#CONHECIMENTO E AUTOCONHECIMENTO - PARTE III# IMAGEM: GOOGLE Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



1.0
CONHECIMENTO E AUTOCONHECIMENTO

No livro II do Ensaio sobre o entendimento humano, Locke começa por afirmar que as fontes de todo conhecimento são a experiência sensível e a reflexão.
Desde que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis, e dá-lhe toda vantagem e domínio que tem sobre eles, consiste certamente num tópico, ainda que, por sua nobreza, merecedor de nosso trabalho de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço situá-lo a distância e fazê-lo seu próprio objeto .
Em si mesmas, a experiência sensível e a reflexão não constituiriam propriamente conhecimento; seriam, antes, processos que suprem a mente com os materiais do conhecimento. A esses materiais, Locke dá o nome de idéias, expressão que adquire, assim, o sentido de todo e qualquer conteúdo do processo cognitivo. “Idéia” é, para Locke, o objeto do entendimento, quando qualquer pessoa pensa; a expressão “pensar” é assim tomada no mais amplo sentido, englobando todas as possíveis atividades cognitivas. Incluem-se no significado da expressão “idéia” os “fantasmas” (entendidos, por Locke, como dados imediatamente provenientes dos sentidos), lembranças, imagens, noções, conceitos abstratos.
As idéias de sensação proviriam do exterior, enquanto as de reflexão teriam origem no próprio interior do indivíduo. Nesse sentido, expressões como “amarelo”, “branco”, “quente” designam idéias de sensação; enquanto que as palavras “pensar”, “duvidar”, “crer”, nomeiam idéias de reflexão. Essas duas categorias de idéias seriam recebidas passivamente pelo entendimento e Locke lhes dá o nome de “idéias simples” .
Se considerarmos a famosa passagem em que Wittgenstein diz que uma sensação “não é um algo, mas também não é um nada! A conclusão foi apenas que um nada serviria exatamente tão bem quanto um algo sobre o qual nada poderia ser dito” . Isso dirige a atenção à coisa paradoxal a respeito da afirmação do cético – a insistência de que são as “qualidades especiais incomunicáveis, sentidas” dos estados internos o que importa.
Mas se distinguirmos entre a afirmação de que temos acesso privilegiado a nossas próprias dores e a afirmação de que sabemos em que estados mentais nos encontramos puramente em virtude de suas qualidades especiais, sentidas, podemos evitar o paradoxo e deixar que uma sensação seja tanto um algo quanto uma mesa. A primeira afirmação diz apenas que não há modo melhor de descobrir que alguém está com dor do que lhe perguntando, e que nada pode colocar-se acima de seu próprio relato sincero. A outra diz que o mecanismo que torna esse privilégio possível é a inspeção das “propriedades fenomenológicas” de seus próprios estados mentais. Para passar da primeira afirmação para a segunda precisamos do modelo cartesiano de autoconhecimento como análogo à observação – a imagem do Olho Interno – e da noção de que cólicas estomacais, por exemplo, não são Naturalmente Dadas, do modo pelo qual o são as sensações produzidas por cólicas estomacais.
A simplicidade das idéias não decorreria de nenhum caráter interior a elas mesmas; seriam simples as idéias que não se pode ter a não ser mediante experiências bem concretas, como frio e quente, doce e amargo, etc. Essas experiências concretas forneceriam idéias simples de três tipos: de sensação, de reflexão e de ambas ao mesmo tempo.
A essa concepção dá-se o nome de empirismo psicológico, por constituir uma teoria do conhecimento baseada na análise das funções subjetivas nele envolvidas. Uma conseqüência é o chamado empirismo lógico, desenvolvido por filósofos posteriores, cujas bases já se encontram em David Hume.
O empirismo lógico consiste na afirmação de que as palavras só têm significado à medida que se referem a fatos concretos. Daí decorre a eliminação de todos os conceitos da metafísica, pois estes pretendem referir-se a realidades exteriores ao sujeito pensante, sem qualquer traço de experiência sensível.
Os conteúdos do conhecimento são, para Hume, matérias de fato. Mas não se reduzem a isso. São também relações entre as idéias. Estas podem ser mantidas como puros entes da razão e suas relações lógicas desdobram-se em outras mediante inspeção racional.
De acordo com Hume, um grupo de qualidades morais, ao lado da justiça e da benevolência, caracteriza-se pela utilidade em relação aos próprios possuidores; é o caso da diligência e da frugalidade, por exemplo. A aprovação dada a elas não decorre do interesse pessoal, pois são também estimadas nos outros.
Algumas virtudes, como a honestidade e a sinceridade, são apreciadas tanto pela utilidade para o próximo, quanto por serem convenientes para os indivíduos que as possuem. Outras, como a coragem e a alegria, repousam não na utilidade, mas no agrado ou conveniência para o eu ou para os semelhantes. Diferentemente das anteriores, virtudes como a modéstia e as boas maneiras têm como fundamento o agrado proporcionado a todas as pessoas.
O empirismo de Hume se esforça por reduzir todo o pensamento ao sistema de imagens. Ele toma de empréstimo ao cartesianismo sua descrição do mundo mecânico da imaginação e isolando esse mundo, por baixo do terreno fisiológico no qual ele mergulhava e pelo ato do entendimento, faz dele o único terreno sobre o qual o espírito humano se move realmente.
Não há no espírito nada mais do que impressões e cópias dessas impressões que são as idéias e que se conservam no espírito por uma espécie de inércia; idéias e impressões não diferem em natureza, o que implica que a percepção não se distingue em si mesma da imagem. Seria preciso recorrer, para reconhecê-las, a um critério objetivo de coerência, de continuidade, cujo sentido é bem mais obscuro que em Descartes, pois não se compreende sobre o que pode o espírito se apoiar, sendo ele constituído unicamente por um mosaico de impressões, para sair das impressões e elevar-se acima delas por meio de um juízo.
As imagens estão ligadas entre si por relações de contigüidade de semelhança, que agem como “forças dadas”, aglomeram-se segundo atrações da natureza semimecânica, semimágica. A semelhança de certas imagens permite-nos atribuir-lhes um nome comum que nos leve a crer na existência da idéia geral correspondente, sendo unicamente real, entretanto, o conjunto das imagens, e existindo “em potência” no nome.
Essa teoria supõe uma noção que, entretanto, não é nunca designada: a de inconsciente. As idéias não existem mais do que como objetos internos do pensamento e, no entanto, não são sempre conscientes. São despertadas apenas por sua ligação com idéias conscientes; perseveram, pois, em seu ser à maneira de objetos materiais, estão sempre inteiramente presentes no espírito: entretanto, não são todas percebidas. Por quê? E, além disso, como é que o fato de serem tiradas por uma força dada de uma idéia consciente lhes confere o caráter consciente? Hume não coloca o problema. A existência da consciência se desvanece totalmente atrás de um mundo de objetos opacos que retiram, não se sabe de onde, uma espécie de fosforescência distribuída, aliás, caprichosamente e que não desempenha nenhum papel ativo.
Qualquer teoria que encare o conhecimento como exatidão da representação, e que afirme que somente se pode ter certeza racionalmente sobre representações, tornará o ceticismo inevitável.
Se a filosofia é uma tentativa de ver como “as coisas, no sentido mais amplo do termo, estão unidas, no sentido mais amplo do termo estão comungadas”, então irá sempre envolver a construção de imagens que terão problemas característicos, bem como gerar gêneros característicos de escritos.
O ceticismo e o principal gênero de filosofia moderna têm um relacionamento simbiótico. Vivem para a morte um do outro, e morrem para a vida um do outro. Dever-se-ia ver a filosofia nem como alcançando o sucesso por “responder ao cético”, nem como feita fútil ao se perceber que não há nenhum caso cético a responder.

(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2018)

Comentários