**CINZAS DE CEMITÉRIO** - Manoel Ferreira
Benzinho amor, Adriana Moreira, você
andava me pedindo "sátiras", estava saudosa delas, os seus amigos
pedindo que as escrevesse. Então, está aqui uma sátira de "mimo" para
você.
Faz cinzas de cemitério esquecido -
superlogou-se, construíram outro - que não tomo da pena para diversão mais que
peculiar, exótica, em verdade, em verdade, privada, tome atenção, leitor, não
sou garatujador de dejectos humanos. Garatujo somente coisas da alma virtuosa,
plena de idoneidades e lidim-idades.
Mas qual a razão distinta e egrégia,
perguntar-me-á você, caríssimo leitor, faz tantas cinzas de cemitério não
garatujo peculiaridades? Na verdade, na verdade, há duas razões bem
específicas. A mais importante é a segunda, motivo dessas letras de guaxo, só
eu próprio para lê-las, verdadeiros garranchos. O editor só recebe minhas
contribuições devidamente digitadas. Amigos que me veem escrever de imediato
exclamam: "Quê letra desgraçada, Pau de Toda Obra! Você entende o que está
escrito?" Registraram-me no Cartório, quando nasci, com este nome, Pau de
Toda Obra. Nada de pseudônimo de escritor.
Escrevo em tablóide, publico minhas
cositas quinzenalmente. Sendo de conhecimento público, não se pode citar o nome
da pessoa beneficiada com os elogios dúbios, ambíguos. Nada a ver. Invento um
nome qualquer, sempre pleno de mangofas. Se a carapuça servir ao endereçado,
tanto melhor, se não, quanto pior. De algum modo, serve a todos, alguns
abaixando a cabeça, ombreando-se comigo nas ruas. Também tenho de re-criar as
situações, não posso ser direto e reto, como sou na vida quotidiana, descasco
os pepinos na lata, e com as cascas faço salada de vinagrete. A edição pode ser
bloqueada pela pessoa beneficiada, os exemplares serem re-colhidos das bancas
de revista, o editor ser processado. São normas que devo obedecer, caso queira
continuar a colaborar com o jornal.
Certa vez, publiquei uma crônica
sobremodo pimenta malagueta, limão capeta, endereçada a um açougueiro, Zé de Orelha
Erguida, cuja especialidade era alterar a balança de pesar carne, duzentos
gramas a menos, um quilo eram oitocentos gramas. Cuidei com todo esmero da
linguagem e estilo. Assinante do jornal. Muito óbvio: todos de nossa comunidade
sabem da ladroagem de Zé de Orelha Erguida, ninguém faz nada, nos "tempos
do onça" da Sunaba multa era cavalar. Saiu a edição, só se via risos de
orelha a orelha nos transeuntes, comentários até nos becos sem saída. Não houve
outro resultado. Tomei uma boa surra do filho do açougueiro, num crepúsculo
pálido, voltado para casa, após o expediente do banco. Fui proibido de escrever
sátiras. A conselho do editor, enveredei-me pela poesia romântica, claro as
mangofas nas entrelinhas. As moçoilas ficaram apaixonadas. Perdi as contas das
cantadas que recebi. Contratei um guarda-costas para se sentar comigo nas mesas
de botequim, tal era o assédio. Nos botequins que escrevo minhas cositas.
Acabei me casando com vedete de colunista social, a quem chamam de candangas,
Ádria de Oliveira Obra. Ciumenta sem medida. Nada posso dizer de seus ciúmes.
Diz ela que sou o único responsável, dei trela às candangas.
A razão de fazer cinzas de cemitério
que não garatujo os elogios ambíguos e dúbios está explicada, crendo que com
excelência, quem sabe não seja colocada na moldura e suspensa na parede do
Olimpo para os deus lerem todas as manhãs após as orgias e libidinagens da
madrugada.
Há algum tempo que observo
funcionário da Câmara Municipal me secando sempre que me encontra nalgum lugar
da cidade. Se caminhando em minha direção, encara-me sofismaticamente, depois
do ombro a ombro falta-lhe quebrar o pescoço de tanto olhar para trás. Se em
botequim, larga mão de abraçar e beijar a esposa, conversar com ela sobre as
trivialidades da vida, para me olhar, observar-me, secar-me de todo. Não porque
é coisa inusitada na cidade alguém no botequim sempre sozinho e garatujando
cositas para o jornal.
Suportei a coisa até o momento que
ultrapassou os limites da con-tingência. Não porque apanhei do filho do açougueiro
Zé de Orelha Erguida. Raquítico como ele, sopro o jogaria nas prefundas do
inferno, e quem só anda com a nata fina da sociedade não se dignaria a qualquer
atitude indevida. Não gosta de pobres, miseráveis, incultos e analfabetos, só
de "intelectuais de plantão". A verborréia corre solta na roda dos
amigos, após o expediente na Câmara Municipal, tomando o famoso Jack Daniel´s,
cerveja é coisa de pobre, pinga, coisa de mendigo.
Pois bem.
Havia saído de casa com todos os
coices engatilhados, após uma acirrada dissão com Ádria, minha esposa, devido a
uma cinza de cigarro que deixei cair no chão da área da cozinha, eu que ando
com o cigarro entre os dedos da mão esquerda, o cinzeiro na direita, não podeia
deixar isto acontecer.
- Morre, seu filhodaputa, de tanto
escrever e fumar. Não dá no couro mais, o cigarro e as letras são os lídimos
responsáveis.
Encontrei-me com o egregíssimo
funcionário da Câmara Municipal, tomando o seu whisky com a pavoa de todas as
eras, desde a da pedra lascada até hoje do diamante polido, sua esposa.
Engraçado isto: a esposa de um dos ex-prefeitos de nossa comunidade é chamada
de "bonequinha"; dizem que o ex-prefeito come feijão com angu porque
o salário e as propinas não dão para nada mais senão as roupas de grife da
mulher, roupas só importadas. A mulher do funcionário da Câmara é conhecida
como "pavoa", pelas mesmas razões das roupas de grife, só que
compradas em shopping da capital mineira.
Antes de me sentar, aproximei-me de
sua mesa. Depois de um gole de cerveja, não me dirijo a ninguém, não ad-mito
ser considerado "cachaceiro" que incomoda todos com asnices e
asnadas.
Aproximei-me.
- Digníssimo, excelentíssimo senhor
funcionário da Câmara Municipal, folor de esposa, boa noite! Sr. funcionário,
há cinzas de tempo venho observando que me seca em todos os lugares em que nos
encontramos. O senhor tem algum tesão por mim? Sonha uma noite de orgia em
hotel, motel comigo. Sei por seus olhos melosos e melífluos que o senhor gosta
de "meninos" também, e está aqui sua esposa que não me desmente, ela
aceita que o senhor se divirta com os "meninos", dentro do carro, no
Largo da Exposição, ao lado do cemitério antigo.
Não houve quem no botequim que não
presenciasse a cena com o semblante de espanto. O casal ficou mais branco que a
neblina. Nada disse.
Sentei-me a uma mesa do canto mais
recôndito do restaurante e fui escrever uma missiva a um amigo e escritor de
longas carnes e ossos, meu grande amigo Marco Antônio Santos Lete,professor de
Teoria do Conhecimento, na escola de Filosofia, nos tempos do beija a flor dos
sonhos, esperanças das grandes garatujas das letras.
Esqueceu-me o primeiro motivo de
haver cinzas de cemitério que não garatujo satiras. O escritor mesmo, dons e
talentos habitando-lhe as pós-fundas do espírito, deve sempre criar, re-criar,
o mesmo enterra todos os deuses, inclusive o "Velhinha de Barba
Branca".
Manoel Ferreira Neto
(30 de novembro de 2015)
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