#DE VOLTA PARA CASA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: CRÍTICA



Intui-se a personagem, percebe-lhe, cria-se-lhe as situações e circunstâncias... Mister encarnar-lhe, afastar o "eu" do autor, ser a personagem, dar-lhe nascimento, tornar-lhe real no mundo das coisas, dos objetos, no uni-verso das contingências existenciais.


O interesse, a intenção da escritora Graça Fontis não é a criação de uma personagem, mas o homem real, encarná-lo, representá-lo, a encarnação será inda mais profunda, considerando o homem que é um escritor, descrever-lhe e descrever um instante de sua vida, o homem e o escritor presentes, IPSIS LITTERIS como o próprio título da obra a-nuncia, indica.


O instante é a viagem do escritor Manoel Ferreira Neto, viagem de consumação de um tempo, início de outro.


O início revela que a escritora Graça Fontis refletiu, contemplou os passos do escritor, perscrutando os lugares e sítios, por onde andava, tudo o que via, naquelas últimas horas antes do embarque, os sentimentos e emoções no momento de despedir-se dos amigos, dos íntimos, e sempre aquele pensamento que lhe adveio presente e profundo da alma, "Não, não voltarei", o homem não mais voltará a pisar naquelas ruas, avenidas, alamedas, becos, não retornará àquela terra, aqueles passos eram a cerimônia do adeus, determinando-se a memorizá-los um a um. Um tempo findava-se, uma vida esvaecia-se, outro homem a-nunciava-se, maduro e consciente estava para o nascimento do novo, do inédito. Nestes passos surgiram-lhe medos, hesitações, temores, alfim nem em imaginação poderia saber o que lhe esperava, por que sendas e veredas andaria, as decisões e consequências, as des-aprendizagens e aprendizagens, decepções e frutos, fosse como fosse a certeza e a segurança de que não retornaria.


Brevemente, traçou os últimos momentos. Hora do embarque, lembranças e recordações de vivências e experiências, "verdades pretéritas", jogado no mundo à procura de sua casa, um itinerante, "no rosto horror inexpressível e um gélido asco de indiferença", indiferença ao vivido, indiferença àquele lugar, indiferença a tudo que dizia respeito àquelas plagas, nos olhos as últimas brisas faiscando, misto de decisão consciente e felicidade pela cor-agem de se entregar inteiro ao homem que se a-nunciava. Transpassou o seu "inferno latente", re-colhendo-se nos recônditos de sua alma, sentir os sonhos e ideais que se concebiam, as utopias que nasceriam, mister refletir bem intimamente, incendiando o "vale da solidão" as chamas do fogo a habitar-lhe, fogo da vida.


Hora de partir, sobe os degraus do ônibus, último olhar a todas as coisas, olhar de prazer, de satisfação. O ônibus parte, através do vidro da janela, a certeza e a convicção de que escreveria, escreveria, a missão das letras continuaria para que os seus pensamentos não caíssem no esquecimento, um homem morrera, o espírito viveria noutra carne de sonhos e esperanças, noutros ossos de ideais e utopias, faria diferença, as palavras outras construiriam horizontes e universos diferentes, alfim era homem incomum, acreditava no há-de vir, no há-de ser, as coisas misteriosas decifradas, o mundo ilusório era seu, pertencia-lhe, faria dele a verdade.


Estrada a fora, "sobrepondo pedras, padecendo sublimadas saudades e subjugado a um interesse especial, ativo e recente, no mais fundo, profundo pensar..." O que fora vivido? Mentiras, falsidades, farsas, hipocrisias, a sobrevivência era-lhe mister. As letras não eram ilusões, fantasias, eram reais, extraia-as das "interdições da alma", das contingências do dia a dia, dos momentos mais sensíveis de contemplação. Confidenciava no seu particular o que era, como era, engolfado nas querências "utópicas e devaneicas". E as letras ditavam-lhe o novo destino que traçava naquela estrada a fora, embora a opacidade do "véu expectivador do futuro". Estrada a fora palavras aludidas, murmúrios, sons de mistérios adentrados. A alma cansada, esgotada, exausta de um itinerante o vento de procela revelava, inquietude. Idealista, não gostava da vida e noites frustradas; idealistas não gostam de solitários. Não mais um itinerante, seguiria no seu implacável caminhar pelos labirintos futurais. Não mais um homem à procura de sua casa, onde residir, onde habitar, estava de volta à casa que sonhara, idealizara, torrentes de amor sentia-lhes no âmago da alma, torrentes em direção ao mar, encontro da serenidade, das águas, ondas, "ornamentando as bordas do inaudito", extremo sol tendo abaixo absurdo silêncio diante dos homens. A dor bastarda sem sonhos já cedia a luz aos voluptuosos porvires, desbravava a gravidade do novo tempo, indiferenças e prazeres efêmeros esvaeceram-se aos poucos por conta da grande lua sobre a escuridão, naquela viagem, iluminando os sonhos, nenhum cobertor da ilusão cobria-lhe, eram reais os sonhos, as esperanças.


Termina a viagem, alvorecer no Rio de Janeiro, primeiras luzes da manhã. Sua liberdade e dignidade eram as razões para a volta a casa de suas idealizações, sonhos, utopias, iria habitá-la, conservar nela seu poder cognoscível, suas mais profundas quimeras do amor viveria, deitaria sua cabeça no peito deste amor, sentindo felicidade e alegria.


Esperava-lhe na rodoviária a artista-plástica, pintora e escultora Graça Fontis, a mentora intelectual e artística e a mulher do novo homem. Levar-lhe-ia ela para sua casa, onde viveriam os sonhos da vida e das artes.


Tudo atrás ficou lendário.


(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE JANEIRO DE 2018)
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IPSIS LITTERIS
GRAÇA FONTIS: TEXTO


Naquele dia, solo de calor extremado, inusitado de inverno que se viu na gosma do que, aos poucos, escureceu, sentiu medo no coração espaçado, apaziguou-se com um grande ranger, borrifando-lhe intencionada certeza - "Não, não voltarei". Assim, embrulhando os acontecimentos na palidez do rosto desconhecido, como um fio a partir-se na tensão do breve gesto partiu no mesmo silêncio regulador da sua sobrevivência na manhã triturada do assoberbado, no mundo faiscante, sombrio de indecisas sombras ruidosas, no chão partido pelas coisas passadas da vida.


A mente crispada à aproximação de pretéritas verdades plantando no rosto horror inexpressível e um gélido asco de indiferença ao meio sono, ardência dos olhos nas últimas brisas na boca da noite. Transpassou ele seu inferno latente, recolhendo-se na floresta interna, ao ermo, também no fogo que em si abrigava, incendiando o vale da solidão.


Na vida apaziguada na compreensão, com olhar de prazer um caminhar de humor, dando ênfase à dança melancólica sem falas soberbas da mentira, mais certo de que mentes não gravadas são mentes esclerosadas, então escreveria, escreveria para que não caíssem seus pensamentos no esquecimento, mas sim que fizessem a diferença através de outras palavras, rindo dos homens que em nada acreditam, muito menos das coisas misteriosas e verdadeiras neste mundo ilusório só seu.


Integrados aos olhos calientes e francos lábios interrogativos, leitores das próprias inexperiências morais e práticas às deleitosas e sublimes intuições incorporadas de odores e intimidades das coisas que o cercam, foi pisoteando estrada a fora folgadamente, sobrepondo pedras, padecendo sublimadas saudades e subjugado a um interesse especial, ativo e recente, no mais fundo, profundo pensar... "que as letras não são uma ilusão; são reais ao extraí-las do simples colorido a banharem interdições da alma, saciada das contingências do dia a dia, resplendem imagens aquém, além e inauditas dos momentos mais sensíveis de contemplação. Já o estalar de meus ossos nesta longa jornada confirmam confidenciando no meu particular o que sou, como sou, neste misto de querências utópicas e devaneicas, quiçá viáveis às palavras aludidas, murmúrios, sons de mistérios adentrados, vindas de um outro, fantasma do próprio tempo, ditando-me novo destino através do opaco véu expectivador do meu futuro."


Aquando na noite, entre os que dormem, e os poucos da madrugada que não dormem, há um eco de passos descompassados na rua dos solitários, e um vento de procela revelador da inquietude da alma cansada; já conturbado reflete "idealistas não gostam de solitários! da vida e noites frustradas, o ímpeto da transformação, resoluta desfiguração das contristadas escolhas seguiria no seu implacável caminhar pelos labirintos futurais, desenhando com precisão a rota imaginada, maturada com aspecto de sobrevinda felicidade. Néscio aventureiro gritam-lhe dentro necessidades. Torrentes de amor jorram em abundância para a nascente e poente. Também a precipitação das palavras pertencentes àquela solidão, são torrentes em direção ao mar, onde haja o encontro da serenidade ornamentando as bordas dos inauditos pós voo sobre montes e planícies, peregrinação reverberada do extremo sol tendo abaixo absurdo silêncio diante dos homens. na mala dos poucos bens, o maior de todos a esperança numa consolação nos olhos fascinados, voluptuosos aos porvires a desbravarem na gravidade do novo tempo em que a dor bastarda sem sonhos já cedia; também indiferenças e prazeres efêmeros esvaeceram-se aos poucos por conta do domínio da grande lua sobre a escuridão, iluminando seus sonhos sem o cobertor da ilusão. Há um breve silêncio, luzes como olhos em lágrimas, espectros das sombras diluem-se com o afastar-se do tripúdio cada vez mais que lhe calejou a vergonha, num átimo sereno de promessas de mais belas estações. Então, numa contínua automática pelos meandros dentre as esquinas da vida de encontro ao fluxo do mundo com passos claudicantes e extraordinário esforço um querer de juventude cultural. Por quanto a multidão? Apenas a absoluta ausência do outro tragado pelo ar. Sim, recomeçar... por onde? Despedaçando em si mesmo a resistência entorpecida para conservar seu poder cognoscível, sua liberdade e dignidade são razões de volta a casa.


(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MAIO DE 2018)


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