#CORVELLO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ----


Nas cafuas do inferno, almas tresloucadas ardendo-se nas chamas eternas - dizem que o fogo do inferno possui as mesmas características do daqui do mundo. Nos terrenos da alma, nada de baldio. Nos becos sem saída, entulhos, boêmios sentados na tora de madeira, inspirando-se para comporem balada para a amada.

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Nos restaurantes corvellanos à La Cart, Clubes Sociais, empresários e autoridades elencam alegres e saltitantes as últimas negoceatas gloriosas, tomando whisky, porção de salgado de fino requinte, as senhoras comentam as compras de boutiques, sobretudo a mulher do Prefeito que numa visita turística à Europa tomou banho de lojas parisienses, agora sim o apelido "Bonequinha de Presépio" adere-lhe com perfeição, assuntos não lhes faltam para o prazer do encontro. Apreciam de antemão os prazeres da alma, que consideram como os primeiros e os melhores de todos e cuja maioria decorre, segundo eles, da prática das virtudes e da consciência de levar uma vida honesta. Conferem o primeiro lugar à saúde entre os prazeres do corpo, porquanto é unicamente por causa dela que devem desejar os prazeres do beber e do comer e outras funções similares. As horas passam num piscar de olhos.

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Nas praças públicas, transeuntes em trânsito, aposentados sentados trocando dedos de prosa com os amigos, casais envolvidos com as promessas do eterno amor à luz das estrelas e da lua, solitários conversam consigo mesmos, quase ao sussurro, alfim "Doido é que conversa sozinho", e não querem ser confundidos com eles, solitários e sozinhos sabem com veemência. As hortas e jardins são mantidos com desvelo. Cultivam a parreira, árvores frutíferas, legumes e flores tão espetaculares e de tal beleza que em parte alguma vejo maior abundância delas e semelhante harmonia. Nas mesas nas calçadas de bares, homens bebem, falam da vida alheia, futebol, da corrupção política, dos casos com as vadias, da intimidade com a mulher nos mínimos detalhes, piadas picantes e de salão, padre perde noite de sono pensando nas consequências por haver engravidado adolescente de quinze anos, logo a filha do Delegado Civil, um cliente sentado numa mesa afastada, sozinho, inventariando as coisas da vida, carências e ausências, este é possível encontrá-lo noutros lugares nas mesmas circunstâncias, inventariando as coisas da vida. Dizem não ter onde cair morto, vive na miséria. A miséria dele faz muitos felizes, a miséria é inda tiquinho conforme o que merece. Não se envolveu com a hipocrisia social, política, religiosa e ainda destila o seu ácido crítico sem dó e piedade. Não incomoda ninguém. Toma sua cerveja, inventaria a vida, paga a nota, vai embora em silêncio. Conscientizou-se de que, se der atenção às pessoas, terá tudo a perder, se não o fizer, terá tudo a ganhar. Silenciou-se.

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Na porta das escolas, estudantes nas suas baguncinhas peculiares, risadas altissonantes, gritos, esperando o sinal para entrarem e irem se alimentar dos conhecimentos mais que retrógrados e demodê - a palavra "professor" só existe mesmo no dicionário; jamais conheci um que realmente merecia este nobre título, verdadeiros papagaios do conhecimento, repetem ipsis litteris o que aprenderam, e aprenderam mal - vontades, sonhos, fantasias, esperanças. Por serem de famílias nobres, lecionam sem licença, decoram os manuais, desfilam orgulhos de estarem formando inteligências para o futuro, chegam a diretores de faculdade. Alguns conjugam, nas conversas de boutiques e salões de eventos, verbo com o pronome obliquo: "Mim sou educador. Dou aula de Português no Liceu Santo Argel." No portão das casas, mulheres e maridos sentados, falando das coisas da vida, dos filhos, das alegrias, felicidade, tristezas, angústias, lembrando-se dos mortos, elencando suas características e específicas mazelas, cumprimentando os amigos que retornam do trabalho. Os corvellanos são amáveis, alegres, engenhosos, amam o lazer, suportam todos os esforços e o cansaço nos trabalhos físicos, mas aqueles do espírito são infatigáveis, vivem de males que desintegram e arruinam. Na amurada da ponte do Córrego Santo Antônio, alguém recostado ao parapeito observando a água que segue a sua trajetória livremente. Em que estaria pensando? Talvez, como se diz na gíria, pensando na morte da bezerra.

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Na cadeira de balanço, recostado, cachimbo na boca, ouvindo músicas, sem qualquer ideia, pensamento, sem qualquer assunto, desafio-me a construir frases aleatórias, escrever na mente um texto qualquer, taça de vinho sobre a escrivaninha, um passatempo, um gole de vinho, uma frase aleatória, embriagado de frases e do néctar dos deuses, resta o sono, o mundo entregue às próprias traças.

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Nos mausoléus de mármore cinza, o epitáfio sendo lido pelos visitantes de sepulcros, deixando algumas lágrimas furtivas nos olhos, o sabor de um desejo que nasce condenado à irrealização; no mais re-côndito de quem lê o desejo, a vontade, o sonho, a esperança de conhecer um homem probo em todos os níveis, e isto não será mais possível, jaz ali de por baixo da terra, deixou as suas lições e ensinamentos. Quê força traz em si o epitáfio: capaz de transformar um porco numa cobra cascavel, pedrinha de cascalho em diamante. Lugar-comum "Morreu virou santo", mas não é real? Homenagens dedicadas à memória de pessoa de conduta virtuosa são as mais eficazes das exortações para o bem e a honra mais sublime que se possa prestar aos mortos. Esses estão presentes quando se fala deles, invisíveis somente aos olhos pouco perspicazes dos mortais.

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Nas dependências de eventos da Academia de Letras, o Presidente é acometido de surto psicótico, quase saindo na pancadaria com convidado, retirado às pressas pelos Seguranças, levado para o Hospital, onde ficou internado por dois dias. O livro e o autor não significaram nada, o chilique do Presidente fez a diferença. Onde não há Arte real, há escândalos. Não fosse o surto psicótico, a obra e o autor teriam atingido louvores e glórias, obra de responsabilidade com os Cânones da Beleza. O autor não era membro. E na Academia não há escritores, só figurões da sociedade, autoridades políticas e profissionais liberais, advogados, contabilistas.

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Na Igreja da Matriz, no interior, o padre celebra a missa, tomado de toda fé, emocionado, sentindo Deus no coração, os fiéis observam as vestes das pessoas, cochicham sobre cositas de fulano e beltrano, ajoelhados, cabeças baixas, rezando, pedindo perdão pelos pecados e faltas cometidos, na Praça, risadas e gargalhadas com as conversas fúteis. Terminada a missa, dirigem-se ao restaurante, lazer faz bem para o espírito. As convicções corvellanas não são contrariadas porque são de homens de bom senso e de boa conduta, embora acreditem, por um erro diametralmente oposto, que os animais também possuem almas eternas, inda que inferiores às nossas em dignidade e na felicidade a que são destinadas.

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Com flores nos encontramos por toda parte. Nas sebes e nos jardins, à beira das estradas e ao longo de caminhos silvestres, nas casas, nos mercados e praças se dão flores de todas as cores e feitios, para todos os gestos e tipos, para todas as atitudes, para todos os desejos e estilos de presentearem o ser amado, a paixão, o vislumbrizinho. E, sem pretenderem nada. Não desejam coisa alguma, nem mesmo sobreviver à poluição do homem moderno. A rosa não necessita de por quê? nem de para quê? Despetala-se ao despetalar-se. Floresce ao florescer. Já tem o ser de flor na própria florescência, no vigor e natividade da floração. Causa e efeito não a preocupam. Está toda ocupada com a flora de flor. Sem ciência nem consciência, sem gnose nem lógica, a rosa é somente flor. Recolhida ao mistério de ser, floresce sem porquê na franqueza de uma ternura de flor.



#RIO DE JANEIRO(RJ), 03 DE SETEMBRO DE 2020, 06:06 a.m.#

 

 


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