TEMPO DA SALVAÇÃO (KAIRÓS) GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira: CRÍTICA LITERÁRIA




Post-Scriptum: JOSÉ MARIA GONÇALVES é membro da Academia Cordisburguense de Letras Guimarães Rosa. O poema #ENVELHECER# aqui analisado figura na Antologia dos Poetas Cordisburguenses.


Desde a tenra infância, ouvia dizer que os velhos experienciaram a vida, viveram suas alegrias, felicidades, dores, sofrimentos, angústias, lutaram arduamente para a sobrevivência, criação e educação dos filhos, e por essas razões todas, além de merecerem o nosso respeito e consideração, são eles que nos podem indicar as trilhas da vida por onde podemos construí-la com menos sofrimentos e dores.


Quando nasci, minha avó já estava com seus setenta e cinco anos, paralítica, devido a derrame cerebral, numa cadeira, mas continuamente trabalhando, tecendo crochê. Fora ela que mais me incentivara na leitura, pois que sempre pedia para ler para ela – eu, sentado no chão, ela, na cadeira.


A grande maioria das pessoas nega pura e simplesmente o fato de estar envelhecendo. Apegam-se à mocidade como a lagarta se agarra ansiosa ao galho, recusando-se a transformar-se em borboleta, o que lhe permitiria lançar-se na liberdade nova do novo.


Nos anos de declínio, homens e mulheres, muitos, ficam sonhando em solitários devaneios, lembrando nostalgicamente o passado. Uma das grandes tentações da velhice é escapar de um presente hostil e de um futuro que nada promete, refugiando-se nas agradáveis lembranças do passado. Com a idade, muitas pessoas percebem – e isto provoca um choque bem grande – que a atenção e o respeito da comunidade e da família para com elas parecem diminuir. O resultado é muitas vezes a perda da estima própria e um sentimento de amargura quanto à falta de reconhecimento e gratidão das pessoas.


Os sonhos... Habitam-nos o espírito e toda a nossa vida a busca de real-izá-los, com a real-ização sentirmos presente a Vida, sentirmos a felicidade e alegria de havermos dado sentido, havermos construído a nossa imortalidade, havermos alimentado de nosso próprio pão com o nosso suor e esforços. A vida é curta e muitos deles, devido a estas ou aquelas circunstâncias não tiveram oportunidade de real-izá-los, fomos obrigados a escolher entre os mais urgentes, necessários, deixando os outros para outros tempos e possibilidades. E muitos destes, que esperaram real-izá-los depois, eram as seivas da vida, eram as águas que saciariam as sedes de ESPIRITUALIDADE E VIDA.


Você, caríssimo José Maria Gonçalves, inicia seu poema Envelhecer “Lá se vão os meus sonhos/morar noutra cabeça”. Em princípio, lendo tais palavras, perpassa-nos uma tristeza enorme, sentimento de vazio habitar-nos. Em qualquer tempo, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice, a vida sem sonhos não tem qualquer sentido, tudo é inútil, desprovido de senso – os sonhos são as raízes de todas as coisas por que estamos dis-postos a morrer, são as esperanças de ser, de a vida ser, do ser ser vida. Sem os sonhos não sabemos nem mesmo existir – a vida é curta para real-izarmos os nossos sonhos, mas sem eles a vida é demasiado longa, sem princípio, sem fim. A vida é continuidade, os sonhos nunca morrem, prosseguem a longa jornada, e são outros que irão real-izar o que não podemos fazê-lo.


A atitude de desapego permite ao homem conhecer o verdadeiro valor das coisas, sem interferência de interesses pessoais, egoístas ou das várias deformações e preconceitos que costumavam obliterar a visão, na mocidade. Se um homem perfaz esse estágio de desprendimento e clarividência, a geração mais jovem o procurará para obter conselho, já que não há mais razão de recear a dureza de suas ambições egoístas e subjetivas. Os mais velhos terão, neste momento, trocado o trono do poder pela posse da sabedoria, através da qual se pode exprimir, de-monstrando com-pre-ens-ão e aconselhando judiciosamente os mais moços.


A partir dessas últimas palavras, aqui registradas, é que percebo e intuo a trilha essencial para comentar, analisar esse poema de sua autoria. Em verdade, o personagem, neste instante de sua meditação e reflexão acerca de seu envelhecimento, deste ato e atitude de envelhecer, busca despojar-se de seu passado, egoísmos, particularismos, interesses, desejando real-izar a espiritualidade, esta imortal esperança que lhe habitou todos os instantes de sua vida passada. “Lá se vão as borboletas/que me circundaram...”, as borboletas aqui são símbolos, re-pre-(s)-“ent”-ações dos desejos de liberdade, de completude, de integridade, desejos que “circundam” a vida, que pro-jetam o presente, levam-no ao futuro, que se torna presente, mas com outras experiências e real-izações, noutras palavras esses desejos de liberdade são de o ser se presentificar, viver o ser na sua totalidade.
“(...) flores à minha volta tão tristes murcharam”. Entendo aqui as “flores” como sendo as alegrias, satisfações, felicidades, contentamentos, tudo isso que tornou a vida o ser, que tornou a vida bela; no envelhecer, no envelhecimento, na velhice, tudo isso são “flores do passado”, nada restando senão contemplá-las na memória, nas lembranças e recordações tantas vividas e experienciadas. Lembrar é viver de novo. Cada um de nós deverá integrar o próprio passado no presente, e parte da tarefa será, no caso, saber confrontar-se honestamente com as faltas já cometidas.


“Lá se vão arrebóis/de minhas manhãs/. Onde estão girassóis/de cor tão louçã?” Cada pessoa precisa des-cobrir, à sua maneira, as alegrias da velhice. Os arrebóis das manhãs não são, na memória do personagem, as alegrias da sua vida? - com certeza, sentiu-os presentes e fortes no passado, sentiu-se alegre e feliz com eles, e agora nas suas lembranças são sementes e raízes deste novo tempo.


E os girassóis de cor louçã, onde estão? Algumas formas e expressões de alegria e felicidade características da mocidade, já não possuem o mesmo atrativo, na velhice; outras já nem são mais possíveis. Por exemplo, a participação em esportes fisicamente difíceis, as viagens e o fascínio do amor jovem podem ter sido fonte de felicidade e de júbilo em dias passados; mas para muitos velhos são apenas lembranças.


“Foram-se os risos/de minha infância/. Jovem já não sou/. Por onde passou imortal esperança?” A historicidade do homem, o fato de o homem existir e agir apenas dentro de uma determinada moldura histórica tem sido muito fortemente acentuada por filósofos contemporâneos. Alguns parecem, entretanto, inconscientes de que a Sagrada Escritura de-monstra também um senso agudo do caráter essencialmente histórico do homem. São Paulo escreve em sua epístola aos Romanos: “E isto é importante para nós que conhecemos o tempo da salvação (kairós); já é hora de nos levantarmos do sono” (Rm 13,11).


“Já chegou o ocaso/. Acaso não viste?/ A noite me vem/tão fria e triste”. As últimas anotações no diário do velho culminam com a descoberta feliz de que finalmente a gélida capaz de avareza e de amargura se vai diluindo em torno de sua alma. Para Mauriac, a existência humana parece um longo e perigoso ziguezague encosta acima. A escuridão prevalece durante quase todo o tempo da subida e a luz só começa a brilhar no fim, quando o cume iluminado emerge de maneira transcendente, sobre a névoa da existência humana.
“Me curvo pro chão/adeus, minha amada/, não vês que a mãe terra/tão doce me aguarda?” A dimensão da eternidade futura re-vela-se como esplêndida luz cheia de calor que ilumina o presente e dá novo sentido e esperança a tudo. A morte, para este personagem do poema, significa a travessia dura, porém gloriosa do deserto, na jornada para a terra prometida; terra, não de inerte e eterno “descanso”, e sim de união feliz e cheia de amor, com Cristo, na Trindade.


“Me curvo pro chão/. O céu já não vejo/Por sob meus pés/mora meu desejo”. A imortal esperança do homem, o desejo da espiritualidade. À luz da espiritualidade trinitária, deveríamos encarar a eternidade e o céu como a mais alta possibilidade criadora do homem: participação ativa na vida e no amor das três pessoas Divinas e em sua criatividade.


Seu poema, caríssimo José Maria Gonçalves, se sentido e vivido no que, nas suas entre-linhas, é re-velado acerca da vida e da morte, torna uma experiência muito rica para o homem idoso, a experiência do triunfo do espírito, acorda forças interiores e poder criativo, que ajudarão a descobrir e desenvolver novas dimensões humanas e transformar a morte na espiritualidade.


#RIODEJANEIRO#, 16 DE ABRIL DE 2019#

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