MÃOS DE LUZES E PALAVRAS - Manoel Ferreira
Meu Deus, o que é isto – o dom de as mãos
manifestarem gratuitamente luzes e palavras? Que sabe devesse reformular a
pergunta, pois que o dom fora doado por Vós gratuitamente? E não gratuitamente
as mãos manifestarem luzes e palavras? Devemos então indagar: “O que é isto – o
dom?” As mãos não manifestam luzes e palavras. As mãos apenas reproduzem, vez
por outra produzem, os desejos e vontades, registram o que lhes digo. Assim,
torna-se mais inteligível o porquê deste desejo de entender e compreender o que
é isto – o dom?
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Se inicio, indagando a significação
dele, é que amaria compreender e entender, amaria saber esta faculdade de
exprimir as profundezas da alma, o que nelas perpassa de um ser ainda
desconhecido de mim, o que nelas há de essencial e imprescindível, dimensões
que fogem à capacidade racional e intelectual, não as conhecia antes de tomar a
pena – não seria melhor dizer que não havia consciência, com esta consciência
surgiu o conhecimento – em mãos, iniciado com o questionamento, ficando, às
vezes, horas a fio buscando conciliar as revelações espirituais com as
experiência cotidianas e emocionais, e, ao término, transcende o entendimento e
a compreensão, e tudo é simplesmente interpretação, pontos de vista,
necessitando, então, de traduzir as idéias, os sonhos, utopias, e são inúmeras
a visões da interioridade, creio que assim é que alcançam a humanidade,
mostrando-lhe novos caminhos e veredas à busca da felicidade e da identidade
com os homens.
Sim... A imagem é o dom de com as mãos
intuir esperanças, utopias, sonhos, quimeras e fantasias, por que não também
estas últimas, e são registrados em palavras, mais precisamente, indago pelo
dom de escrever, este que me fora gratuitamente doado por Deus. Estranho isto
de toda esta metodologia, todos estes caminhos tortuosos que venho trilhando,
com a intenção de uma compreensão, de um entendimento, este desejo de expressar
a dimensão em si. Não me preocupa tais procedimentos, e agora percebo a sua
presença. Teria algo a dizer sobre, teria algo a explicitar neste sentido? Não
creio. Sei que neste momento está a interessar-me muitíssimo saber a razão de
estar com desejo de ser o mais verdadeiro. Amigo íntimo dissera de meus
conhecimentos e consciência do poder das palavras, são ações cruas e nuas,
embora a expressão “cruas e nuas”, tenha um sentido íntimo cujas profundezas
não conheço, e pensei comigo ser um lugar-comum, uma vulgaridade, poderia ter
terminado com “cruas”, a presença do “nuas” empobrece.
Quem sabe haja indagado com a
esperança, a fé, de obter, ao longo do movimento de ambas as mãos, conciliado
com os sonhos de contemplação e conhecimento, respostas as mais verdadeiras e
sublimes, repousando o espírito e a alma, sentimentos e emoções, desta luta
árdua e contundente, com efeito, emocionante, de mergulho no inconsciente
espiritual, sentindo-me realizado.
Ilusão. Utopia. Sonho. Quem dera me
fosse possível revelar a vida, pois que isto significa a totalidade da
expressão, sendo que se mostra aos poucos, lentamente, ao longo das
experiências de busca e encontro. Contudo, em sendo ilusão, utopia, sonho, é
que se cola a possibilidade de mergulho, de busca de transformação da vida, de
concilia-la com os desejos de perfeição.
É verdade que, tendo-me conscientizado
de que não me é dada a capacidade de expressão total da vida, comecei de me desinteressar
em responder à indagação do que é isto o dom, o que é isto de escrever ser um
dom, as palavras serem as luzes do saber, do conhecimento. Sempre, alguém de
minhas realizações íntimas ter-se admirado muito por não ter conhecimento
profundo do significado de uma cidade ser Patrimônio Histórico da Humanidade, e
mesmo assim, por pedido de um amigo, escrevi um artigo sobre a preocupação de
preservação deste Patrimônio. Para esta pessoa das relações íntimas, seriam
necessárias muitas leituras e investigações, não significando iria ser capaz de
escrever algo, até poderia faze-lo, mas as chances seriam de não ser capaz.
Como pude: Respondi-lhe que o fiz através do dom da intuição. Explicitei que
comentei um trabalho musical apenas pelo título do CD de autoria de um outro
amigo, a quem, devo confessar, respeito muito e me admiro com a sua ternura.
Apenas pelo título. Este amigo concordou com os pontos de vista lançados no
artigo escrito. Silenciou-se. Completei a resposta, dizendo que Deus me deu o
dom gratuito da intuição, das palavras.
Estranho isto de me haver
desinteressado em responder ao questionamento de início, continuando a
desenvolver as idéias, os pensamentos, emoções, sentimentos, espírito. Quem
sabe possa esboçar nas entrelinhas uma imagem que se reflita interiormente,
abrindo as mãos de luzes e palavras para uma compreensão de quem sou eu, a
extensão e profundidade do espírito, espírito que ânsia por ser partícipe da
luz divina? Não o sei.
Sei apenas que continuo a movimentar as
mãos, oito dedos, não faz mal algum que a empresa tenha sido inútil – quem sabe
devesse dizer “desde a eternidade”, não se é possível esgotar a profundidade do
dom de escrever, pode-se dizer tudo que não é, mas o que “é” é sempre um
questionamento, uma investigação. Sabendo ser inútil a empresa de buscar a
revelação deste dom de escrever, não seria ridículo e imbecil ter iniciado,
estando a desenvolver a escrita, até com uma certa facilidade, e no íntimo
aquele sorriso irônico de estar mergulhando nele nas entrelinhas, são-me
fugazes e efêmeras, apesar de o sentido de ambas estas últimas palavras, e
qualquer tentativa de toma-lo em mãos é vã, o paladar de vazio na língua.
Aliás, faz muitíssimo bem o espírito continue sedento, faminto de verdades. Sei
apenas que me sinto feliz e realizado em permanecer buscando, desejando o
encontro do conhecimento deste dom das luzes e palavras, o encontro da
consciência de que, de algum modo, os homens possam intuir outros caminhos de
realização e felicidade.
Sim!... Até o instante presente estive
interessado em responder o dom de as mãos manifestarem gratuitamente luzes e
palavras, quando deveria haver indagado sobre como os homens podem se encontrar
nestas mãos, como se orientam através delas para a realização de suas
necessidades fundamentais e imprescindíveis. Se houvesse assim indagado, quem
sabe estivesse respondendo que os homens se orientam no amor que se manifesta
através das palavras, amor que aumenta quanto mais escrevo, amor que terei mais
do que antes, amor que se revela no espírito, o espírito que se revela através
dos sonhos da Verdade, das Utopias que fluem de um espírito sedento e faminto
de assistir aos homens se realizarem. Só é possível responder acerca do dom
divino e gratuito, o significado dele, se considerar que ele se fundamenta nos
homens, na humanidade, nos homens é que está a resposta deste dom.
Interessante é que, logo que me sentei
a esta mesa de barzinho, o garçom perguntou-me se desejava papéis para
escrever, sabendo ele que escrevo, enquanto bebo meu aperitivo, mas nenhum
garçom fizera esta pergunta antes, era eu quem pedia tais papéis. Desde toda a
eternidade, sempre apreciei isto de me sentar a uma mesa de bar, tomar um
aperitivo, escrever todo o tempo. Lembrou-me que alguém me apresentara uma
pessoa, esta já me conhecia, virou os olhos muitas vezes, dizendo que era eu
escritor. Olhei-o estupefacto. Não me lembrei de o ter visto nalgum bar, não me
lembrei de haver sido servido por ele. Os garçons é que sabem que sou escritor.
Quem sabe este garçom quem perguntou se desejava folhas para escrever não haja
intuído que estava realmente inspirado, iluminado pelo Espírito Santo, ele que
sempre perguntara, enquanto escrevo, o que é isto o dom das palavras, o que é
isto o dom de escrever, e não somente ele isto perquire, mas todos perquirem, e
havia chegado o momento de eu revelar o meu ponto de vista, a visão tenho disto
de escrever, de o dom haver-me sido doado por Deus gratuitamente. Quem sabe não haja intuído que estava inspirado,
iluminado pelo Espírito Santo, para esboçar uma resposta, ainda que simples,
acerca do homem que se entrega inteiro e absoluto às palavras, aos sonhos do
homem, da humanidade, de sua felicidade, de sua paz, de seu encontro com Deus,
nunca se esquecendo de que este encontro só se estabelece no limite da cruz e
do tempo.
Bem... Há quem não possa compreender e
entender isto de me tornar um personagem, quando deveria ser sujeito
consciente, ser consciência da vida, até mesmo me censurando por assim
solidificar a minha esquizofrenia. Mas como iria poder expressar-me, sonhar,
desejar o poder e a autonomia de encontrar-me com a humanidade, não fosse
assim, não fosse através das idéias, dos pensamentos, dos sonhos e utopias, que
a Literatura torna possíveis?!... Tornei-me personagem, sim, e isto é
incontestável e indubitável, mas, assim, posso seguir o rio sem margens, sem
pressa, indo em direção a todos os horizontes. Fiz de mim um personagem, uma
estratégia para esconder de mim as coisas feias, as coisas horríveis da vida.
Fora a minha escolha. Não ter sido mais conveniente tornar-me quem sou, quem
represento no mundo? De um modo ou de outro, a vida é um questionamento, uma
indagação, ainda bem que o seja, não encontraria nenhuma guarida neste mundo se
não necessitasse do questionamento, de lançar-me ao mistério da alma e do
espírito.
Não foi, não é por menos que, desde a
mais tenra infância, desejei a eternidade, a imortalidade. Realizei isto,
tornando-me um personagem. Aliás, o palhaço, no tablado, realiza com suas
ironias e cinismos, o desejo da humanidade de, com as palavras e luzes,
sofrimentos e dores, encontrar a Felicidade, a vocação de todos nós, os homens,
e só realizável em nível das artes e dos sonhos.
Uma oportunidade real e concreta de
mergulhar nesta ação de escrever, compreender e entender um pouco este dom que
me fora doado gratuitamente por Deus. Esta abertura das mãos de luzes e
palavras em sintonia e harmonia com a profundeza da alma humana, o lançar-me
abertamente aos sonhos e utopias percucientes de desejo de encontro e realização,
comovendo o ser humano em seu interior mais profundo.
Com efeito, estou a imaginar se
estivesse, ao invés de escrevendo, dizendo ao garçom que tantas vezes
perguntara sobre o dom das palavras, quem sabe não estivesse compreendo nem um
poucochinho as entrelinhas da conversa, e nas linhas mesmas parece estar
havendo ambigüidades, multiplicidade de idéias, contradições, e mesmo um estilo
um tanto quanto confuso!... Não só ele não está entendendo. Devo confessar que
também eu não esteja entendendo o que estou querendo dizer, o que desejo
expressar – a indagação fora apenas uma estratégia para não ficar olhando o
ambiente do barzinho, as prateleiras de bebidas, os fregueses, em silêncio
completo e absoluto, ressentindo estarem todos a conversar, jogar palavras ao
léu, numa relação de companheirismo, em barzinhos e botequins, mesmo em
restaurantes da elite, só se encontram companheiros, a amizade nunca fora
convidada a adentrar-se no recinto, vagueia pelas ruas a esmo.
Quem sabe estaria entendendo e compreendo
a partir de sua experiência de vida, esta é que é importante. Importante?! Este
termo fora em absoluto infeliz, pois como posso julgar se é importante ou
desimportante, em primeira instância porque nem mesmo eu consigo dizer o que
realmente intenciono, e em segunda porque não consigo expressar de modo simples
esta “experiência da vida” – sinto informar que o desejo muito, mas é-me quase
impossível; trata-se antes de um estilo do que propriamente de uma forma de
expressão. Assim o penso. Não sei bem dizer.
Creio ser, então, conveniente dizer que
não intencionava de modo algum responder a indagação, a pergunta sobre o dom de
escrever, mas, antes, criei uma estratégia para não ficar olhando as coisas ao
redor, enquanto bebo, sentir-me-ia incomodado com a solidão, a solidão me
entristece e angustia sobremodo. Tive esta experiência de estar no meio de
senhores em barzinho, bebendo e jogando palavras fora, mas deixei de o fazer,
estava a sentir-me incomodado o bastante para continuar, incomodado com a
hipocrisia e falsidade de alguns. Gastavam o tempo com os outros para não
assumirem a solidão de beber sozinhos. Também, sem dúvida, alguns péssimos
hábitos de palavrões, aquando havia senhoras no lugar. Não há qualquer
respeito. As mulheres estão acostumadas, não se importam mais com estes
comportamentos vis e imorais.
Engraçado!... Está lá a olhar-me, de
esguelha, lanço-lhe um olhar rápido, posso jurar que está pensando nisto de vir
a este barzinho, Itanguá, um mercadinho no Rio Grande, lugar até então
tranqüilo, ninguém incomoda com palavrões, discussões sem sentido e razão, o
proprietário é-me sobremodo gentil, pondo-me a escrever, se teve o curso médio, se está cursando, com
efeito, os professores de Literatura já lhe disse de alguns autores
alcoólatras, alguns escritores famosos escreveram muitas de suas obras em
barzinhos, botequins, tabernas... Não fujo eu à regra. Mas este garçom não sabe
das dificuldades e angústias deste ato de escrever, não é apenas o dom que
decide a questão, há a entrega absoluta, e esta é plena de percalços, de dores
e sofrimentos.
Devo sim dizer que não mais me incomoda
muito os sofrimentos do homem, é assim mesmo, incomoda-me o sentimento de que
só há pontos de vista, visões, idéias, desejava tanto transcender a isto, mas
há instantes que posso sentir a presença desta transcendência, forte e viva,
entregando-me às experiências de mergulho, de busca, de desejos e esperanças,
isto é que é interessante, esplêndido, maravilhoso, por instantes efêmeros e
efusivos sentir o que é estar realmente vivendo a experiência de um
conhecimento um pouco mais nítido, transparente. O amigo garçom está pensando
apenas no dom, não sabe os sofrimentos e dores que perpassam o íntimo. Se
houvesse alguém aqui trocando um dedo de prosa comigo, diria que há algo de um
preconceito, mas, em verdade, os homens não podem sentir o que é estar vivendo
tantas dores, tantas angústias, e também todas as alegrias, felicidades,
contentamento, satisfações...
Apesar de todas as questões
complicadas, complexas, incertezas e indefinições, amigo-garçom, é emocionante
a estrada das letras, das buscas compulsivas e esquisitas da eternidade, nada
mais interessa senão isto, e estas palavras devem sim admirar, encantar, e
neste encanto seguir o rio sem margens, sem pressa, inteirar-se dos sonhos e
das esperanças, o conhecimento, a contemplação. A vida, amigo-garçom, vibra de
êxtase, de repente, uma miragem do oásis de alegrias, felicidades, e também,
não sabe você, amigo-garçom, que isto o que faço, estar escrevendo, não o faço
para agora, há quem tenha de dizer para amanhã, e até isso é um resplendor
nesta carreira de haver, por estratégias e decisões, afastado-me das reuniões e
encontros de homens em barzinhos, um lugar em que me sinto inspirado para
mergulhar nas questões existenciais, emocionais, espirituais. Poderia ter sido
em salões de arrasta-pés, em clubes campestres, nos altos escalões da
dignidade. Encontraria inspiração lá.
Você, amigo-garçom, pode não
compreender e entender o que é isto o dom de mãos de luzes e palavras, mas
intui algo transcendente nesta carreira, já ouvira dizer, e com toda a pompa e
empáfia, que os escritores temos uma vida estranha e esquisita, ouve-se isto a
todo instante. É assim. Fazer o quê?! O dom é sempre acompanhado da diferença,
assim não fosse não seria dom.
Conto-lhe uma história bem
interessante. Vivera por três meses em Juiz de Fora. Alguém de minhas relações
vira-me escrevendo. Pediu uma folha de papel ao garçom. Ficara um tempo sem
limites só pensando o que iria escrever. Dissera-me, então: “Não é fácil
mesmo”. Concordei com ele. Mas do modo e estilo que dissera isto, replicou de
imediato: “Não pode ser difícil para você. Tem o dom!...” Não me interessei muito em lhe dizer que o
dom não responde inteiramente por nada, é a experiência que revela este dom, na
fronteira da cruz e do tempo. Há sim muitas dificuldades.
Quem sabe esteja aí imaginando
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