A rua está deserta, o silêncio é profundo. Parece-me
até um contra-senso estar a dizer de alegrias e felicidades e não haver luar, a
noite estar clara, no céu, o vazio das estrelas que luzem. Não tenho sono. Esta
é a verdade.Não deveria estar triste, infeliz, não tendo sono, estar encostado
ao parapeito da janela de guilhotina, relembrando circunstâncias, situações,
dores, sofrimentos de minha existência, quando não perscrutava nenhuma
possibilidade de superação? Por que então dizer de felicidades, alegrias? As
alegrias, felicidades se justificam porque, enfim, sinto-me um homem capaz, um
homem forte, fui capaz de superar todas as dificuldades. Sinto-me um outro
indivíduo, ouço o bater de meu coração de tanta exultação, de tanto êxtase.
Bom isto de ver a vida modificada. Perdi o sono
devido a todas essas sensações, a todos estes sentimentos, a todas essas
emoções; e, se me encostei ao parapeito da janela, foi com a intenção de
contemplar a noite, de me sentir imerso nela, segui-la em seu itinerário rumo
ao dia, rumo às luzes, rumo aos raios solares... Talvez amanhã faça sol. Tem
chovido muito. Fim de ano. Normal a chuva. A diferença está em que outrora,
aquando tinha insônias, era de muitas tristezas, angústias, um medo
insofismável de nada realizar, de a vida não ter tido sentido algum, os sonhos
terem sido em vão... Hoje, a insônia está sendo de alegria, de felicidade.
Encontro-me de pé, encostado ao parapeito da
janela, uma das cinco de guilhotina em minha residência. Ainda digo de flores e
folhas verdes, não mortíferas, senão vivificantes, parecem alcatifar-me o
caminho e convidar-me a descansar das mágoas, sofrimentos, dores.
Que me
importaria a melancolia da natureza, se dentro de mim encontra-se uma fonte de
inefáveis alegrias, felicidades? Que me importaria ruas inóspitas, silenciosas,
profundas? Que me importaria o vazio de estrelas no céu?
Abrira uma antologia de poemas de um grupo
literário, aliás, nele havendo dedicatória de alguns poetas deste grupo, lera
um poema, iniciando a vagar no tempo, uma sensação enorme de leveza, de tranqüilidade... Fechei o livro. Recostei-me
na cadeira, ficando alguns minutos pensando, refletindo.
Surgiu-me que há pontos obscuros nos meus
sentimentos. Que gota amarga é esta que lançaria a Providência Divina na taça
de meus êxtases, de minhas delícias? De acordo com estas palavras, seria a
Providência Divina a lançá-la. Isto é totalmente absurdo, a Providência Divina
em instantes de tristezas e infelicidades lançar-me-ia uma gota de vinho na
minha taça.
Não consigo de modo algum descobrir o que há de
errado em minhas palavras, na revelação dos sentimentos todos que me perpassam
o espírito, a alma. Talvez seja por um embuste sem limites e fronteiras, enfim
não estou a sentir-me alegre, feliz, tento sim é tripudiar, mentir-me para
poder enfrentar a noite, não me desesperar por inteiro. Se investigo com
perspicácia e destreza os últimos tempos de minha vida, não vejo qualquer coisa
que me engane, nada de elevado, nada de espiritual, nada de realizações, tudo
permanece igual, sem qualquer diferença, tudo inóspito, tudo sem sentido, tudo
sem qualquer senso. Não. Estou convicto das mudanças e transformações, dos
sentimentos e emoções que perpassam o coração.
Quem sabe o erro crasso na expressão de meu estado
de espírito esteja no esquecimento da crase, ou seja, “Por que me hei de lançar
à Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas
alegrias?” De início, até me parece mais nítida, a expressão me parece mais
verdadeira, ou seja, não rogo e peço à Providência Divina a misericórdia, a
compaixão, diante de minhas tristezas, infelicidades, sou eu quem necessita
lutar para a transformação, a responsabilidade é tão somente minha. Sou homem
quem pode lutar sozinho, tem força suficiente para enfrentar os antemãos e
revezes da vida.
No entanto, continuo ainda sobremodo confuso com o
sentido que desejei revelar, o sentimento que sonhava se tornasse translúcido,
revelasse a profundidade de minha alma, de meu espírito. Posso até dizer que,
em dizendo “confuso”, esteja sendo muito simples, e esta simplicidade esteja a
esconder algo muito forte, muito presente, que eu próprio me recuso a aceitar.
Em verdade, estou sim perdido com o que desejei expressar. O tempo não é mais
que um sonho. Minha natureza se refrata em mil reflexos, em mil imagens, mas
ela não pertence à ordem temporal. Sou um sonhador: eis a minha verdade e minha
essência eterna.
Se ainda continuo a contemplar a frase que está a
deixar-me assim, confuso e perdido, acho melhor isto admitir, talvez fosse mais
fácil para desvendar o seu mistério, percebo a presença de um pronome oblíquo
que poderia haver sido omitido, não é necessária a sua presença. Ao invés de
dizer: “Por que razão me hei de lançar à Providência Divina esta gota amarga na
taça de meus êxtases, de minhas alegrias?”, dizer: “Por que razão hei de lançar
à Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas
alegrias?”.
Bem, o caminho de compreensão e entendimento se
torna mais claro, límpido, nítido, após a lembrança da crase que estava
faltando, a presença do pronome oblíquo que não se fazia necessária.
Entretanto, ainda há algo que permanece inteligível.Creio que se trata da
acepção do verbo “lançar”. Em princípio, mesmo pelo costume e hábito de saber
apenas uma acepção das palavras, o que me surge, lendo, é que a acepção não
é “jogar, arremessar” e sim de
“atribuir, imputar”. Quer dizer: por que hei de atribuir à Providência Divina –
no sentido de torná-la responsável, culpada – esta gota amarga na taça de meus
êxtases, de minhas alegrias? Aí sim tudo se torna claro. Não é desejo meu
encontrar culpados e responsáveis por minhas dores, meus sofrimentos.
Agora, se não fizesse qualquer mudança na frase,
se a deixasse como antes fora registrada, creio que haveria uma ênfase, um
estilo de chamar a atenção para os estados de espírito que me perpassam. Embora
tenha feito as modificações, a fim de poder compreender, entender, pois que me
pareceu muito estranha a frase, creio que a deixarei assim: “Por que me hei de
lançar a Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas
alegrias?”. Aliás, quanto à crase que pensei haver, em princípio, e, agora,
após uma investigação mais pormenorizada, descubro que na acepção de “atribuir,
imputar”, o verbo “ lançar” é transitivo direto e intransitivo, portanto não
havendo qualquer crase. Quanto ao pronome oblíquo não há engano algum, e
alternativo o seu uso, no caso aqui apenas para enfatizar.
Resta saber que gota amarga na taça de meus
êxtases, de minhas alegrias, é esta. Refiro-me à tristeza que ficou no
esquecimento dentro das sombras. Ela é a responsável por estar eu insone,
encostado ao parapeito da janela de guilhotina, numa noite sem luar, apesar de
sua claridade, o vazio das estrelas que luzem, embora esteja feliz, alegre com
as mudanças e transformações de minha vida. Compreender a infelicidade de uma
mulher com o falecimento de seu marido, as dores do filho, são coisas fáceis de
se entender: se amanhã perder minha mãe, minha mulher, meus filhos, essas
desgraças admito, comportam cerimônias conhecidas.
Com estas palavras, poderia fechar a janela,
dirigir-me ao quarto, deitar. Se a tristeza ficou no esquecimento dentro das
sombras, é quase que impossível traze-la à superfície, torná-la inteligível.
Será agora um mistério. Contudo, não sou homem quem se entrega assim às
impossibilidades. Necessito saber que tristeza é esta que ficou no esquecimento
dentro das sombras.
Surgiu-me que um homem feliz, alegre, assistindo
às suas realizações, intensificando ainda mais os seus sonhos e desejos, deseja
sim compartilhar e partilhar com alguém muito íntimo, alguém muito amado e
querido. É isto. A tristeza que me tomou se justifica por não ser possível a
presença deste alguém íntimo, muito querido e amado.
Precisava saber de que se tratava. Descobri. A
alegria e felicidade são imensas, plenas, agradeço a Deus por elas. Posso
sentir-me presente, realizado, e isto é realmente um dom divino.
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