#PRIMEIRA PAIXÃO-PÁ-E-BIFE# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: CRÔNICA SATÍRICA



Mó... Mó... Mó... Lágrimas dos Insanos continua o seu quotidiano de cidade pequena do interior em relação bem íntima com os seus habitantes, nativos ou estrangeiros, seres humanos como quaisquer outros de qualquer lugar do mundo, em direção aos séculos e milênios, gerações e mais gerações, algumas procurarão superar as picuinhas e mazelas das passadas, dar uma pirueta por cima das impiedades e chafurdices...
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À beira do Rio das Pulgas. A água desce suave e levemente. Para onde irá esta água? Corre infinitamente rumo ao mar, onde encontrará o seu azul, chocará com as docas; deixará, nalguns buraquinhos, águas. Quem, do lado de cá, olhar para o mar, lembrar-se-á deste rio, de sua água passando meiga e docilmente, deixando, no seu coração, a gênese de todo mistério e enigma, o amor. E nascera-lhe o nome devido às coceiras indesejadas, pecados e pecadilhos misturados, e só suas águas eram capazes de amenizar. Verá o mar encontrando com o céu, o infinito azul do céu. Lembrar-se-á deste rio que se angustiou, desesperou-se nas suas noites claras e/ou infinitamente escuras, a tecer ou crochetear o seu único anseio logo ao chegar da manhã: deixar nos corações, de quem se propõe a sentar-se à sua beira, os eidos do entendimento e compreensão dos homens e do mundo, incluindo-se aí o amor e a profunda feição por uma descoberta juntos. O Rio das Pulgas segue a sua trajetória rumo ao mar, ao pleno, ao absoluto, ao infinito. Uma trajetória imensamente solitária: de noites claras, em que a angústia do tecer e do crochetear coloca-lhe frente a frente com o brilho destilado e engolfado dos homens solitários e tristes, que flanam pelas ruas não menos solitárias e tristes; o asfalto dorme o seu sono irriquieto. As janelas abertas. A noite, áspera em sua superfície, mergulha no abismo de um grito antigo. Mas este rio nunca cessa a sua trajetória solitária. Alguns homens já se levantaram de sua beirada. Ao sentar-se ali, levou consigo a humanidade.
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Quem sabe assim ele, Guido Neves, não sinta em suas prefundas a eternidade, assim ele a imagina, cria, recria, intui, percebe, a eternidade habita ele mesmo, e toda a sua vida será a busca, a árdua busca, mas no peito certamente uma alegria imensa, satisfação e orgulho por seguir o rio sem margem, sem pressa... Essa é a sua utopia, as águas da eternidade saciam as sedes de todos os séculos e milênios, se no íntimo o desejo e vontade de vida se anunciar pleno e absoluto... Se não for deste modo que ele intui a eternidade, há-de se considerar que não teria qualquer outra alternativa senão calar-me, silenciar-me, pois que estou mortinho da silva – isto é preciso algumas vezes fazer sublinhar e ressaltar antes que não identifique bem o grau de cinismo e sarcasmo que me habita, e quais são as intenções de mofa, se é que existam mais de três -, nada tenho a argumentar em meu proveito.
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A coragem serena de Dosolino Piroca Tazinasso era para Beatriz Escullaxo um prazer e uma tortura. Porque, para ela, que o amava infinitamente – a primeira paixão-pá-e-bife de uma jovem de treze, quatorze anos, o caminho dele parece sempre coberto de perigos; não me é dado compreender o porquê ela conta essa estória e faz tantos gestos, o olhar, então, é sensualíssimo – qualquer simples gesto com o dedão do pé era algo a ser sentido intensamente. Certo dia, retornando à fazenda, pediu-lhe que tomasse cuidado com os animais ferozes, pois podiam atacá-lo e levá-lo à morte. O jovem riu com desdém e sarcasmo.
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Noutra ocasião, Beatriz Escullaxo lhe perguntou o que ele faria na manhã seguinte. Dosolino Piroca Tazinasso dissera que iria caçar um tigre enorme, o mais velho, o mais feroz até então caçado naquelas terras, e que, antes da próxima passagem de Celestino Pinto levando seu gado para Curvelo, o deixaria morto com uma lança atravessada no corpo.
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Assim que os portais rosados da Aurora se abriram, Dosolino Piroca Tazinasso começou sua caçada. Beatriz Escullaxo pôde ouvir os latidos dos cães à distância. Percebeu, porém, que aquele alarido não era o de cães que arrastam triunfantes a caça dominada, mas o ladrar triste semelhante ao dos cães de Hécate. Beatriz Escullaxo, alcançou o lugar de onde vinha o alarido perturbador. Não sem antes haver enfiado no matagal, sofrido alguns pequeníssimos arranhões nos braços. Estava ofegante quando o viu de longe, ao chegar perto teve de se sentar na grama que estava um pouco molhada devido à chuvinha da noite passada.
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No meio do mato pisoteado, onde jaziam muitos cães dilacerados pelo tigre. Dosolino gemia em agonia mortal. Beatriz Escullaxo prostrou-se ao seu lado, e tomou sua cabeça amada nos braços. Lágrimas desceram por seu rosto, lágrimas por paixão do primeiro amor de sua vida estar naquele estado, não iria sobreviver, morreria nos seus braços.
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Esse momento, in extremis, despertou em Dosolino Piroca Tazinasso o sentimento de homem, e ele percebeu algo do significado da paixão-pá-e-bife de Beatriz Escullaxo. Seus cães de caça e sua lança pareciam agora apenas brinquedos insignificantes.
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Ficou por fim completamente silente como se dormisse, branco marmóreo e belo como uma escultura cinzelada pelas mãos de um deus. Mas o sangue jorrava da ferida na coxa, tingia de vermelho a relva. Depois, por um breve tempo, o lume da vida nele vibrou, seus lábios frios tentaram mover-se em um sorriso de compreensão, procuraram os dela. Enquanto trocavam aquele beijo, a alma de Dosolino Piroca Tazinasso partiu.
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- Assim, terminou a minha primeira paixão-pá-e-bife – dissera Beatriz Escullaxo, olhando à distância para o pasto, enquanto Guido Neves, ambos na cozinha, cortava bifes num pernil de porco, ela furava outro pernil e colocava pedaços de toucinho dentro, seria assado. Haveria no almoço pernil assado e bifes de porco a milanesa, além de vergalho de boi com mandioca, um dos pratos preferidos de Ratto Neves. Podia-se saber que à noite, após este prato, ouvir-se-ia alguns gritinhos de Ragozina Neves, e Ratto Neves dizendo para tomar cuidado, Beatriz Escullaxo iria ouvir, e Ragozina Neves mandando-lhe calar a boca, era um momento que exigia silêncio e muita concentração.


#RIO DE JANEIRO, 20 DE ABRIL DE 2020, 09;05 a.m.#


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