COMENTÁRIO DA AMIGA, ESCRITORA E POETISA ANA JÚLIA MACHADO AO TEXTO /**OSSOS SEM CARNE**/


OSSOS SEM CARNE.
Manoel Ferreira


Magnifico....o mundo de hoje:O mundo está mais despovoado do que inabitado,
Mais pacífico do que desinquieto,
Mais tranquilo do que reclamado,
Sem nostalgia figurada da população,
Sem afeiçoados,
Sem saraus de palestras com odor a acha,
Crianças largadas em “tabletes”,
Indivíduos errantes no dinheiro,
Mulheres submetidas à obediência,
Clérigos em arrogância lascívia,
Bola para despistar do fundamental.
Amigo, como continuo a dizer....tanto por onde pegar....



Ana Júlia Machado.



//**OSSOS SEM CARNE**//



Disseram-me, satisfeito, alegre, sentindo-se pomposo e egrégio, inteligência sem precedentes no logus do conhecimento, sensibilidade sem igual no cerne da espiritualidade, percepção sem eiras e beiras, a intelectualidade encarnada, trans-encarnada, des-encarnada, a carne completa os ossos, vice versa, são complementos. Estive por quase dizer: "Você está desperdiçada neste mundo. Ulala..."
Ao de imediato dessa fala, devendo ressaaltar e sublinhar sensibilidade neste naipe, o coringa do baralho, carece de presença no meio das coisas e dos objetos, prescinde no mundo dos homens, perguntou-me qual seria a serventia dos ossos sem a carne.
Silenciei-me. Emudeci. Por quase enfiei o meu rabinho de estimação no meio das pernas e sai galopando, o interesse era ir muito além do inferno, sempre olhando para trás para ver se a egrégia e pomposa pessoa não estaria no meu encalço. Cogitar era preciso, cogitação não do ergo um, mas a de espremer os miolos, como se faz com o paninho de prato após enxugar a pia de cozinha, água e o espremer, depois colocar devidamente dobrado na beira da pia, a estética da limpeza. Estou aprendendo todos os detalhes e segredos de uma limpeza de casa e cozinha - minha mulher, namorada, amante, companheira é empregada doméstica. Noutras palavras, o cogitar sobre se os ossos tem alguma serventia sem a carne ira dar-me árduo trabalho, quiçá o resto da vida para uma consideração das mais vulgares e chinfrins.
Mesmo assim desafiei-me a cogitar, tremelicar os miolos como se lhes apresentasse não o vulta da alma penada, mas o real do esqueleto. Não daria a quem me fizera este questionamento, indagação das prefundas do vazio seduzindo o efêmero para o conúbio dos prazeres volúveis, assediando o eterno para a orgia do clímax volátil, cantando a nonada rainha para as heresias dos pelos da pele que se eriçam com as sensações instintivas das éresis da nonada solitária no baldio dos obtusos.
Bem... Em primeira instância, antes de quais outras, há um "baita" de absurdo nisto de cogitar se haveria alguma serventia dos ossos sem a carne, pois que pensei nos miolos, espremer-lhes para tecer as minhas considerações, miologos numa caveira, só ossos, não existe, são uma massa, não há massa em caveira. Caveira não cogita, é-lhe impossível sensacionalizar como a carne se decompõe ao longo do tempo, deixando os ossos solitários, sozinhos no seio da profundeza do túmulo. Assim, cogitara tecer as minhas considerações em nível, por nível, de nível das minhas "cositas do riso e da gargalhada". Caveira é sum sem ergo, é ergo sem sum. Miolos, nom sum sem ergo. Se passando à porta do Campo Sagrado ou Campo Santo - Teixeirinha na sua música Churrasquinho de mãe menciona o Campo Santo: nem com o estômago nas costas comeria desse churrasco -, à meia noite, visse os miolos da caveira, não pensaria em coisa inédita, pioneira, mas a minha imagem refletida na moldura do não-ser do tempo. Enfiaria o rabio de estimação entre as pernas e me desembocava numa correria sem limites, ultrapassando os limites do inferno, correndo, correndo, olhando continuamente para trás no sentido de conferir e certificar-me se os miolos da caveira me perseguiam, estavam atrás de mim. "Quero você, quero você... Me pensa... Me pensa..." - já pensou?
Encarnei-me, trans-encarnei-me, des-encarnei-me um cão. A importância do cão não está em seu cardápio preferido a carne, mas os ossos que ele tritura com engenhosidade. A mesma coisa o gato: não é o peixe a sua importância, mas as espinhas do peixe que ele come passando a linguinha nos beiços de tanto prazer.
Sensivelmente considerando, se o cão come um osso com carne, seus prazeres são em nível de Zeus tomando o seu vinho, degustando a carne de uma ovelha perdida de seu rebanho. Os ossos levam o cão ao sublime dos instintos à busca da laia dos pedigrees.
Vangloriei-me com esta consideração, em verdade, em verdade, estava espremendo os miolos. Para o cão a serventia dos ossos sem a carne seria esta: a busca da laia dos pedigrees. Passados alguns milésimos de segundos, miríades do vir-a-ser, porvir, re-cogitei, não mais vanglória de inteligência, sensibilidade, até mesmo de inspiração, mas no górdio das cordas vocais O Pomo de Adão a ser pedra angular da verdade de o cão sente prazeres com a trituração dos ossos nos dentes porque o organismo, a estrutura da sobrevivência irão absorver, re-colher e a-colher; a origem do cão é o cão das origens. A serventia dos ossos para o cão, de raça, sem raça, simplesmente vira-lata, são os ossos da serventia.
Mas a questão sui generis, ipsis litteris e verbis é a serventia dos ossos sem a carne para os homens. Considerando-se que a fome está para a vontade de comer, uma não existir sem a outra, podendo uma pessoa ter fome, mas não ter vontade de comer, emagrecer é a necessidade urgente, alfim a estética corpórea é imprescindível, mas corre o risco de o estômago mudar de lugar, ficar nas costas... Isto de mulher pele e osso é complicado: há um ossinho na mulher na região de seu membro sexual que é pontiagudo e machuca o homem. Aconteceu-me de fazer amor com uma magrela e nunca mais quis saber de mulher magra, prefiro as de muita carne...
Sem conversa fiada para boi dormir, os ossos existem porque a carne existe. Mas que nasceu primeiro: ossos ou carne. Nunca entrei no útero da mulher para esta de excelência investigação. A resposta só pode ser a mesma da galinha e o ovo: nasceram juntos.
Diria a pessoa quem me perguntara a respeito da serventia dos ossos sem a carne: "Pare de encher linguiça! Responda logo numa palavra só" Encher tripinha de porco ou tripa de boi com ossos é complicado. As pontas dos ossos vão furá-las a uma e outra. Possível seria se moesse os ossos, tornar-lhes cinzas, mas que homem iria comer linguça de cinza de ossos. Não estou enchendo linguça com palavras, querendo mostrar minhas perspicácia e engenhosidades, legar a quem quer que seja o dever de comentar: "Você nos encanta com as palavras."
A serventia dos ossos sem a carne é de fundamentar aquilo bíblico de dizer que os homens viemos das cinzas e para as cinzas voltaremos: só ossos podem se tornar cinzas, metamorfosearem-se em cinzas. Qual a serventia da carne debaixo de sete palmos? Comida para os vermes e tatus tumulares. Só um parênteses: fico pensando nas caçadores de tatus - irem caçar tatu no cemitério depois da meia noite.
Na vida, na terra, sem a carne, o que são os ossos? Os ossos são o não-ser. Assim: a carne é o ser, o verbo que se tornou carne, a carne torna-se o ser na continuidade da vida através dos sonhos e esperanças. Os ossos são o não ser.
Sinto muito estar instigando os neuróticos da perfeição a terem a compulsividade de arrancar os ossos do corpo, deixando a carne apenas, mas devo lhes lembrar que a carne é fraca, símbolo do pecado capital. A serventia dos ossos sem a carne é a contradição, dialética da carne.
Agora: na hora do "bem-bão" de dois corpos agarradinhos na cama, desfrutando os prazeres do instinto, quem vai pensar, sentir a serventia dos ossos é o gozo do não-ser.
Vou jogar agora os ossos na cama e dormir o sono sereno, tranquilo, gostoso, profunda da carne sem o verbo.



Manoel Ferreira.


Comentários