possibilidade. E pela primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela esperança. É um amor pedindo realização, a concepção, a vida possível.
Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso enxergar bem na tela do computador com os óculos embaciados. Tento, embora com certa isenção, o golpe da inteligência de poder ver no assoalho deste barzinho miserável o fruto de alguma esperança de outrora.
#riodejaneiro, 22 de dezembro de 2019#

Comentários