#BATUQUE NA COZINHA SINHÁ NUM QUÉ# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: CRÔNICA SATÍRICA



A impotência aparente do Senhor crucificado e inerte pode levar, no anoitecer, a rezar mais uma vez no tempo lindo que vivemos!
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A impotência diante da opressão que sofrem certas pessoas não tem tamanho, nem medida. É inacreditável como tantas pessoas não são consideradas como gente neste mundo desastrado de hoje!
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Estavam ali, ajoelhados no banco da igreja, Guido Neves e Beatriz Escullaxo ao seu lado – decidiram sair do escritório e passar na igreja para rezarem um pouco. Enquanto eu, Incitatus da Fazenda dos Bois, na carruagem esperava-os na porta da Igreja. Na igreja, só havia um senhor calvo, de óculos, claro, parecendo haver muito estava ali. Há quem fique longo tempo sentado na igreja, sem rezar, até mesmo sem pensar coisa alguma, só sentindo as energias espirituais perpassarem a alma e o espírito. Saindo, sentem-se bem, alegres, joviais.
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Os homens que hoje, como antes – pensava Guido Neves consigo próprio, sentindo-se calmo, tranqüilo, enfim sua amada esposa havia lhe mostrado muitas coisas importantes, a maior delas foi o amor – detém o poder nas mãos, não se dão conta, ou não querem se dar conta, dos que sofrem sobre suas mãos e sobre suas estruturas!
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É pela falta de total e absoluto respeito e sensibilidade à dor do outro, à história do outro, aos outros que dependem do outro!
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Mais triste, como triste são certas noites tristes, é que muitas vezes trata-se de cristãos pisando sobre cristãos, aniquilando cristãos!
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As ruas estão vazias, de um deserto que esfria os ossos, os olhos apenas delineiam os caminhos a serem percorridos, se bem que não haja um destino, não há um lugar a chegar. Por uma razão qualquer, que desconhece de todo ou se encontra muito deprimido e angustiado para a perceber, isto de não ter um lugar a chegar, um destino a cumprir, dói-lhe sobremaneira bem no fundo da alma, como as chufas que alguém recebe na cara por alguma observação sem qualquer senso.
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Se parasse eu de relinchar com o vazio das ruas, enquanto ninguém estivesse olhando, pode ser que alguém esteja atrás de uma destas janelas abertas, observando, vendo-me a relinchar, sentir-me-ia de um modo muito estranho e esquisito, com uma súbita inescrutabilidade a entaipar-me o olhar.
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Nunca lhe parecera a Guido Neves tão remoto, tão destituído de sentimentos humanos como nesta madrugada a perambular pelas ruas vazias. Dir-se-ia que só o corpo está presente, enquanto o espírito erra muito longe daqui. Soubesse eu onde é que o espírito anda, o que ele intui e percebe, o que sente e ressente, recompor-me-ia e arregaçaria os beiços com genuína jovialidade.
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Uma resposta de fé consiste em projetar em Deus a própria segurança: sabendo que ele cuida da gente, vivendo a certeza de sua Providência, mesmo na morte, caminhando sob a sua proteção, mesmo no medo, jogando em sua bondade o nosso pensamento, deixando que ele seja senhor de nossa vida e de nossa morte... para o que der e vier!
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E aí Guido Neves enceta palavras, em si, foi construindo desde a fonte imaginária do rio de águas límpidas, a multiplicidade de única água em muitas águas, uma lembrança que trazia íntima n´alma, caminhando, rolando por pedras, areias, cascalhos, burgalhaus... - qual o escritor com as palavras, mochila às costas, segue caminho em busca de experiências, quais forem, algumas agradáveis, milhares doídas e condoídas, e assim realizando vida com as palavras; ah, estas lembranças íntimas de tempos não distantes, mas idos, e a sua memória só poucos souberam cultivá-las no espírito, o fogo, a inteligência. De repente as músicas, letras tornando-se estilo de vida...
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A jornada estrada afora, o que em mãos, o que trazer e deixar lembrar às pessoas, às gentes desta terra de ninguém? A viola não toca, embora, deve confessar, na juventude teve vontade de aprender a tocar violão.
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O chão era previamente batido e varrido. Ficava aquela areia limpa, onde as galinhas não podiam pisar. Enxotava os porcos para longe e, com os ramos apertados por cipós, afastavam as pedras e os cavacos de lenha.
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Armava-se a fogueira, com troncos e galhos secos, alguns que chiavam e pingavam água todo o tempo. Por cima, colocavam os caldeirões e as latas para melado, com rapadura e água.
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O fogo começava. A primeira língua lambia as achas, crescia, tomava conta de tudo. Em breve rolos espessos de fumaça enchiam o terreiro.
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Os crioulos iam chegando. Faziam o círculo, sentados com as pernas cruzadas, deixando o espaço livre para a dança.
As sanfonas rouquenhas gemiam as primeiras notas e o burburinho da conversa ia morrendo.
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Parecia mesmo que a música adquiria mais sonoridade, vibrando no silêncio que descia, enquanto os olhos luziam mais forte e os pés inquietos acompanhavam o compasso do batuque fogo.
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As multas, em camisa, sentiam os quadris agitados por um tremor.
Os homens batiam palmas e as vozes soavam claras:
Batuque na cozinha
sinhá num qué
tição caiu
queimou meu pé.
#RIO DE JANEIRO, 20 DE ABRIL DE 2020, 09:14 a.m.#

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