BORBOLETA PRETA - Manoel Ferreira
O ambiente era fechado. O ar parecia pesado e
misturado a cheiro de fumaça de cigarro comum, de palha, fumo preto, de bolor.
Um vozerio aumentava a tensão estranha que flutuava no local. Na parede, fotos,
recortes de jornais, revistas enfatizavam seus feitos, não havia quem não
lesse, assim que chegavam, antes mesmo de se sentarem e esperarem a vez de
serem atendidos. Eram consultas,
videntismo, magia, leituras de cartas, previsões. Em cidade do interior, mais
comum, as pessoas sempre recorrem a cartomantes, espíritas para uma leitura de
suas vidas, saberem como será o futuro delas. Os recortes só não faziam
referências às prisões e processos que rolavam contra Madame Berta. Houve
suspeitas de que também praticava abortos, rituais demoníacos no quintal de sua
casa. Nada ficou provado. Outros afirmavam que Madame Berta dava “bola” para a
polícia, e ela apreciava bastante, chegavam a estalar a língua de prazer e
satisfação. Para as pessoas ali, na sala
de espera, nada disso importava e, cada um tinha uma história a contar, ilustrando
as atividades dela. Outros iam mais longe, e afirmavam com prepotência que até
curas milagrosas ela já houvera feito.
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O efeito forte
de incenso, contaminando o ar não parecia incomodar ninguém, se não o tivesse,
duvidar-se-ia de ser casa de cartomante, vidente; é a primeira coisa que tem de
ter nestes lugares. Numa única porta e, que dava acesso a outra sala, havia uma
minúscula plaqueta de madeira: Madame Berta (o restante do nome estava completamente
apagado). Logo mais abaixo estava escrito: leitura de mãos e cartas.
Na esquina da
casa, a uns trinta metros, na entrada de um antigo casarão, era agora só
escombros, com uma grande área arborizada, um garoto de uns nove anos, calça
curta, encardida, sapato aos frangalhos, sem meia, raquítico, cabelos raspados,
um pequeno tufo na testa, orelhas pequenas, nariz adunco, olhinhos castanhos,
entregava às pessoas um folheto-propaganda de Madame Berta. E assim ela ficou
conhecida. Era grande a procura – mocinhas querendo saber de seus destinos com
as paixões, mulheres casadas querendo saber se os maridos tinham amantes, se
algum íntimo que se encontrava doente iria sarar, estudantes, se seriam
aprovados nos exames finais da escola... – e aquela sala jamais ficava vazia.
Todos esperavam com ansiedade, angústia, grande expectativa o momento de
enveredar pelas linhas misteriosas da mão, ou no misticismo das cartas.
Enquanto esperavam antecipavam previsões, liam revistas sem algumas páginas,
páginas rasgadas, ensebadas, jornais do tempo do onça, contavam casos os mais
estranhos, críveis ou não. Nesse vai-e-vem de conversas e casos, fofocas e
realidades, os olhares escapavam de quando em vez e iam fixar-se na porta que
após um curto espaço de tempo, maior que o dos médicos da previdência social,
se abria para o próximo. Mas, enquanto esperavam, cada um queria contar o que
vira com os próprios olhos ou sabia, ou ainda o que as próprias experiências
retiradas das visitas as cartomantes e quiromantes lhes davam. Para os céticos,
como eu, tudo era bobagem e exploração barata da crença e da boa fé popular e
acabavam enrolando o papel na mão sem ao menos o ler. Ali na sala de espera não
havia nenhuma dessas pessoas. Assim, quando a porta foi aberta para que
entrasse o seguinte, ouviu-se um reclame de impaciência. À soleira da porta
assomou a figura de Madame Berta.: os cabelos de cor avermelhada, os traços
grossos, estatura mediana, túnica lilás e larga, que a tornava mais gorda e
estranha. Quanto mais a cartomante ou quiromante for estranha, esquisita, mais
a crendice popular é maior, estranheza é sinal de confiabilidade e de
conhecimentos profundos.
- O próximo –
disse Madame Berta com uma voz rouca e possante, mostrando uns dentes
amarelados e descuidados.
Levantaram-se ao
mesmo tempo um senhor aparentando uns cinqüenta anos e uma mulher visivelmente
mais jovem, vinte e poucos anos.
- Quem é o
primeiro? – impacientou-se.
- Estamos
juntos! – respondeu o homem adiantando-se um passo. Via-se com nitidez a sua ansiedade,
dir-se-ia até estar com a mãe na forca.
Imediatamente
os dois entraram, seguidos por todos os olhares que não se desgrudaram deles um
só instante. Seriam marido e mulher? A diferença de idade era muito grande, as
jovens sempre preferem os homens maduros e experientes, sentem-se mais seguras
e confiantes. Seriam pai e filha? Nenhum traço acusava parentesco. Amantes? A
porta fechou-se atrás. As perguntas ficaram sem respostas.
A quiromante
sentou-se com certo esforço. Assuou o nariz num lenço sobre um baú encostado à
parede com a pintura descascada. Tomou as mãos da jovem mulher.
- Deixe-me
ver... Deixe-me ver isso... – os olhos giravam livres nas órbitas – Ah! Essas
linhas... Espere... Mas o que é isso? – falava dando um tom de tragicidade nas
palavras. Quanto mais tom de tragicidade nas palavras mais confiáveis se
tornam, embora o medo logo se revela no rosto, o coração bate, a alma fica
opressa.
Tornou a
levantar aquela mão à altura de uma luz tênue, os olhos diminuíram-se, como que
assim visse melhor, mergulhasse mais nos mistérios e enigmas da vida da jovem
mulher, que descia do teto quase sobre a mesa. Madame Berta arregalava bem os
olhos azuis e enormes, aumentando o clima de mistério e misticismo da cena. E
todo o ambiente interior contribuía. A pouca luz, o ar pesado e a figura mais
do que estranha, esquisita de Madame Berta.
“Vejamos esta
linha aqui... Há uma cruz... Não. A senhora vai carregar uma pesada cruz em sua
vida – a jovem mulher olhou para o homem, seria com ele a cruz pesada, alguma
doença incurável, alguma amante? – E ficará viúva também – o homem tossiu –
indicio de tuberculose que se revelaria mesmo em dois, três meses – Mas, o que
é isso?” Os grandes olhos arregalaram-se novamente, parecendo que iam saltar
das órbitas, enquanto ela falava. O velho secou o suor impaciente. A jovem
segurava a respiração encolhida. Madame Berta retirou o pano que cobria uma
bola de cristal média.
- Vejo uma
borboleta preta... É. Isso é bom sinal. A senhora terá uma vida longa. Mas, má
sorte e fatalidade... - carregou mais a
voz. Depois tornou a abrir bem os olhos e a boca exageradamente pintada de um
vermelho-cheguei. Para representar Madame Berta era preciso uma atriz muito
experiente, tais eram seus gestos; caso contrário, a cena seria de um enorme
ridículo – Em seguida, franziu a testa.
- Vejo aqui
ainda duas luzes; uma fortíssima e a outra já quase se extinguindo por
completo. Isso simboliza a vida e a morte... Mas, espere, eu vou acender uma
vela...” – o velho tinha a cabeça abaixada, o pé direito parecia que seguia
ritmo de uma música imaginária que surgiu em sua cabeça, apertava as mãos que
estavam sobre o colo. Estava nervoso. A quiromante haver dito que Felícia iria
ficar viúva o deixou mesmo entristecido, angustiado. Não podia nem imaginar sua
amada esposa nos braços de outro homem, passaria a eternidade remexendo-se na
sepultura com os beijos, abraços, cenas intimas dela com outro. Era muito
ciumento.
De repente,
Madame Berta tirou um cigarro, dando várias baforadas de fumaça na cara da
jovem, misturando ainda mais o fedor de fumo com o ar abafado. Contraiu a testa
novamente.
-... Mas não
preocupe, minha filha. Agora vejo melhor; esta linha aqui mostra que você será
bastante feliz e vai ter uma vida longa...
Tomou novamente
a mão da jovem, agora menos tensa.
-... você
conhecerá o amor muito cedo, e se apaixonará por um homem mais velho. E há uma
mulher entre os dois...” Procurou acentuar bem o que estava dizendo. E mostrou
novamente os dentes careados.
- ... e esse
passo vai mudar toda sua vida, minha filha. Todos serão contra... Mas não
desista – riu agora, mostrando os dentes encardidos e enormes. Os olhos
pareciam agora caberem nas órbitas. A expressão não estava mais carregada. Deu
mais umas baforadas de fumaça no ar, esmagando a ponta do cigarro num imenso
cinzeiro vermelho que já estava abarrotado delas. Levanta-se. Sua sombra enorme contra a luz
invade a parede.
- Agora o
cavalheiro? – impressiona, abrindo outra vez os grandes olhos azuis.
- Deixe-me ver
estas linhas.
- Não. Muito
obrigado. Eu não pretendo – disse quase gaguejando, estava nervoso.
-... acho que o
senhor devia – insistiu ela.
- Não mesmo...
- O senhor é
que sabe.
- Sei. Não
quero. Não pretendo.
O homem tira um
lenço branco de linho e enxuga o suor do rosto. Os dois se levantam em seguida.
O velho tira uma carteira grande do bolso, teve dificuldades em fazê-lo, a
calça apertada, o bolso pequeno para o tamanho da carteira, pega duas notas de
cinco reais e paga. Dirigem-se para a saída. Madame Berta se adianta e abre a
porta. Na frente, a sala de espera. O converseiro pára subitamente. Olham para
o homem, estava branco, suando muito. A jovem mulher, sobremodo preocupada, um
quê de “devo acreditar que meu coroa vai morrer? Mas e isto de que vou conhecer
o meu primeiro amor? Ele é que foi o meu primeiro amor, e será para sempre o
meu grande amor... Terá ele outra mulher?” Na sala de espera, uma mulher que
chegara apenas a alguns minutos atrás e, que o tempo todo mostrara-se inquieta
e nervosa, levanta-se. Usava óculos escuros e um casaco comprido escuro. O
velho foi o primeiro a vê-la. Estacou. Ia abrir a boca para dizer alguma coisa,
mas não chegou a emitir nenhum som. O estampido de tiros abafou tudo. Confusão.
No dia
seguinte, a Folha de Notícias explorava o caso em letras garrafais, a foto da
manchete mostrava o casal estirado no chão:
“Casal é assassinado
ao sair da cartomante, na rua Chile”.
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