ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XII - PARTE II


Ali, deitado na rede, lembrando-se da vida passada, estava se anunciando a mudança em sua casa interior. Embora a fortuna, haver vivido e muito bem com a sua Ragozina, mulher a quem ama de paixão, sempre soubera lhe compreender as dificuldades e desejos, pôde realizar muitos deles, sente que cumprira a vida. Quanto a mulheres, sem qualquer sentimento, exercia a sexualidade masculina, paixão mesmo era a que sentia por Ragozina. Quem sabe até não deixe de bolinar as mulheres. Não é velho, ainda está e muitíssimo disposto para as aventuras da alcova.
A professora chegou e sentiu qualquer cheiro estranho. Pensara até que algum aluno não teve tempo de correr ao sanitário por estar de diarréia. Estava pregado na carteira sem poder levantar.


- Que cheiro é este? – perguntou a professora apertando as narinas.


- Ratto Neves, professora. Está num cheiro sublime de merda.


Fora convidado a se retirar da sala. Estava envergonhado. Próximo à mesa da professora, parou.


- Professora, sinto muito tudo isso, mas não podia faltar. Tive de ajudar mamãe na limpeza dos fatos, muitos pedidos. Não prestei atenção no horário. Saí de casa sem me trocar. Foi isto que me aconteceu. Sei que este cheiro não é agradável, mas a senhora pode confirmar minhas palavras, depois que se vive num lugar passa-se a ter seu cheiro. Na verdade, eu mesmo não sinto. Desde que nasci, vivo numa casa onde minha mãe limpa fatos para pagar os nossos materiais escolares, termos alguma comida em casa, algumas pecinhas de roupa. É a pobreza, professora. Desculpe-me por tudo isso. Não vai mais acontecer - o rosto dele estava tão vermelho que se podia acender cigarro de palha.
Saiu da classe, apresentando-se à diretora para obter a permissão de ir embora para casa. Lágrimas desceram-lhe o rosto de tanta vergonha de estar frente a frente com a diretora naquela “sublime catinga” para parodiar a fala dos estudantes, e arrancar-me alguns outros relinchos das entranhas.
A diretora apertou as narinas com a entrada de Ratto Neves. Ele passou a mão no rosto. Não se podia discernir se os olhos estavam brilhando ou em absoluto apagados.


- Dona Ernestina, preciso ir embora...


- Vá logo... – disse-lhe, abaixando a cabeça, olhando a planilha de ausência dos alunos durante o mês.


- Não se trata disso. É que precisei ajudar mamãe na limpeza dos buxos de boi. Não prestei atenção no horário. Não gosto de perder aulas. A senhora sabe que o estudo é muito importante. É com ele que posso dar outro rumo à minha vida. A senhora pode compreender isto.


- Vá logo embora daqui, Ratto Neves...


Dera as costas, dirigindo-se à porta de saída. Estava com tanta vergonha que dera de testa com o portal. Dera grito ensurdecedor, passando a mão no lugar, para observar se não havia cortado a testa. Dera-lhe “galo” pequeno. Sem corte. Saíra correndo antes que acontecesse algo ainda pior: sujar nas calças de tanta vergonha. Já estava com vontade. Havia terreno baldio frente ao grupo. Correu. Escolheu lugar atrás do matagal. Quase não lhe dera tempo de abaixar a calcinha.


- Ragozina, às vezes, enquanto os vaqueiros marcam os bois com o ferro quente, limpam o curral, carregam sacos de milho para os porcos, fico olhando Incitatus no pasto, tranqüilo, sereno, nada lhe oprime o peito, nada lhe confunde as idéias, nada lhe preocupa, não se importa com isso e aquilo, vive a vidinha de asno, pasta... Fico olhando... Digo a mim próprio que se fosse asno não teria tanta vergonha das coisas da vida e morte, sabendo, de antemão e revezes, que não têm solução alguma. Mas não é bem isto... Imagino se ele, com os instintos tão aguçados e perspicazes já não tenha descoberto as minhas coisas íntimas, problemas, dores e sofrimentos. A vergonha não é de seu conhecimento, mas de estar relinchando de mim, pior ainda, através de mim estar se inteirando da natureza humana. Sou o protótipo do ridículo humano. O que será que pensa de tudo isto? Gostaria de saber.


- Meu amor... – disse-lhe, passando-lhe a mão nos cabelos – A vida é isto mesmo, repleta de altos e baixos. Você sofre muito com a vergonha de tudo e de todos, sei disso. Quem sabe por esta razão não tenha se tornado homem cuja neurose de perfeição chega a incomodar as pessoas. Aqui na fazenda tudo tem de estar de seu modo, estilo. Exige demais dos vaqueiros, empregados, clientes. Conheço e bem o pai que foi com Guido, com Fomá Fomitch é que você deixou de certas exigências. Sei que um dos seus maiores desejos é que fosse homem sem pecados, gratuidades e arbitrariedades, posturas e condutas imorais. Mas isto, querido, não é possível na nossa condição humana com natureza tão esquisita e caprichosa. Já está com sessenta e dois anos. Sei que as preocupações com a vida são mais aguçadas, difíceis. Enfim, surge aquela pergunta mais do que complicada: “Será que fiz algo de minha vida ou simplesmente vou morrer como um belo “zero à esquerda?””.


- Sou homem feliz ao seu lado, amor... Sou feliz. Criamos os nossos filhos com carinho, amor, compreensão. Por falar em nossos filhos, onde é que está Fomá Fomitch Neves?


- Está no seu quarto estudando História do Brasil. Amanhã terá exame.


- E Guido Neves?


- Provavelmente está na casa de Gumercindo, jogando conversa fora...


- Ando preocupado com ele... Já percebeu que está chegando em casa embriagado todos os dias. Não se pode dizer nada a ele que acha ruim. Não se abre com ninguém. Acho que chegou à conclusão de que o Direito é grande farsa, faz-se papel de imbecil e ridículo. Comprei o cômodo, mobiliei para trabalhar. O que ganhar é seu, não deverá favor a ninguém. Pode-se fazer o que se quiser com as leis, condenar inocentes, absolver culpados. O Direito só está do lado dos interesses. Lembra-se de Wander Latino? Vinha com o filho todos os dias à fazenda para que tomasse leite com conhaque, tirado na hora, estava de coqueluche, e este é o supimpa remédio para esta enfermidade. Dizia-me às vezes que tudo depende do lado em que se está sentado à mesa. O interesse é que manda. Do advogado, ganhar a causa, ficar famoso, ter mais cliente. Do cliente, ser absolvido, não ser censurado pela sociedade.


- Guido está com algum problema sim... Já observei. Creio que é por causa de Adriana Lousada. Você sabe o gênio daquela mulher. É difícil conviver. Está apaixonado por ela. Mas tem medo de se envolver e entrar nalguma fria. Sabe que se sentir ela atração por algum homem, não mede qualquer esforço de ir para o mato com ele. Já saiu de casa para viver com um homem, pequeno produtor de alface; sofreu muito, retornando para casa; tornou sair com outro homem, a relação fora apenas sexual. Tem muitos problemas.
Acho até que Guido está com medo de estar namorando com ela, e ela, quando sai de sua casa, encontre com alguém no mato.
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 11 DE OUTUBRO DE 2018)

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