CONHECIMENTO E AUTOCONHECIMENTO - PARTE II# IMAGEM: GOOGLE Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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CONHECIMENTO E AUTOCONHECIMENTO
1.1 – CETICISMO 

O objetivo último de toda investigação da inteligência deveria desembocar na verdade divina.
O valor e a dignidade do homem só seriam conhecidos à medida que o homem fosse visto como elo intermediário de uma corrente contínua, que vai das mais baixas formas de mundo natural até o ser supremo e absoluto, Deus. O homem, como parte do reino da liberdade, resumiria em si o conteúdo de todo ser espiritual, e nele é que o reino da natureza realizaria o seu verdadeiro destino.
Imerso no Eu contraditório e cambiante, independente e autônomo, o pensamento moral de Montaigne está no pólo oposto ao da religião, se esta é entendida como explicação e chave do mundo. Para ele, a mais desgraçada e frágil criatura entre todas é o homem, chafurdado no meio da turba e dos excrementos do mundo, amarrado à pior, à mais morta e estagnada parte do universo.
Comecemos por duvidar de nossos conhecimentos já que percebemos de modo fácil que nos enganamos algumas vezes. Os conhecimentos provenientes dos sentidos são os mais facilmente postos em dúvida. Duvidaremos das verdades matemáticas? Estando qualquer alguém dormindo ou acordado dois e três fazem cinco. Se estou persuadido de que não há nada, nem céu, nem terra, nem espíritos, nem corpos, não estou entretanto persuadido de que não existo. Eu sou, se me engano; duvido, penso, existo: essa palavra é necessariamente verdadeira todas as vezes que a concebo em meu espírito.
O centro de toda problemática do conhecimento e, conseqüentemente, de toda filosofia não é, portanto, o mundo, mas o homem. E este pouco sabe de si. Perguntando-se sobre sua essência, constata um cerco de coisas insólitas, superficiais, insossas. Tudo o que vê parece estranho e bizarro, vazio e ridículo. Tanto as coisas próximas, pelas quais passa sem deter-se, quanto as distantes e relatadas pelos outros. Aquilo que toma por real não é mais que parcela do possível. Como pode pretender que isto aqui exista e aqui não? Colocado diante do desconhecido, frente a um mundo de maravilhas, no qual se acha implicado, sem poder decifrá-lo, o homem procura refúgio em si e na própria vida, essa coisa que lhe surge sempre como um dado presente.
A vida deve ser vista exatamente como ela é, no que a condiciona, no seu encadeamento, nas particularidades e no ritmo de progressão. O homem sabe não ser possível escapar de si e não pode fugir da vida. Sabe não ter existência fora das fronteiras onde está encerrado. Sabe não ser mais que um indivíduo, que vive e morre, passando alternadamente pela dor e pela alegria. Diante de si a morte, distante ou próxima, mas sempre presente e com ressonâncias percebidas a todo instante.
Quanto a tudo mais podemos dissimular; fazer, como filósofos, belos discursos de forma excelente, como escritores, obras-primas; conservar a nossa serenidade em face de acidentes que nos atinjam superficialmente. Mas na última cena, a que representa entre nós e a morte, não há como fingir, é preciso explicar-lhe com precisão em linguagem clara e mostrar o que há de autêntico e bom no fundo de nós mesmos: “então a necessidade arranca-nos palavras sinceras, então cai a máscara e fica o homem”, diz-nos Lucrécio.
Só sentimos a morte pelo pensamento, tanto mais quanto é coisa de um instante: “Ou a morte foi, ou será; nada é presente nela”, diz-nos La Boétie. E Ovídio também nos diz: “Ela é menos cruel do que sua espera”. Milhares de homens, milhares de animais morrem sem se sentirem ameaçados. Dizemos também que o que tememos principalmente na morte é a dor, seu sinal precursor.
Por que o alcançar a dimensão da sublimidade, atingir o sublime, real-izar isto verdadeiramente, não é a nossa morte? Estamos dispostos a morrer por ela. O nosso desejo será selado nela. Por que não?
Diz-nos Montaigne:

Tudo vemos em relação a nós mesmos, daí darmos à nossa morte grande importância, pensarmos que não pode ocorrer facilmente e sem solene consulta aos astros: “Quantos deuses incomodados com a vida de um só homem!
A experiência mostra que é antes a inquietação causada pelo sentimento da morte que faz com que lhe sintamos vivamente a dor, e nossos sofrimentos nos são penosos quando os pressentimos capazes de nos conduzir a tal fim. Mas o raciocínio enche-nos de vergonha por temermos coisa tão repentina, inevitável e que não se sente; e marcarmos nossa covardia com os pretextos mais plausíveis. Os males que, como conseqüência, só nos trazem sofrimento, nós os consideramos sem perigo. Quem encara como doença as dores de dentes, a gota, por dolorosas que sejam, se não nos ameaçam a vida?
A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira? Por que não coloca o freio no rabo do asno, desde que meteu na cabeça andar de costas? Não há como estranhar caia tão amiúde na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvisse falar no diabo. E como ela é mencionada nos testamentos, só resolver fazer o seu quando os condenou o médico. E Deus sabe em que estado de espírito se encontram então, sob o impacto da dor e do pavor .
É somente para si que o homem pode dirigir-se para se conhecer. Ele é o ponto de partida e o ponto de chegada. Experimenta todas as coisas como se realmente houvesse algo novo, como se acabasse de despertar para a vida. Eterno pesquisador e questionador, o homem está sempre em busca de novos conhecimentos, para ele tudo se torna objeto de meditação, reflexão, busca.
O homem é, para Montaigne, tão estranho quanto enigmático, sejam quais forem as experiências acumuladas em sua vida. Jamais atinge a si e nunca conhece as razões daquilo que se passa consigo.
O conhecimento humano encerra-se dentro dos próprios limites do sujeito pensante e nada comunica de seguro sobre a natureza das coisas, nem sobre o próprio homem. Igualmente impossível é formular um conjunto de preceitos éticos com validez objetiva. Assim como as sensações nada descobrem dos objetos externos, também os valores, aparentemente inerentes às coisas, reduzem-se a reflexos do sujeito, e nada é bom ou mau “em si”.
O que geralmente chamamos valor das coisas não é o que elas carregam, mas o que nós colocamos nelas. Impõe-se, conseqüentemente, a renúncia a toda e qualquer moralidade objetiva, pois não haveria norma alguma, por mais extremada e fantástica aos nossos olhos, que não seja encontrada em algum lugar. Nenhum conteúdo moral consagrado estaria assim imune a uma virada pelo avesso, os vaivens dos tempos e espaços. Os princípios da moral desfazem-se como espuma e só restaria ao homem voltar-se para si e tentar encontrar um ponto fixo de equilíbrio e quietude, subtraído às transformações das coisas externas.
O ceticismo resguardaria, desse modo, o indivíduo contra o império das normas morais impostas pelos outros e, opondo-se a todas as convenções arbitrárias, assegurar-lhe-ia a liberdade. O cético não pode, na verdade, realizar nenhum ato de pensamento, pois tão logo o faça estará pressupondo a possibilidade do conhecimento e enredando-se, assim, na mesma autocontradição.
A aspiração ao conhecimento da verdade é, do ponto de vista do ceticismo estrito, desprovida de sentido e de valor. Nossa consciência ética dos valores, porém, protesta contra essa concepção. Irrefutável sob o ponto de vista lógico enquanto suspende todo juízo e ato de pensamento – o que, na prática, é certamente impossível –, o ceticismo é verdadeiramente batido no campo da ética.
No tangente a David Hume, o ponto de partida de Investigações sobre o entendimento humano é uma classificação de tudo aquilo que se dá a conhecer como sendo de dois tipos: impressões e idéias. As impressões são os dados fornecidos pelos sentidos, sejam internas – como a percepção de um estado de tristeza -, sejam externas, como a visão de paisagem ou a audição de ruído. As idéias são representações da memória e da imaginação e resultam das impressões como suas cópias modificadas; podem ser associadas por semelhança, contigüidade espacial e temporal e causalidade.
Em suma, trata-se de um novo passo em relação à teoria de John Locke, segundo a qual a mente é uma tabula rasa, uma folha de papel em branco, em que são impressos caracteres através dos mecanismos da experiência sensível. Cegos ou surdos de nascença não possuem esses caracteres, ou seja, não têm idéias correspondentes às cores ou aos sons, e um ser completamente desprovido dos sentidos jamais seria capaz de qualquer conhecimento.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2018)

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