***ANO NOVO SOZINHO*** - Manoel Ferreira


Ano Novo sozinho. Quê esplendor de começo!
À meia-noite, não vou estar escrevendo palavras. Inda não decidi se vou andar sem rumo, entrando e saindo de ruas, se vou me sentar nalgum botequim, tomar uma cerveja, brindar-me: "Feliz Ano Novo", se me sentarei à soleira da porta de minha casa, contando estrelas no céu.
Isso não é novidade. No passado, Natal e Ano Novo passava numa mesa de botequim, no canto, isolado dos presentes ou andando pelas ruas, garatujando letras num papel. Compreendo e entendo naqueles tempos do Zagaia, dúvidas, medos, inseguranças eram as companheiras da estrada, não sabia se os sonhos seriam realizados, os sonhos das letras. Só dizia: "Ano que vem quem sabe tudo aconteça." Inspirado nisto: "se os sonhos se fazem continuamente, a continuidade são também os sonhos", continuava escrevendo nos trezentos e sessenta e cinco dias.
Por que isto agora? Os sonhos se realizaram, estão sendo realizados. Sei sensivelmente para onde estou indo, meu nome está escrito nas estrelas. É a minha vida. Não estou sozinho, não vou passar o Ano Novo sozinho, vou passá-lo comigo, eu e eu. Vamos abrir uma garrafa de Champagne e brindarmos ao outro em nós dentro. Mas os tempos são outros: completo sessenta anos em 2016, os passos agora são para a sabedoria, odeio a palavra "velhice, faz-me lembrar a morte.
Há coisas que, se ditas, causam risos, denotam surpresas. Dizer que escritores, poetas, filósofos, artistas em geral, vivemos sozinhos: isso é destino, sina, saga. Deus assim prescreveu para nós.
"Você acredita nestas coisas? Não parece." Nada de destino, nada de saga, nada de sina, simplesmente a realidade nua e crua. Podemos estar rodeados de pessoas, amigos, íntimos, a solidão presente. Pude perceber ainda mais esta realidade na Noite de Natal, rodeado de irmãos, sobrinhos, cunhados, cunhadas, sobrinhos-netos, alguns amigos: sai de mim, vi-me construindo uma vela. Para criar, é preciso estar sozinho. Voltei à realidade porque meu irmão tocou-me o braço. Por todo o tempo da confraternização entre a família, Giuliano ao meu lado. Não demorou muito, abracei e beijei a todos, despedi-me, vim para casa. Antes de dormir, disse em voz alta: "Hurray, solidão... É Natal..."
Há uma sutil e sui generis diferença entre estar-só e ser-só. O estar-só é ser destituído, desprovido do "eu", a solidão do outro, presença do outro. Ser-só já é o "eu", a identidade, a solidão do "eu". Estou entrando nesta solidão, mergulhando profundo nela, daqui para frente até a consumação da carne e dos ossos serei esta solidão. Rodeado de amigos, leitores, pelo mundo inteiro, nos braços da amada, mas sozinho.
Certa vez, nos anos ´80, conversando com um amigo, ator, Antônio Pôncio, disse-me ele que no além iria ter uma conversa séria com Deus: fizesse Ele a vida dos artistas diferente, tirasse-lhes a solidão congênita. Rimos à beça. E hoje, passados tantos anos, de nada rio, estou sério, muito sério. E Antônio Pôncio ainda disse: "Manoel, os presentes no espetáculo, saem do teatro alegres, felizes, sentindo-se outros, tecendo o futuro com as mensagens da peça, e os atores voltam ao camarim, desfazem a maquiagem, voltam para casa sozinhos" E outro amigo que estava presente, Paulo Ursine Krettli, poeta e escritor, disse-nos: "Se vocês dois se sentem sozinhos, é escolha de vocês. Não me sinto sozinho" Estava ele enormemente feliz, encontrou o grande amor de sua vida, estava namorando, muitíssimo apaixonado. Disse-lhe: "Quero ver você dizer isto daqui a alguns anos. Poeta, escritor de talentos e dons de excelência você é. Não negue a vida. Com certeza, ela vai cobrar de você a negligência, a subestimação, a negação."
Ano Novo sozinho... Se estiver entrando e saindo de ruas, se estiver sentado num botequim, tomando uma cerveja, se estiver sentado à soleira da porta de minha casa, à meia-noite, quiçá diga para as estrelas mais distantes de meus olhos ouvirem: "Hurray, Vida... É Ano Novo..." Ano Novo é "re-nascimento", ser outro, conservando o eu dos éritos do tempo. E este ser-outro de minha solidão, no passado inseguranças, medos, dúvidas, agora certezas e consciência, é a cada passo tecer a liberdade da consciência de ser-só, eu diante de mim próprio, eu diante da minha vida, eu diante do que mais mágico pode existir, eu diante da realidade de não mais me pertencer, sou do mundo, sou cidadão da vida. Se o disser mesmo, com certeza vou escrever algumas letras, brindando a todos os abismos, florestas, mares, campos, chapadões à solidão do ser-só. Após, deitar-me-ei, dormirei, acordarei no Novo Tempo da Humanidade, de mim próprio.
Acredite quem não quiser, mas num final de ano passado, sentado num banco de mármore no alpendre de minha casa, podia ter quinze, dezesseis anos, mãe-Dinha aproximou-se, dizendo: "Meu filho, a vida lhe reserva muitas coisas. Hoje é assim... Amanhã você se surpreenderá com tudo..." Palavras de sabedoria. Vivo me surpreendendo com a minha vida. As letras são as lídimas responsáveis por todas as surpresas. A mestra e amiga sugeriu que mudasse o título de um texto meu: ao invés de ADEUS ÀS CON-TINGÊNCIAS... LIBERDADE para DECLARAÇÃO DE AMOR IN-FINITO ÀS LETRAS.

Manoel Ferreira Neto.

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