#VALEU A PENA EXISTIR?# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: POEMA +



Augúrio apaziguado,
Vagas plácidas,
Medos entupigaitados
De nuvens claras e escuras
Embatem na face das casas,
Deslizam pelos muros desenhados de lodo,
Pichados de letras mortas, palavras esquecidas,
Escorrem largamente pela terra.


O meu pensamento fosforece.
Minhas idéias reluzem-se.
Minha razão vagalumia.
Evolam-se no ar umedecido dos pingos de chuva
Que caíram por instantes,
Suspende-se o ergo non sum.


Estou nu por dentro,
Vê-se nitidamente a minha intimidade tímida,
Envergonhada,
E a inocência é aí,
Agora ainda,
Por sempre,
Na eternidade do instante,
Na efemeridade do vento,
Na fugacidade da vida, da morte
E a ingenuidade é lá,
Por algum tempo,
Na etern-itude do momento.


A lua vai alfim aparecer.
As estrelas vão enfim brilhar.
A neblina alastra ao meu horizonte sem fim,
Aos meus uni-versos por serem,
Aos meus horizontes por virem,
Os olhos doem-me da nitidez estéril,
Do nítido nulo,
Da aparência frígida,
Da folha limpa por escrever.


Timbre de prata, flutua.
As cordas da lua tremem.
Passam a legenda e os anjos,
Passam os mitos e as fadas.
Passam os ritos e as bruxas.
Passam os causos e os sacis-pererês.
Passam as mentiras e os lobisomens.
Que é que isto quer dizer?
Ou nada quer dizer?
Devo estar velho,
A solidão ec-siste insuportável.
Ou estou a re-nascer,
Re-fazendo o retrógrado, o démodé,
O velho, o caquético?
O silêncio e--xis--te pleno de linguísticas,
Semânticas, absoluto de metafísicas.
Ou quê por ela? Ou o quê por ele?
De repente a vida ficou muito mais extensa.
Os olhos deambulam muito longe,
A longitude da correspondência entre o horizonte e o infinito,
Entre a terra e o mundo.
Tão extensos, tão longe que tudo atrás fica lendário,
Tudo atrás é conto do vigário,
É estória da carochinha.
É nostalgia de Zagaia.
É melancolia da cidade de Braga.
É saudade das couves do Zé,
É lembrança afetuosa do Zé das Couves.


Respiro devagar,
Trago a fumaça do cigarro lentamente.
Como se me balanceasse o corpo
Ao ritmo sereno do universo.
Noite ofegante, olho-a.
Pela janela,
Ao alto,
Sobre o negrume dos pinheiros, palmeiras,
Silencioso céu.
Estendo-me na rede,
Extenuado das memórias do dia,
Do cão que latia incansavelmente
Por estar preso pela corrente,
Do barulho da água
Que enchia o tanque de lavar roupas...


É no silêncio que vivo,
É no silêncio que con-templo
O mundo e a terra,
Aprenderei outra linguagem?
É na solidão que prolongo os dias,
É dizendo a mim o que tenho a dizer
Ao outro
Que arrasto os ponteiros do relógio,
Aprenderei outro estilo?
Assimilarei outra estética?


Não há palavras ainda para inventar o mundo novo.
Não há sentidos ainda para re-velar
O outro dos sonhos,
Utopias,
Dos verbos que hão-de ser.
Estou só, horrivelmente povoado de mim.
Valeu a pena viver?
Valeu a pena trilhar as estradas de poeira?
Valeu a pena passear pelas manhãs,
Con-templando
As folhas verdes umedecidas do orvalho da noite?
Valeu a pena sentar-me no quintal, no alvorecer,
Observando o canteiro de tomate, os pés de limão,
De laranja da terra, de caju, de manga
As primeiras maçãs do pé, inda miudinhas?
Matei a curiosidade,
Vim ver como isto era,
Valeu a pena.


É preciso que tudo des-apareça
Para que tudo possa re-construir-se
- re-construir-se através de um "deus único",
um "deus final".
Não sei ainda a linguagem do mundo
Que terei de re-inventar,
O estilo da ec-sistência
Que terei de re-criar,
A estética do Latim que embeleza
As máximas, as expressões
O Latim não é língua morta,
É Língua-semên da éresis do poema,
Da iríasis da poesia,
A forma da imanência que terei de re-fazer.


#RIODEJANEIRO#, 18 DE NOVEMBRO DE 2018)

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