#VELHA BANDEIRA DE PIRATA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA



A ESPERANÇA sempre fora a velha bandeira de pirata, a longitude do mar mostrara-lhe os sonhos e utopias a serem conquistados, as novas terras, ilhas, florestas, bosques a serem vividos e vivenciados..."
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Paro um instante - mister, por vezes, refestelar as idéias, dar-lhes tempo de re-colher e a-colher outras sementes e sêmens -, deixo-me balançando na cadeira à mercê da música que ouço, a perna direita se movimentando ao seu ritmo, o salto do sapato batendo no chão, The House of the Rising Sun, desde que a conheci, há longos anos, apaixonei-me, quando ainda não a entendia, amor após entendê-la, olhando, através da janela, a chuva que cai, os pingos que deslizam no vidro lentamente, o tempo nublado – mas tem chovido, hein, sô!, uma mineirice para brilhar sempre, ao estilo malandro, aquele jeito de cumprimentar os álibis através do chapéu, quanto mais por surgir de supetão, sentidos inusitados e excêntricos, inéditos, afloram, transcendem o meramente contingencial -, esperando que no íntimo se re-vele um vento de renovação, se não possível, pelo menos olhar diferente as coisas e o próprio mundo, visão-{de}-mundo outra, a que me habita, em termos bem vulgares, está enchendo o raio do saco, tanto que há uma angústia incrustada no peito, está caindo aos pedaços de tão velha, não tenho vocação para velharias, épater le bourjois, para usar uma expressão francesa, inédita em quaisquer outras páginas, com significado e sentido que trans-cendem a razão, intelectualidade, até mesmo todas as dimensões do espírito, quisera conhecê-los com percuciência, isso não é de minha alçada, deixo a quem quiser fazê-lo, se lhe aprouver dizer-me, fico-lhe sobremodo agradecido. Não é verdade, contudo, que sou em absoluto inconsciente do sentido que atribuo a essa expressão, é histórica, nasceu em um período dificílimo da história francesa. Como nascera, nos tempos de "era uma vez", "Onde impera a massa a hipocrisia realça".
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Ouço, só, só no ser e verbos entre todas as ad-jacências do amor aos sonhos e utopias, quimeras e fantasias, o silêncio, silêncio afogado e úmido como um longo suor frio, na medula espinhal ou no joelho que separa a perna da anti-perna, silêncio branco e sepulcral. Quero amanhã lembrar-me que fui embora, larguei o passado à mercê do esquecimento do tempo, da indiferença e desprezo humanos. Jamais me esquecerei do olhar do ator John Wayne no filme Rastros de Ódio, o olhar perfeito do desprezo, só por ele merecia um Oscar inédito na história do cinema, o Oscar do Olhar verdadeiro e sincero, e nenhum ator senão John Wayne seria capaz de mostrar-lhe nas telas mundiais. A Academia não dera a mínima para este filme. É com esse olhar que olho a hipocrisia humana, a história de certo povo, povo que se vangloria, orgulha, sente prazer com a desgraça alheia, com as dificuldades de outrens, com os fracassos e falências do outro, aquele jogo letal, vamos ver quem sobrevive! Na face dos prédios alastram-se manchas de água, o rodar dos carros estruge no enlameado da rua feita de pedras, o meu bafo quente coalha nos vidros turvos – disse-o nalgum instante de minha vida, em circunstâncias e situações de que não me lembra, mas agora expilo a fumaça do cigarro à mercê do vento que se dirige ao leste do paraíso celestial, naquela época, a diferença de sentido e sentimentos reside aqui, hoje o éden está muito íntimo, entrelaçado em mim, comungado a todas as dimensões de minhas re-versas razões e in-versa sensibilidade, avessa intelectualidade e intuições do cogito ergo sum, lembrando-me do filósofo Descartes, apesar de que não tenhamos quaisquer semelhanças nos interesses e objetivos, nas idéias desfaço-lhe as seguranças e certezas do que há-de vir, o por-vir tranqüilo e sereno, sem quaisquer dúvidas, a ciência pura e absoluta da vida, acompanhada da intuição, percepção, imaginação, inspiração, enquanto que o paraíso celestial ao leste está bem distante de mim, só mesmo na imaginação o concebo, e o desejo é de me aproximar dele, saber-lhe. E imerso assim em umidade, quase alcançando a lod-icidade, com os pés frios, esmaga-me um cansaço sem tempo, um abandono absoluto da vida e da morte.
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Sempre um sepulcro sutil debaixo do edredom e cobertor, altas horas da madrugada, minutos antes do canto do galo, na arapuca de Morfeu os pesadelos de Sísifo, assim ou assado, frito ou cozido, em si mesmo petrificado – narsísifo en-si-{mesmado}.
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Vomito finalmente o mito repelente, o mito indecente e indecoroso, o mito refutável e descartável: ad-mito ser gente, con-sinto em ser humano, estar à mercê do tempo, estar sujeito a trans-formações, estar sujeito a ser o outro de mim, envolvido em todos os princípios e verdades do final.
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Três horas da madrugada: reclamam as asas da alma espaço para voar além do corpo e do catre, além do bairro e da praça, além do chapadão e dos córregos, quer a alma excitada voar além da cidade, além das florestas silvestres, apesar dos morangos e pêssegos deliciosos e apetitosos, que tanto aprecio, além dos mares que se perdem no infinito, confundem-se com as nuvens brancas e azuis, abacates, abacaxis, mangas, maracujas da ilha, deixam olhos extasiados e voluptuosos de prazer com a beleza e magia do uni-verso, universo que des-lumbra o barroco de sua apoteose, que a-lumbra o expressionismo dos sofrimentos e dores da alma, suas tragédias homéricas e ulisseanas, que con-templa as novas e inéditas visões, sensibilidade, percepção, intuição de outros princípios e preâmbulos de sonhos e utopias, Assim Palmilha a Humanidade o Campo de Lírios... Pois que voe a desalmada, voe mais que águia, deixando o corpo em soluços, dissolvido sonrisal, alka-seltzer num copo de solidão. Sempre uma dose de angústia sobre o acrílico do medo no barzinho da periferia onde, amargo, me exilo, penso e sinto o que me convém, o que me apraz no corcovado do tempo, o que está de acordo com a minha alma e ser, as saudades indescritíveis e indizíveis se me anunciam todas, sou todo saudades, sinto-me sendo o outro de mim, e mando o resto para a “tonga-da-mironga-do-cabuletê”, ou ainda naquela dança de passos contrários, cantar aquilo de "Se a liga me ligasse, eu também ligava a liga, mas como a liga não me liga, eu também não ligo a liga" ou pentear macaco no pálido crepúsculo das montanhas...
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Apesar de tudo quanto mais latir com aquela coragem da ferocidade e perigo letal, mais assustarei, deixarei os ouvidos sensíveis, até paranóicos, a alma em alvoroço com todas as dores e sofrimentos. Apesar de tudo quanto mais discriminado e perseguido mais o que latir irá ser inscrito nas laias e estirpes da história das hipocrisias e falsidades da raça humana. Apesar de tudo quanto mais perdido mais encontrarei as veredas por onde trilhar os passos em direção aos infinitos da eternidade e imortalidade. Apesar de tudo quanto mais traído mais resplandeço, mais a minha estrela brilha no espaço sideral – sensível e espiritualmente envio beijos à amiga muito querida, quem num cartãozinho dissera-me da minha estrela que brilha, silenciamos-nos por defecções ad-nominais e ad-jacentes, na memória inúmeras lições. Apesar de tudo quanto mais responsável e compromissado com os ideais de liberdade e sinceridade mais me sentirei disposto a seguir a jornada que a mim foi vocacionada desde toda a eternidade. Apesar de tudo quanto mais unido às buscas mais menos serei. Minha memória eriça a fúria das ondas e nas profundezas do coração, lá nas suas pré-fundas, uma velha bandeira de pirata baloiça serenamente.
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O céu, forrado de estrelas, é um olho arregalado na penumbra do alpendre onde sombras se apalpam. Onde sombras se fazem de carne, cheiro de vida, de carne sendo mordida, de "carne-luz encarnada". A lua, em quarto - minguante, é um seio de soslaio que uma língua procura.
Sigo a jornada dos obedientes, sabendo que no meio do mundo há quem empurre a pedra com dinamite nos olhos. Montado num jegue, saudando sertão a fora com os braços desenhados no ar. No canto, peças do "cangaço que se paira", e paira o sertão nas sombras ócias da noite, nos vultos preguiçosos da madrugada. Cangaceiro é lua cheia no sertão, e vem a noite, vem a brisa; no sono, a recordação. Na verdade, na verdade, a lua não se interessa pela conversa baixa, cochicho, sussurro dos gatos, dos ratos e dos homens – uma fraude fatal a favor de fulano de tal e cicrano bis. As paredes de cores e cores e cores, imagens subjetivadas, estão imitando o poeta dos versos livres/oprimidos, no sentido da Katharsis, o escritor de prosa re-versa/inversa, o homem de silêncio/latido; estão imitando o filósofo das revelações e averiguações do porquê da vida obscura, misteriosa e seus desencontros; estão imitando o apenas e o tudo/nada sem igual, o sem raiz de um touco morto pelo progresso, pela indiferença, pela Modernidade que enfim assumiu haver morrido, caiu vez por todas no chão duro e trincado pelos raios do sol, seu esquife está sendo levado para o sepulcro no pálido crepúsculo da primavera, em verdade final dela.


#RIO DE JANEIRO, 14 DE ABRIL DE 2020, 10:35 a.m.#


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