CÂNTICO DE ESPERANÇAS E UTOPIAS - Manoel Ferreira
Minha caríssima amiga,
Afra Monserrat
Como fiquei
alegre e saltitante em receber as suas missivas. Li-as com muito esmero e
carinho, procurando sentir cada palavra, procurando penetrar em cada sentimento
que lhe adveio ao estar escrevendo – Meu Deus!... Quantos sentimentos ávidos de
uma verdade? Quantos sentimentos vivos! Tão ávidos e vivos que me deixaram
suspenso no limiar da eternidade!... - procurando senti-la por inteiro,
conhecer esse espírito tão sereno, essa alma gentil e amorosa. Houve sim
momentos em que algumas lágrimas desceram-me as faces, emocionado que estive.
Não,
minha querida Afra, não é preciso agradecer-me, retribuir-me coisa alguma. Não
creio que seja motivo de agradecimento o fato de haver-lhe sugerido leituras de
obras de autores cristãos, imbuir-se de conhecimentos relativos à fé cristã,
que, certamente, iria ajudar-lhe a vencer as suas dúvidas a respeito da fé, os
seus medos da vida, do mundo, pois que vivemos numa época absurdamente difícil
de ser tolerada, quando todos os valores e virtudes estão sendo desconhecidos,
negligenciados em nome de prazeres exclusivamente materiais; quando a vida
humana está sendo desrespeitada, crimes, corrupções, desrespeitos aos nossos
direitos humanos.
Percebi
com clareza a sua sede e fome de contemplação, de encontrar-se verdadeiramente
no mundo, de se tornar outra mulher, de se entregar à busca de valores eternos,
de virtudes imortais. Você, no meu ponto de vista, precisava encontrar alguém
quem reconhecesse a sua sensibilidade, o que profundo lhe habita, o amor
latente que lhe habita a alma, o espírito, o desejo de o revelar ao mundo,
entregar-lhe aos homens. Precisava sentir-se segura em relação à amizade e à
entrega de alguém. Acontecesse isso, você se entregaria.Não é verdade?
Em
nossas conversas pelos bares da cidade, jantando, comendo alguma porção,
tomando um drinque, você se manifestava uma jovem com muitas dificuldades de se
expressar, dizer o que mesmo sentia, pensava, o que habitava sua alma, seus
sofrimentos, dores, essa solidão imensa que sente e não a sabe compreender. E,
agora, após ano e meio de nossas relações, lendo as obras sugeridas por mim,
procurando conhecer-se mais, livrar-se de suas algemas e correntes, já está se
abrindo, se posicionando diante de sua vida, sonhos, utopias. A sua linguagem e
estilo escorreitos, sua habilidade com a pena, sua vontade e desejo latentes de
mais e mais dizer de si própria, mostrar-se.
Isto,
querida Afra Monserrat, deixou-me realmente muito feliz por saber que pude e
posso ajudar-lhe, contribuir com a sua vida. Mas, olhe bem, é preciso que você
reconheça essas transformações em você, é você a portadora desses méritos, você
é a responsável por essas mudanças. Houve de minha parte a entrega de amizade,
reconhecimento, carinho, compreensão, mas houve a sua dis-ponibilidade sua de
se conhecer.
Aprecio
a passagem da Bíblia, relacionado a dar “pérolas aos porcos” – não se deve
fazê-lo. O que porcos vão fazer com pérolas? Presente inútil. Neste sentido,
presenteei as pérolas realmente a alguém que sabe o que fazer com elas.
Encontrará muitas utilidades para elas. Você é sensível, inteligente,
extremamente capaz, e, além disso, encontra-se dis-ponível, desejosa de
transformações em sua vida. Isso é em demasia importante.
Não
o fiz para receber de você agradecimento. Lembra-me bem uma coisa que um grande
amigo me disse certa vez: “é preciso dar com a direita sem deixar que a
esquerda veja”, isto é, é preciso dar sem esperar qualquer recompensa. Isto,
aliás, está na Bíblia. Deixar-me feliz e contente com essas pequenas
modificações, mudanças que se anunciam em você é já um agradecimento.
Quanto
a ir a Cobra D´Água, como nas suas missivas deixa bem clara a sua vontade de
nos encontrarmos para uma troca de dedos de prosa, já tem muito tempo que aí
não vou. Não foi por falta de oportunidade, estar com a vida ocupada cuidando
dos negócios. Nada disso. Não há qualquer justificativa nesse sentido para que
esteja demorando retornar a Cobra D´Água. Sou-lhe sincero. Prometo que mais
para o final do mês aí estarei para passarmos alguns dias juntos, colocarmos
nossos assuntos em dia. Sabe o quanto me sinto feliz com a sua presença.
Bem, lendo as suas missivas, lembrei-me de algo
que passo a mostrar-lhe agora. Desejo que reflita bem nessa história. Na minha
concepção, é uma das mais belas histórias que ouvi, e se pensamos com seriedade
nela, muito tem a ensinar-nos em todos os sentidos e dimensões de nossa vida.
Uma
antiga lenda nos ajuda a entender de forma simples a proposta da compreensão
cristã do sentido do viver e do morrer: “Era uma vez um monge. Sua vida, sem
grandes feitos, transcorria num cotidiano simples, mas feliz. Certo dia,
justamente quando ele se encontrava na cozinha, lavando os pratos, surge à sua
frente um anjo. Eles se olham com estranheza e cordialidade. E o anjo lhe diz:
O senhor enviou-me a ti para dizer-te que é chegada a tua hora de ir para a
eternidade. Surpreso, mas sereno, o monge lhe responde: Oh, eu agradeço ao
Senhor Deus por ter-se recordado de mim. Mas olha aí a montanha de pratos para
lavar. Eu não quero parecer ingrato, mas será que a eternidade não poderia
aguardar apenas um instante até que eu tenha terminado este serviço? O anjo o
olhou com um sorriso angelical e lhe disse: Bem, vou ver o que se pode fazer. E
se foi. Terminado seu trabalho, o monge aguardou até o anoitecer e nada. Dias
mais tarde, lá estava o monge no jardim do convento, quando lhe aparece outra
vez o anjo. Já conhecidos, eles se saúdam com alegria. Apontando com a enxada a
extensão do jardim e de seu trabalho, o monge lhe diz: dá uma olhada nas ervas
daninhas. arrancá-las todas vai custar-me ainda algumas horas. Se a eternidade
pudesse aguardar um pouco, ficaria muito agradecido. O anjo, mais uma vez,
sorriu e se foi. O monge limpou o jardim e organizou o celeiro e varreu os
caminhos e as horas se passaram e os dias se foram e nada. Meses mais tarde,
agora num hospital e, justamente quando ele estava para dar um doente ardendo
em febre uma colher de água, erguendo os olhos, o monge vê diante de si o anjo
da eternidade. Desta vez, eles nada dizem. Com o olhar apenas, o monge percorre
os incontáveis doentes ainda por ajudar e consolar. Em silêncio, o anjo se vai.
Aquela seria a pior hora para levar dessa vida aquele anjo de misericórdia.
Muitos anos aí se passaram, até que, numa noite, deitado no catre rude de sua
cela, o monge então se recorda do anjo que ele tanto fizera esperar. Alquebrado
e sem forças, ele reza: Senhor, manda-me agora o teu anjo, para que,
finalmente, eu possa deixar este mundo e ir para a tua eternidade. Nem bem
terminadas suas palavras, lá estava o anjo. Um sóbrio sorriso se desenha então
em sua envelhecida face e ele diz: Obrigado por teres vindo. Pensei que
tivesses te esquecido de mim, ou que estavas magoado porque te fiz tanto
esperar. Agora estou pronto. E te peço: leva-me contigo para a eternidade. Com
feições tão graves quanto ternas, o anjo lhe diz; Levar-te para a eternidade?
Onde pensas que tu estavas? Quando lavavas os pratos e carpias o jardim e
cuidava dos doentes, tu já estavas na eternidade. Apenas não o sabias. Mas
agora irás ver e, nessa sublime visão saberás: neste mundo apenas começa o que
será eternamente”.
O
amor, acima de tudo, antes de nada, não é o que se chama entregar-se,
confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união
com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime
para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo
para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se
lhe faz, uma escolha e um chamado para longe.
Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam
servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos (“escutar e
martelar dia e noite”). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de
comunhão não são para eles (que deverão durante longo tempo ainda juntar muito,
entesourar”; são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a
vida humana.
Por
limites, as águas apartam da morte olhos perspicazes, não perturbados pela
angústia. Muitas vezes. Muita vez quando a luz se apaga sobre a minha insônia,
pergunto-me – fazia-o mais assiduamente – com os ossos entre(dedos): de onde
vem esta indiferença? De onde me vem este mal-estar que não me permite estar em
algum lugar?De onde me vem essa inquietude do olhar as coisas que me circundam,
dos homens à volta? Deixa-me quieta a
perguntar. Quieta e confortável em presença de alguém? Costumava acordar no
meio do sono, respondendo a perguntas não me lembrava de havê-las feito – sabe
que, às vezes, digo algo e não sei o que digo, minutos após, - ao menos
articulado.
Sentir a vida correr por mim como fonte originária de um rio por
seu leito, e lá fora silêncio como um deus que dorme. Os rios são rios e as
montanhas são montanhas – meto-me para dentro, e fecho a janela. Os rios não
são rios e as montanhas não são montanhas – a voz contente balbucia o último
olhar amigo dado ao sossego das árvores, o último suspiro revelado ao final de
um cântico de esperanças e utopias. Os rios são rios e as montanhas são
montanhas – a mente não tem forma e tudo penetra, a água também não tem forma e
se adapta a qualquer espaço (por que não preencher os vazios de nossos
corações?). Com os olhos, vejo; com os ouvidos, ouço; com o nariz, sinto
odores; com a boca, argumento; com as mãos, seguro; com as pernas, caminho, com o coração sinto os desejos de
felicidade e amor.
A
luz da lua incidindo de entre as folhas e galhos de árvores vigia no coração
secreto da noite, do olhar aprisionado entre os troncos roliços, vê no gelo dos
instantes as pequenas choupanas como vermes luzentes nas escarpas das colinas.
Uma
água límpida, parada, tão perfeitamente plana que nenhuma ruga, nenhuma bolha
de ar, turva a superfície. Nenhuma fonte, nenhuma origem. Está aqui há
milênios, represada pelas rochas, e se estende num único lençol insensível e se
torna, na sua garganta de pedra, a própria pedra negra, imóvel, cativa do mundo
mineral.
Sinais
dos poderes obscuros em repouso nas profundezas, essas colorações elétricas
manifestam a vida latente e o temível poder desse elemento ainda adormecido. A
opacidade e consistência das águas límpidas fazem-nas como que matéria
desconhecida e carregada de fosforescências de que só afloram à superfície
fulgurações fugidias.
Onde
as gavetas se abrirem de luto a casa se confunde com a morte num espelho que se
turva. Em cada lembrança transporto pedras do riacho para o alto das paredes.
Tudo o que faz os bosques, os rios ou o ar tem lugar entre as paredes que crêem
fechar um quarto.
Água
jorra da fonte, caindo no solo, começando de seguir a sua jornada, por terra,
floresta, abrindo o seu destino contínuo em direção à sua identificação e
realização que é o mar, e daí continuando a sua meta em direção aos continentes
e ilhas. É preciso ir ao fundo de sua limpidez, sonhando, guiada por um desdém
das coisas velhas, diante do grande espetáculo dos pequenos sentimentos que
afloram dos abismos da alma, pequenos sentimentos no tempo, grande vazio da
eternidade.
Do fundo de meu canto,
enquanto abro braços para a continuidade do mergulho, durante as noites de
inverno e abandonada, o infinito encontra lugar em cada gota de água que segue
a jornada silenciosa.
Romualdo Lacerda
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