M´INTRIGA O PALÁCIO DE CRISTAL GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA



Perguntar-me-ia alguém dos humanos, em primeira instância, até para ser diplomata e estratégico, o que devo fazer, se me meteu na cachola que não se vive somente para isto ou aquilo e que, se se vive, é num palácio que é preciso ser construído? Essa é a minha vontade, isto é meu desejo, construir este palácio.
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Que coisa mais irritante, irritância que faz todos os pelos do corpo coçarem, como se estivessem infestados de pulgas e carrapatos, não chega à sarna porque os meus instintos de hoje não são de sarcasmo e sim de ironia, mas de impaciência e náusea, comungada àquele meu olhar as coisas de modo indiferente, entaipados os linces dos preconceitos e discriminações. Em compensação desta irritância sui generis, lembrou-me aquando Sonia Cupim de
Chamone estivera em nossa fazenda, dizia não ser ela de lugar algum, nascera na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, fora expulsa de casa pela família devido ao fato de ser namoradeira sem escrúpulos e vergonhas, tornou-se cabeleira num salão de beleza na Capital das Gerais, era uma andarilha, de muita inteligência, de uma ironia sem limites, não houve quem não abaixasse a cabeça no jantar dos Neves, Beatriz Escullaxo molhou a calcinha, quando Sonia Cupim Chamone colocara as mãos na mesa, na cabeceira desta e dissera pomposamente:
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Intriga-me o místico das poeiras do beco sem saída
A hipocrisia, farsa, falsidade que os homens pregam
Nos seus templos ornamentados de silêncio e solidão,
Saber o que alenta,
O que me tesa e o que me apaga
Nos tesões da madrugada,
Intriga-me e encanta,
Atrai e ao mesmo tempo estupifidica e surpreende,
Cai-me o queixo,
A vida ser "PALÁCIO DE CRISTAL"
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Quem seria capaz de me arrancar esta vontade, podem tentar anulá-la a partir da perseguição, preconceito, marginalização, interesses mesquinhos e medíocres, podem obscurecê-la com máscaras e véus? Nada pode arrancar-me esta vontade senão quando alguém perspicaz e inteligente tiver a ousadia de modificar os meus desejos. Pois bem, direi com todos os relinchos legíveis: “modificai-os, os interesses mesquinhos e medíocres, apresentai-me, senhores, outro fim, oferecei-me novas utopias e sonhos, novos ideais”, prometo solenemente que irei relinchar as novas utopias.
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O que importaria, aqui e agora, que o castelo de cristal seja inadmissível, ininteligível? Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos – construindo ou não construindo, em verdade -, ou, ainda para ser mais profundo, mergulhar na semente de mamona, pois que o castelo de cristal existe tanto quanto existem meus desejos?
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Inda com as mãos na mesa, à cabeceira, Sonia Cupim de Chamone, continuando o que havia antes dito no concernente à vida ser "palácio de cristal", dissera com eloquência, que entendi como uma coça aos orgulhos de toda a família Neves, fizera a analogia sublime entre "tomar água num canto grego" e o "palácio de cristal:
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"Embriagada do intrínseco e interdito
Das maravilhas do paraíso de cristal,
Ler um xamã no livro dos segredos,
Sentir os precípicios do abismo nas lendas e costumes
Dos Krishnas e Taos, dos Vedas,
Dormir à beira do Rio das Pulgas, sob o orvalho da madrugada,
Acordar num sonho universal
Do Ser e dos Efêmeros...
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Enquanto espero que me apresentem, ofereçam de coração e espírito, recuso-me a tomar uma estrebaria por um palácio de cristal. Isto até por bom senso: a estrebaria é estrebaria, palácio de cristal é palácio de cristal, a menos que esteja afastado de minhas faculdades mentais, seja insano. Há, verdadeiramente, duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber esta diferença incólume e lídima; em crer que se sabe está a ignorância. Querem que vos ensine o modo de chegar à ciência verdadeira? Aquilo que se sabe, saber que se sabe; aquilo que não se sabe, saber que não se sabe; na verdade é este o saber.
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É sim possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, as leis do ponto e natureza não o admitam e que eu o tenha inventado, criado, para satisfazer os desejos de pilhéria e cinismo deslavado, impelido por certos hábitos inconscientes e irracionais da geração, não creio os tenha trazido de outras.
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Se me apresentarem meios e estilos de o construir, se me oferecerem as oportunidades reais e concretas de fazê-lo, agradecerei a todos e oferecerei as patas para o sacrifício, sentir-me-ei feliz e realizado, construí o castelo de cristal de meus desejos de um "suntuoso exponencial solitário amor no banco infinito"
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Penso e elucubro que os vivos estejam caindo na gargalhada pela pilhéria sem limites, numa linguagem e estilo clássicos, eruditos. “Ride até mais não podeis. Ofereço-me a interromper por alguns segundos até que possais continuar a ouvir-me. Ride tanto quanto vos façais felizes”. Não me sentirei responsável quando o riso cessar, revelar-se o choro, manifestarem-se a angústia ou depressão.
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Se me desnudo diante de vós, apresento-me a vós com estes e aqueles desvios de toda ordem e qualidade, ofereço-me numa taça de cristal para saborear-me num “à nossa”, aceitarei todas as pilhérias, admitirei todas as zombarias, recusar-me-ei, contudo, a declarar-me saciado das fomes milenares, sedes seculares, quando ainda tenho fome e sede; não me contentarei com uma responsabilidade, com um zero cada vez mais inclinando para a esquerda, renovando-se indefinidamente, pela única e exclusivíssima razão de que está conforme as leis da diplomacia, estratégia, os bons princípios.
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No dia vinte e um de abril do ano passado, dia consagrado a mim na Família Neves, Dia do Asno, tinham vindo algumas pessoas das relações amigáveis de Beatriz Excullaxo, passar o dia em nossa Fazenda, dentre elas Silvia Marina Sem Origens, que fazia setenta anos, tinha orgulho de ser velha de setenta e oito anos. A certa altura, entre Agripina Santos e Guido Neves, à beira do chiqueiro, observando a porca Saluel grávida, como um furacão, e anunciou Sílvia Marina Sem Origens que acabava de descobrir, lá fora, diante da cozinha, uma criança abandonada. Toda a gente se precipitou para ver o objeto achado: uma petizinha de três ou quatro semanas, que gritava dentro de um cesto. Pegou no cesto e levou-o para a cozinha. Trazia, preso com um alfinete, um bilhete assim concebido: “Queridos benfeitores: tende piedade da pequena Arínia. Já está batizada. Pediremos sempre por vós, iDeus ilumine nos caminhos de sua educação e criação. Os nossos desejos de felicidades neste dia de festa. Alguém que não conheceis”. Thales Simeão, a quem consagrava grande estima Guido Neves, desgostou-se: o seu rosto tornou-se carregado e, embora não tivesse filhos, tirou-a do cesto, de onde se exalava um cheiro azedo, desagradável. Pegou na criança ao colo e declarou que tomava conta dela.
Sílvia Marina Sem Origens, conquanto fosse boa pessoa, protestou: no seu entender impunha-se o hospício. No entanto, tudo se fez conforme o desejo de Thales Simeão. E assim fora a petizinha chamada por ele e uma negrinha que contrara para ajudá-lo a criar: "Cristal", um cognome afetivo.
#RIO DE JANEIRO, 20 DE ABRIL DE 2020, 16:32 p.m.#

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