ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XII - PARTE IV


- Sabe, Ragozina... Antes de você chegar aqui, estive pensando que a minha vergonha tem um motivo muito sério. Comecei a pensar que o motivo dela é que fui criado por bosta de boi... Sim, a bosta é que o meu inferno. Tenho nojo daquilo que foi a razão, o motivo de minha criação. Criou-me e tenho vergonha dela, não lhe dou o mínimo valor. Sabe isto? Não é de minha mãe, a sua pobreza, os muitos problemas com o pai, dono de botequim copo-sujo. Homem sem qualquer senso, sem qualquer valor, ângulo obtuso é pouco para ele. É da merda de boi. Se olho nos olhos das pessoas, sinto que estão pensando que fui criado por bosta de boi. Sinto até o nojo delas na alma.


- Vamos dormir, Ratto Neves – disse-lhe com a voz meiga, serena, mostrando-lhe a olhos nus o quanto podia sentir suas dores e sofrimentos, o quanto sabia a vida ser difícil.


- Está bem, vamos dormir – saíram abraçadinhos rumo ao quarto. Já eram quase onze e meia da noite. Não iria dormir muito. Tinha de levantar às quatro e meia da manhã para ajudar os vaqueiros a ordenhar as vacas.


A luz da alcova apagada. Ragozina virada para o canto, dormindo. Ratto Neves não conseguia conciliar o sono. Continuava lembrando-se de algumas passagens de sua vida. Como é que iria deixar de exalar o cheiro fétido? Como iria dar cabo da merda que o tornara homem tão envergonhado dos pastos e coxias, da vida e morte.


Não se referira à morte. Estivera pensando a razão de medo eterno de morrer. Embora não se pudesse descartar as outras razões que se lhe revelaram na alma, a partir de situações e circunstâncias, o motivo do medo da morte se fundamentava nisso, cheirar a merda não é valor algum, o que diria no dia do Juízo Final sobre o cheiro, Deus não iria aceitar-lhe no céu, iria incomodar as outras almas, este cheiro impregnado iriam despertar nas almas lembranças e recordações e isto iria atrapalhar por inteiro o desenvolvimento espiritual delas. Iria para o inferno – lá é que é lugar para “catinguento”.


Nada dissera à mulher sobre esta reflexão por se lhe apresentar muito disparatada, sem qualquer nexo, mas era assim que podia explicar o drama com a morte, algo que indivíduo nas faculdades normais não conseguiria suportar tanta pujança.


O pai fora preso por haver estuprado mocinha de treze anos. A mãe obrigava-o a ir até a cadeia pública à noite, ficarem escondidos atrás de um pé de flamboyant para saber se alguma prostituta freqüentava para saciar os desejos dos prisioneiros. Ouvira falar que Alice Boca-de-burro ia à cadeia para se deitar com o pai. Sentia-se ele tão deprimido com tudo aquilo. A comunidade inteira sabendo que a mãe e ele estavam de tocaia, escondidos. Comentários e mais comentários.


Acontecera na época algo interessantíssimo. Ratto Neves tinha ficado de cama dois dias devido a forte gripe que contraíra, com muita febre. Precisava copiar a matéria das aulas. Não se lembra o que acontecera para não dar tempo de conversar com Guilhermina Santana, pedindo-lhe os cadernos. Descendo as escadarias, viu-a indo embora. Não fizera outra coisa senão correr para alcançá-la. A menina saiu correndo, correndo, com medo de Ratto Neves. O pai tinha estuprado mocinha. Ele também estava com os mesmos desejos. Correu para a casa da professora. Contou-lhe porque estava com a respiração tão ofegante. Era Ratto Neves. Correu atrás dela.


Dois dias antes deste acontecimento, na hora de ir até à mesa da professora, mostrar-lhe o exercício, Raquel, menina simples, pobre, ingênua, estava parada perto de sua carteira, aproveitou Ratto Neves que estava distraída deu-lhe beijo nos lábios. Ficara de castigo depois das aulas.


A professora entendeu que Guilhermina Santana estava com a razão. Ratto Neves teve desejos libidinosos. No outro dia, quando ele chegou à escola, recebeu logo o comunicado de que deveria comparecer à diretoria. Não sabia de que se tratava.


- Ratto Neves, você não pode mais continuar estudando aqui na escola.


- Por que? O que é que fiz?


- Saiu correndo atrás de Guilhermina Santana.


- Senhora diretora, estava precisando de pedir a ela o caderno das matérias. Falhei dois dias por causa de resfriado. Gritei-a. Desgraçou a correr, corri atrás, pedindo que parasse, precisava das matérias. O que há de errado?


- Não pode continuar...


- Por favor, deixe-me continuar, diretora. Preciso estudar. Sei que não vou continuar. Tenho o trabalho na fazenda. Sei que o destino é ser fazendeiro, mas gosto de estudar. Por favor, não me expulse.


- Não, não é possível...


- Mamãe hoje me mata de tanto bater – disse, começando a chorar.


Não houve qualquer meio de persuadir a diretora. Estava convencida de que Ratto Neves havia corrido atrás da aluna com desejos libidinosos. Se o pai estuprou a mocinha, era natural que também tivesse o desejo. Não fora expulso de todo. A diretora, apiedada com o choro, prometeu-lhe que arrumaria noutro grupo para continuar os estudos. Isto aconteceu. Mudou de escola.
O pai saíra da cadeia dois anos e meio depois. Não vivera muito tempo. Embriagava-se ainda mais, não por remorso, arrependimento, sentimento de culpa por haver estuprado a mocinha, por haver sido preso, mas por vergonha de os presos lhe terem feito mal. Os prisioneiros com quem dividia o espaço na cela não admitiam que se estuprasse garotinhas.


Sofreu as conseqüências do ato. Estuprado pelos presos.
Lembrava-se de todas as situações as mais deprimentes, tristes, dilacerantes acontecera-lhe durante a vida. Só depois de já ter trabalhado muito na fazenda como empregado, ajuntando dinheiro, podendo comprá-la, é que as coisas tomaram outro rumo. Até então, tudo de ruim acontecia-lhe. A mãe surrava-lhe por qualquer ninharia. As pessoas não entendiam a condição de menino pobre, humilhando-o, ofendendo-o. Era marginalizado, discriminado. Para que viver assim? Melhor teria sido se não tivesse nascido.


Ouvira na emissora de rádio de Lágrima dos Insanos um cantor de música sertaneja, filho de Zequinha dos Carneiros dizer, numa entrevista, que era homem dos três “p”, pobre, preto e da periferia, mas conseguira viver, tornar-se cantor famoso na cidade. Tudo dependia da força de vontade de cada um. Juca dos Carneiros tinha a opinião de que se não fosse da língua dos três “p”, não teria se tornado quem era.


Ele, Ratto Neves, quando ouvira esta entrevista, lembrara-se logo das circunstâncias da vida: pobre, filho de limpadora de buxo, só não era preto. Tornou-se fazendeiro. Mas o que isto podia ter sentido? Tem tudo o que deseja. Mas não consegue se libertar da vergonha. Se isto já não fosse o suficiente, sofre por saber que vai morrer. Nada pôde fazer para mudar sua natureza, ser homem digno de respeito e consideração, ser homem com “h” maiúsculo, isto é, imaculado. Continua com ninharias, mediocridades, mesquinharias. “Que triste condição, meu Deus!...”
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 11 DE OUTUBRO DE 2018)

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