#AFORISMO 666/LÁ NA VENDA, LÁ NA VENDINHA...# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



Epígrafe:


Ave Maria, cheia de graça... cheia de graça... Ave Maria, cheia de graça...


Meus olhos fixos na lâmpada suspensa no teto do quarto, não piscam, estão fixos... Em mim dentro, sentimentos e emoções ad-versos fluem, assisto ao espetáculo sensível com respiração comedida. As estradas são longas, andei ao relento das situações e circunstâncias, consequências, à busca de um recanto onde estar, o retorno fora inevitável, tomarei outra estrada, não mais retornarei, apenas o pretérito. Amanhã, num lugar distante, lembranças de um tempo, longínquas.


Lua solidão. Estrela solidão.
Uni-verso silêncio. Horizonte silêncio.
In-finito vazio. Verbo vazio.
Nada in-fin-itivo. Silêncio de in-fin-itivos.


"Você precisa de alguém?", ouço voz quase silenciosa diante de seu sussurro perguntar-me. A voz penetra-me: afigurou-se-me a voz da sabedoria, que só em instantes mui especiais se revela "Não preciso de ninguém.... Preciso de amor, não me serve qualquer amor." Se me perguntassem com que voz respondi, em que tonalidade, diria com voz de carência acompanhada da ausência de compreensão, não conhecia esta carência tão profunda; não sussurrei, não murmurei, voz de quem está com amigos jantando num restaurante, aquele diá-logo tranquilo, um "causo" no ar. Aprecio um causo. Armo as minhas próprias armadilhas com ele. Existir é um perigo, nada de mais sedutor, mister cor-agem. Haver-se-á de conceber, gerar, dar nascimento à existência, tudo atrás fica lendário. A um passo de outros horizontes...


Feto, féretro... A claridade me fere os olhos, mãos cheias de dedos no ar, os dedos movem-se como a digitarem letras... O abismo é fundo, muito fundo, estou caindo... Por favor.... por favor... me socorram: caindo, estou caindo, as mãos tremem... Meu Deus, meu Deus.... Estou caindo, o buraco é muito fundo.... Quero o mundo, quero, quero o mundo... Por favor, tirem-me daqui, tirem-me daqui...


Grito...


Lá na venda, lá na vendinha, - lembrando-me da musiqueta "Lá na venda/Lá na vendinha/É lá mesmo que tem/Da boa pinguinha -, é lá que tem aquele caderninho de linhas pretas... Palavras sem nexos, nexos sem palavras... Laços simples e intencionais que as uniam à imagem do rosto refletida no espelho desapareceram, mas outra unidade se estabeleceu por si mesma entre a boca retorcida, as letras brancas a #desinência# âtre; genitivos e particípios claudicando nas conjugações, os pensamentos nascem por detrás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça. Vendo a minha sombra, aos meus pés, fundir-se nas trevas, tenho a impressão de estar mergulhando em água gelada. Meu Deus, me tire deste lugar... Não quero sumir neste buraco sem fundo... Há uma neblina a cobrir os objetos... Parece que o quarto está girando.... Mas o que é isto? Um cachorro em disparada, rabo entre as pernas, corre e late, corre e late... a rua deserta...


Ave Maria, cheia de graça... cheia de graça... Não sei rezar, as palavras me faltam...


Por favor, me ajudem, peço que me ajudem... Mãe ouviu meu grito na madrugada... Correu. Estava deitado no chão, olhos estatalados em direção da janela que dormiu aberta... Com dificuldades me colocou na cama... Deitou minha cabeça no colo... Começou a rezar.... Minha mãe já é falecida... Sou o único sobrevivente da família. Estou sozinho no meu casebre. Vivo de mim, vivo sozinho...


Meu Deus, quero o mundo... Por favor, estou no vazio... Não me abandone, por favor. Ave Maria cheia de graça, cheia de graça entre as mulheres... Não sei rezar. Não tenho esta espécie de fé. Tudo depende de mim. Andei muito à busca de um lugar, mais uma vez o retorno. O que era preciso saber, ter consciência da razão do retorno. Sei de tudo. O ventilador está ligado, não sinto o ventinho dele no corpo, toco-me, os dedos tremem, nada sinto em mim... tudo me fugiu, tudo me foge... Minha Mãe Santíssima me ajuda... Estou dentro do vazio, o mundo se esvaiu inteiro...


Preciso escrever, não consigo me levantar da cama... se é que estou deitado numa cama... Não sinto nada debaixo de mim... Preciso escrever...
É a minha salvação... Ave Maria, cheia de graça... Estou caindo num buraco sem fundo, sem fundo, sem fundo, sem fundo...


Deixo-me a con-templar o meu cadáver sobre a cama, com simpatia e carinho. Tudo me foi, fora morrido... mas a existência... seria que continuasse?...


(**RIO DE JANEIRO**, 26 DE MARÇO DE 2018)


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