(ENSAIO) - GERMINAÇÃO DAS ORIGENS – UMA LEITURA DE VERGÍLIO FERREIRA, ESCRITOR EXISTENCIALISTA PORTUGUÊS - Manoel Ferreira
Vejamos, em primeira ins-tância, o que
Vergílio Ferreira escreveu em Espaço do Invisível, ao abordar o tema de “o
homem à sua face”, que está diretamente ligado com o tema de Aparição, tema
que, como demonstro, só se configura completamente em Estrela Polar, e logo a
partir do título do romance. Façamos então uma análise do que entre “o homem à
sua face” e o título de Estrela Polar pode ser confrontado ou relacionado.
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Espaço do Invisível: “Mas o primeiro
ato na recuperação de nós próprios deve ser o abordar a íntima e original
irrupção de nós mesmos, se não o coincidirmos instantâneamente com esse puro
aparecer da luz que somos. Essa é a distância máxima da vida à morte, esse o
meio de se equacionarem os dados-base da reconquista para o homem de um lugar
no Universo”.
Estrela Polar: “Chamo-lhe apenas
‘Estrela Polar’, porque sou mais corajoso ou o desejo parecer. Luz breve, que
existas, onde? Fugidio indício que me anuncie o meu lugar na vida...”
Como se pode observar, é
simples a relação dos trechos de Espaço do
Invísivel e Estrela Polar, um
ensaístico, outro ficcional. Entre “o homem à sua face”, confrontando-se no
puro aparecer da luz que o é, marcando uma distância onde se equacionam os
dados do seu lugar no Universo, e a posição desse homem marcando numa estrela
um ponto de referência que lhe anuncie o seu lugar na vida, o que vale dizer no
mesmo Universo, existem laços temáticos coerentes. Alberto e Adalberto só se
sentem existindo como pontos de referência a eles exteriores, com os quais se
possa conferir e avaliar. Por isso a sua relação com os outros é uma função
estruturadora da narrativa; as pessoas com que se confrontam são significantes
narrativos, na medida em que da reciprocidade dos gestos e das palavras se
retiram os significados dos romances.
A continuidade existente
entre determinados romances de Vergílio Ferreira é particularmente perceptível,
principalmente em nível temático, entre Aparição
e Estrela Polar. A seqüência, aliás, já se
prenuncia em Aparição na velada sugestão do
título do romance seguinte, implícito num diálogo travado entre Alberto e
Sofia, a céu aberto, numa noite estrelada, depois recordado pelo protagonista à
distância dos anos:
“Deitamo-nos numa rocha, olhando os
astros. Eu falava das estrelas, das gigantes vermelhas, das anãs brancas, das
novae, da medição das distâncias, das nebulosas, da nossa galáxia, cuja distância
máxima, de extremo a extremo, é de cem mil anos-luz, da Andrômeda, a mais
próxima, a um milhão de anos-luz, dos montões de galáxias, algumas à distância
de quinhentos milhões de anos-luz, das grandezas relativas, da E do Cocheiro,
que é maior do que a órbita de Saturno, dizia nomes de um sabor terrível para
mim, Arcturus, Capela, Aldebaran, Rigel, Betelgeuse, Altair, falava do aspecto
da Ursa daqui a cem mil anos, contava de textos indianos em que se falava de
uma certa polar, o que só poderia Ter acontecido há x milhares de anos, contava
do movimento de precessão”... (...O e que há 120 séculos a nossa polar não era
a estrelinha que sabemos mas a Veja; e que daqui a outros 120 séculos sê-lo-ia
Veja outra vez”.
Idêntico procedimento em
outros romances que anunciam os títuos do livros vindouros afasta a hipótese de
uma casualidade. Quanto ao tema de Estrela
Polar ou a sua problemática fundamental, o próprio Vergílio Ferreira,
também numa dimensão ensaística, tal como o fizera em relação a Aparição a explica em Invocação ao meu Corpo:
“ Porque um “tu” é um “eu” que estamos
vendo em alguém, um “eu” fugitivo, inapreensível e todavia tão presente que nos
perturba de inquietação. (...) No contraste radical entre um corpo morto e a
necessidade de que alguém o estivesse vivendo é que se aflora a misteriosa
entidade do “eu” que vive no “tu”, a estranha realidade viva que no dia-a-dia
se não vê quando se vê apenas o “tu” a viver e não o “eu” desse “tu” que
através dele o está vivendo, o está sendo, presente, inquietante, necessário.
Contei em Estrela Polar a experiência desse “tu” – Valerá a pena recontá-la?
Imagina que te encontras com alguém que já não vias há muito. Recordas com ele
um passado comum. Todos os elementos de um acerto mútuo estão aí, desde os fatos que ambos recordais até a face desse alguém,
aos seus gestos, à sua voz. Percorrestes pela memória mil acontecimentos
comuns, recuperaste-vos totalmente e mutuamente nesse encontro. Mas eis que ao
despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu
irmão gêmeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é
fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era
outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a
face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as idéias, os sentimentos, as recordações, o todo integral
da sua vida e ao que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás
em hipóteses absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia
que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verficarás que
nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te
indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa e
aquilo que ela nos é, se uma pessoa e aquilo que a manifesta, se aquilo que nos
define e aquilo que somos e esse alguém que encontramos em nada difere, em
hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as
relações com ele se perturbassem. Mas elas perturbam-se, porque esse alguém não
é o outro. Em quê, porém, não é o outro? E eis que se levanta agora flagrante
essa coisa obscura que determina o “tu de alguém. Não é nada. E é tudo. Porque
toda a sua pessoa está naquilo que a diz – e no entanto não está. Toda a sua
pessoa se revela no que vem à superfície ou aí se anuncia, e no entanto alguma
coisa ficou ainda atrás, indizível e inacessível, fugidia e flagrante – início
puro e categórico, intocável e nula realidade, e no entanto fulgurante e
categórica realidade”.
A
descoberta do outro é, pois, fundamental na vida humana. Tornar-se como que parte integrante do outro
e fazer dele uma parte integrante de si. Depois de longa luta, com armas que
não são materiais nem de destruição, poderá dizer que este outro é a
"metade de sua alma".
A
inspiração "eidética" e "erótica" da metafísica impede o pensamento de toda a
superação até ao Outro. A transcendência onto-teológica que o realiza não é
senão a absolutização do Mesmo. O modelo secreto que anima a reflexão é o do
"subjectum" e do
"objectum". O objeto representado é uma objetivação do
"subjectum": o homem concebido como sujeito autônomo transfere para o
objeto os seus próprios caracteres e valoriza-o em função das suas exigências.
Inversamente, o homem-sujeito é interpretado segundo o modelo subsistente. O
pensamento, fechado no círculo representativo do sujeito e do objeto, não pode
sair de si-próprio: está condenado a refletir o Mesmo sem nunca poder chegar ao
Outro. Oscilando entre o sujeito e o objeto, a reflexão não encontra, por todo
o lado, senão a sombra trazida por si-própria. Esgota-se a analisar as suas
próprias condições de possibilidade, a refletir-se sem fim, a menos que consiga
realizar a adequação perfeita entre o representado objetivo e a representação
subjetiva.
Assim hipoteticamente
colocado o tema de Estrela Polar, a
situação humana nele representada, embora dotada de uma lógica inegável
apresenta-se raiada de uma atmosfera de absurda irrealidade algo semelhante ao
que de insólito e brumoso possui o universo romanesco de um Kafka.
Esse absurdo, essa
irrealidade, revelam-se muito mais francamente quando se analisa a experiência
vivenciada dessa colocação hipotética, que é, afinal, a própria situação
nuclear de Estrela Polar, cuja efabulação se pode descrever resumidamente?
Adalberto apaixona-se por Aida, que tem uma irmã gêmea (?) chamada Alda, extraordinariamente parecida
com ela. A tal ponto vai a semelhança que ele não consegue distinguir uma da
outra, estabelecendo-se certa confusão, que o leva, algumas vezes, a trocar
Aida por Alda e vice-versa. A essa confusão segue-se uma espécie de jogo
tacitamente aceito entre os três que permite a Adalberto relacionar-se com as
duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber em cada vez com qual delas está e que por
isso mesmo passam a ser denominadas no romance de Aida-Alda como se as duas se
fundissem numa só pessoa. Entretanto, de
forma lenta, muito longinquamente algo começa a se definir neste relacionamento
de Adalberto com as duas irmãs e a
paixão ou o interesse do protagonista se
desloca de Aida para Alda, embora ele continue sem saber distinguir uma da
outra. Certo dia, quando passeavam de barco numa temporada de praia, as duas
sofrem um naufrágio e Alda morre afogada. Adalberto, porém, mais uma vez as
confude e acredita que Alda era a sobrevivente. Aida deixa-o permanecer no
equívoco e os dois casam-se. Mais tarde, o engano desfaz-se, Aida revela a sua
verdadeira identidade e Adalberto acaba por matá-la, porque apesar da
extraordinária semelhança que em todos os níveis existia entre ambas, Aida e
Alda não eram a mesma pessoa e Aida era exatamente alguém que Adalberto há
muito aborrecera e que se lhe gastara.
A direção do pensamento
implícita em Estrela Polar praticamente já
se revelou, embora de forma excessivamente resumida, através da rápida
descrição da fábula do romance e no que de continuidade ele possui em relação a
Aparição. Entretanto, há interesse ainda em
acompanhar alguns lances da trajetória existencial de Adalberto. Ainda no
início do romance, exatamente ao terceiro capítulo, ele diz:
“A minha vida entendo-a na iluminação
em que me sinto, me estou vivendo, me sou. E é possível por isso que
a todo o meu passado eu o esteja coordenando sem saber, eu o esteja reiventando
sem saber, como se ele fosse inimaginável fora de como o estou vivendo. E a que
propósito o afirmo, agora, aqui – não aqui, lá?
Se bem que a perspectiva
literária não ofereça ainda um horizonte onde possamos distinguir as
conseqüências da obra de Vergílio Ferreira nas letras portuguesas atuais, duas
questões devem, no entanto, ser colocadas neste estudo. Qual a influência de
Vergílio Ferreira nos seus contemporâneos? Criou ele, como romancista,
discípulos que tivesse aproveitado a lição do “ciclo existencial”? A resposta
parece ser apenas uma: sem dúvida que sim.
É sempre ingrato apontar
influências. Acontece muitas vezes que os autores ‘influenciados” não conheciam
as obras que os “influenciaram”. Há alguns casos destes na literatura
portuguesa, a começar por Eça de Queiroz. Os autores negam a influência,
recusam-na com sinceridade, porque muitas vezes nem deram por ela. É isso que
permitiu a Vergílio Ferreira dizer que “acasos de biografia, de leituras, de
encontros e decerto de tendências, acabaram por cristalizar em mim os temas que
mais importam”. Eis, portanto, o que acontece com os escritores de uma ou duas
gerações consecutivas. Por essa razão podemos detectar a influência do autor de
Mudança em alguns dos mais destacados representantes da ficção portuguesa
contemporânea. Um Infinito Silêncio (1970),
de Antonio Rebordão Navarro, por exemplo, acusa a leitura da experiência de
Alberto Soares, até por certa semelhança das situações. Assim como a escrita
também parece confirmá-lo. A leitura do romance de Rebordão Navarro leva-nos a
evocar o espaço de Aparição: em Viamonte, o
personagem-narrador executa igualmente o milagre da visitação de si a si
próprio e, simultaneamente, o exercício memoralista de Estrela Polar.
“... um dia, recordarei Viamonte sem
exaltação, sem repugnância, sem saudade lerei talvez estes apontamentos sem me
aperceber de que esta primeira pessoa do singular fui eu num dado tempo, numa
vila a nordeste que, aos poucos, se despovoava, o som perderá o seu significado
ou ganhará um outro, todos os sons evoluirão assim, significarão diferentemente
palavras que são nomes de pessoas: Miguel João, Tomàzinho, Olímpia,
perguntar-me-ei se existem, se existiram, se existirão ali ou noutro qualquer
lugar, perguntarei se existe Viamonte com a sua igreja, o pelourinho, o
tribunal, as ruas enlameadas ou poeirentas, os cafés, a estação dos Correios, o
Hospital, o casarão amarelo dos Bombeiros Voluntários”.
Quem, ao ler este fim de
romance, não evocará as linhas finais de Estrela
Polar, com a memória de Penalva, de Ainda e Alda que aí habitavam ou
habitam? E quem não evocará também o solitário professor que abandonou Évora,
marcado para sempre pela ‘anunciação da evidência’?
Mario Sacramento coloca,
portanto, Vergílio Ferreira entre os fatores que ocasionaram a evolução
literária de Fernando Namora, levando depois o problema para o terreno
meramente histórico, quando pretende traçar as delimitações do Neo-realismo,
dividindo-o em duas fases, colocando o que ele chama de segundo Neo-Realismo a
partir de 1950, historicamente condicionado a um sentimento de angústia ou de
tensão universal originado pela chamada “guerra fria”, que instaurou sobre o
mundo a eminente ameaça de um conflito nuclear.
Vergílio Ferreira, como se
poderia ver depois pela perspectiva de distanciamento cronológico e pela
própria seqüência da obra do romancista,
não representaria apenas uma mudança de enfoque neo-realista ou uma abertura
para o aproveitamento de novos temas ou o ensaio de novas técnicas romanescas.
Na realidade, o romance, apesar dos elementos que ainda explorava e que eram
próprios da ficção social, implicava uma mudança bem mais radical: significava
a ruptura do escritor com um movimento e
uma geração literária, era o início de um caminho que Vergílio Ferreira
percorreria solitariamente. Mas essa ruptura iniciada pelo escritor de maneira
lenta e paulatina lançou certa ambigüidade no âmago de Mudança, o seu
romance-limite, ambigüidade que não permitiu à crítica da época, descobrir, de imediato,
as verdadeiras intenções do romancista e o integral significado do seu livro. É
comentando este aspecto da obra que Eduardo Lourenço afirma:
“Por isso se pode dizer que Vergílio
Ferreira não escreveu nunca melhor romance neo-realista do que “Mudança” – e os
críticos neo-realistas assim o entenderam – e ao mesmo tempo que nas suas
páginas agoniza já a forma habitual desse neo-realismo. Todavia, esta leitura
que torna “Mudança” não só o mais ambíguo dos romances do autor, como o romance
da ambigüidade nascente que será, em seguida e em toda a plenitude, a criação
específica e a orignalidade indiscutível de Vergílio Ferreira, é o futuro só
que a instaurará fazendo pender a balança naquele sentido que em “Mudança” é
apenas potencial”.
Diz-nos
Vergílio Ferreira, em o Mito e a sua Mitificação:
“Mas entre o gesto e a obra, a unidade quebrou-se –
restabeleceu-se. Sabemos agora que as linhas dessa obra são a condenação do
nosso gesto. Sabemos agora que as linhas da esperança que alienamos, do medo
que desce sobre nós, passam no exato limite em que passou a nossa mão. Sabemos
que para lá de nós estamos nós ainda. E porque o sabemos, o mito se nos
desterrou para o ídolo que recusamos. Da obra que modelamos e era mais do que
nós, sabemos que é apenas o mais que somos”.
Entre estes dois polos, o
do “realismo” e o do Mito, inscreve-se “Mudança”.
“Mudança” é em si próprio
um romance limite na medida em que representa uma síntese não só da evolução da
obra ficcional de Vergílio Ferreira, mas do próprio gênero romântico, sendo
isto possível de verificar tanto em nível técnico-temático quanto no plano das
funções das personagens. Se, por um lado, a problemática social – um mundo em
mudança – satisfaz à pressão epocal, por outro, o desajuste dos dois
protagonistas estruturadores da ação – indica temperatura no do termômetro das
reações humanas, temperatura que seria, mais tarde, também uma conseqüência do
tempo histórico.
O problema da modificação
da personagem dentro das inovações da estética romanesca faria lembrar ainda
Dostoiévski, porque é com ele que essa metamorfose se inicia, com as suas
personagens, que, mais do que a fotografias, se assemelham a retratos
expressionistas em que a indefinição dos contornos e a fragilidade da luz quase
absorvida pela sombra, sugerem – e com muita eloqüência e significação – muito
mais do que dizem. Foi certamente isso ou algo parecido que Bakhtin encontrou
na sua leitura crítica do romancista russo, o que o levou a dizer que o herói
interessa a Dostoiévski, não enquanto fenômeno na realidade, possuindo traços
caracterológicos e sociológicos nitidamente definidos, nem enquanto imagem
determinada, composta de elementos objetivos com significação única, e sim,
como ponto de vista particular sobre o mundo e sobre ele próprio, como a posição
do homem que busca a sua razão de ser e o valor da realidade circundante e da
sua própria pessoa. É evidente que esta
é uma posição existencial do herói
romanesco em que está implícita a própria concepção fenomênica do mundo, os
próprios questionamentos interiores do romancista.
A nova concepção do mundo,
comum a Vergílio Ferreira e ao protagonista de “Mudança”, não é, finalmente,
mais do que o despertar para uma problemática muito mais séria, muito mais
profunda, do que a do jogo de interesses do Ter ou não Ter e que se refere à
própria descoberta ou conscientização do ser no mundo, à circunstância da
passagem do homem por um universo de contingências.
Estudando a evolução do
romance num painel analítico que parte de Flaubert e dos herdeiros do seu realismo
e a que comparecem, entre outros, Dostoiévski, Proust, Virgínia Woolf, André
Gide e James Joyce, Erich Auerbach observa que na transição do romance realista
para as manifestações contemporâneas de tal gênero literário, o escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase
que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência
das personagens do romance. Na medida das transformações que lhe são impostas
pelas novas experiências literárias, a narrativa de ficção vai-se transportando
do plano objetivo para o nível da consciência, verificando-se a diluição da
ação romanesca e a quebra cronológica da matéria narrada. O tempo adquire uma
nova dimensão de importância, passando a ser considerado e utilizado como
valioso elemento ficcional, e adquirindo, além da sua concepção meramente
física, um grau de subjetividade que o vincula à problemática existencial
largamente tratada pelo romance moderno.
Toda a nossa vida, desde o
primeiro despertar de nossa consciência, é qualquer coisa como este discurso
indefinidamente prolongado. Sua duração é substancial, indivisível enquanto
duração pura. A análise
psicológica mostra-nos na memória planos de consciência sucessivos, desde o
“plano do sonho”, o mais distendido de todos, no qual se esparrama, como sobre
a base de uma pirâmide, todo o passado da pessoa, até o ponto, comparável ao
topo, em que a memória não é mais do que a percepção do atual com as ações nascentes que a prolongam.
No romance “Mudança”, esta
‘descoberta’ é vista através do
amadurecimento da consciência de Carlos Bruno, consciência que, paulatinamente,
cresce de tal modo dentro das dimensões da obra, que praticamente, a partir de
certa altura, passa a ocupar todo o espaço do romance. O despertar da
consciência das personagens para as questões da sua própria existência e seu
relacionamento com o mundo.
Para o senso comum, o
objeto existe para um espírito, como o queria Berkeley... Mas, por outro lado,
surpreenderíamos da mesma maneira este interlocutor dizendo-lhe que o objeto é
totalmente diferente do que ele percebe... Logo, para o senso comum, o objeto
existe em si mesmo e, por outro lado, o
objeto é, nele mesmo, pitoresco como o percebemos: é uma imagem, mas uma imagem
que existe em si. Como uma doutrina que se punha assim no ponto de vista do
senso comum pode parecer tão estranha? Explica-se isso facilmente quando
seguimos o desenvolvimento da filosofia moderna e quando vemos como ela se
orientou desde o início para o idealismo, cedendo a um impulso que era o mesmo
da ciência nascida de pouco. O realismo se colocou da mesma maneira; ele se
definiu por oposição ao idealismo utilizando os mesmos termos que este; de modo que se criaram entre os
filósofos certos hábitos de espírito em virtude dos quais o “objetivo” e o
“subjetivo” eram divididos quase da mesma maneira para todos, qualquer que
fosse a relação estabelecida entre os dois termos e a escola filosófica a que
se estivesse ligado.
Uma literatura classista,
denunciante, reivindicatória e recortada sobre uma estética realista, surgida
entre os anos 20 e 40, do século XX, com as resistências que se organizam
contra os regimes de força instaurados em diversas partes do mundo, fatalmente
adotaria uma perspectiva marxista, tanto no plano político quanto no artístico.
No ensaio O Estatuto Ambíguo do “Neo-Realismo” Português, Eduardo Prado Coelho,
para demonstrar a convergência do Neo-Realismo para um posicionamento marxista,
utiliza, do Livro III de O Capital, de Marx, os conceitos de reino de necessidade e de reino de liberdade,
colocando assim o seu pensamento:
‘Para uma teorização realista, toda a arte se situa no limite
oscilante entre o reino da necessidade (da escassez, da privação, da
incompletude, da subordinação dos meios ao fim)
e ao reino da liberdade ( da plenitude, da lucidez, da harmonia, da
reconciliação, da soberania dos meios tornados fins multiplicando-se num jogo
infinito). Enquanto no reino da necessidade o homem se transforma em
instrumento dos outros ou de si mesmo, alienando-se em nome de exigências de
rendimento e de produtividade, no reino da liberdade, o homem inventa a face
solar, autonomiza-se na sua dimensão mais profunda, abrindo-se ao universo do
jogo, do consumo inútil e do prazer”.
A transposição dos
conceitos marxistas para o campo do literário feita por Eduardo Prado Coelho
remete-nos às idéias de Northrop Frye, que, em O Caminho Crítico, lança mão de
conceitos idênticos: o de mito de interesse e o de mito de liberdade, aos quais
praticamente condiciona ou reduz todo o relacionamento da literatura com o
contexto social. Mas continuando o estudo da problemática neo-realista, no
esforço de situar com clareza o que na realidade representa tal movimento, vale
citar ainda o ensaio de Eduardo Prado Coelho:
“O ‘neo-realismo’ português foi, em primeiro lugar, uma arte de
combate, intimamente ligada ao progresso duma classe: o proletariado. Os seus
objetivos primeiros eram muito simples: contribuir de qualquer modo para a
aceleração de todo o processo histórico que deveria conduzir à vitória do
proletariado. A arte deveria ser denúnica, desmistificação, exaltação. O
‘neo-realismo’ era um súbito alargamento de realidade ( a todas as zonas e
temas que a idelogia das classes dominantes censurava), uma adesão ao nosso
humanismo (designação quase sempre utilizada para dizer “marxismo”) e uma
expressão de um novo grupo social: o operariado”.
Do ponto de vista do
conhecimento, a fissura entre objeto/sujeito – assim preferimos identificar,
pois que a colocação de “e” vem mostrar uma separação. Jean-Claude Brisville,
crítico e biógrafo de Albert Camus, entrevistando-o em 1959 fez-lhe a seguinte
pergunta: “Você escreveu um dia: “O segredo do
meu universo: imaginar Deus sem a imortalidade da alma’. Pode precisar o seu
pensamento?” Albert Camus respondeu: “Posso.
Tenho o sentido do sagrado e não creio na vida futura. É tudo” Portanto,
esta relação objeto/sujeito está sob visão de absurdo, uma contradição estúpida
e mesquinha, do ponto de vista de alguns ensaístas acerca do pensamento de
Camus, mas que não deixa de ser uma verdade. É
imaginar o objeto sem a imortalidade da razão.
O sentido, expressão do
logos verdadeiro, é aquele que traduz a verdade do ser em verdade
para-o-sujeito, abrindo-o assim à universalidade do bem. Portanto, todo
enunciado verdadeiro de sentido exprime alguma forma de correspondência com o
ser. A alternativa que se oferece a essa primazia do ser na gênese do sentido
somente pode apresentar-se como tentativa de “desconstrução” da sua estrutura
ontológica pela substituição da aparência ao ser e do simulacro à verdade. A inelutabilidade dessa alternativa foi
definitivamente demonstrada por Platão no diálogo Sofista. Essas páginas
célebres, ao mesmo tempo em que estabelecem as articulações lógicas elementares
de uma ciência do ser, levam a seu termo a longa querela que vinha opondo o
filósofo segundo Platão ao sofista. Este
é então retirado da sombra do não-ser onde se refugiara, para ser definido, à
luz da ciência do ser, como artífice de aparência. Tal a demonstração decisiva,
que se eleva no pórtico da cultura ocidental e estabelece, com irrefutável
necessidade, a referência do sentido ao ser, circunscrevendo o não-sentido ao
domínio da aparência, cujo lugar dialético é justamente a imanência
absolutizada do sujeito.
Esta experiência
intelectual típica da modernidade grega conserva um caráter exemplar para a
compreensão da crise da nossa própria modernidade. Com efeito, nela podemos
descobrir a lógica inelutável que transforma a produção humana do sentido em
fábrica da aparência e do não-sentido, no momento em que, tendo rompido seu
vínculo essencial com o ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do
não-ser.
Mas a exemplaridade da
experiência grega do não sentido, sobretudo na leitura genial que dela faz
Platão, não deve ocultar a profunda originalidade e mesmo a novidade que
caracterizam essa mesma experiência na modernidade ocidental. O que era lá
exercício teórico de alguns sofistas, que seduzia apenas a jovem aristocracia
ateniense desencantada com a crise e o declínio político da sua cidade,
torna-se, aqui, um fato universal de civilização e um estilo emblemático de ser
e de viver. A refutação platônico-aristotélica do relativismo sofístico acabou
por inspirar, como é sabido, as grandes correntes de pensamento da antigüidade
clássica. Ao invés, o que prevalece nos tempos modernos é a ampla elaboração
teórica da lógica da aparência, que recebe um estatuto gnosiológico
extremamente sofisticado nas diversas versões da teoria da representação, e uma
poderosa instrumentação epistemológica nas diversas formas do modelo poético do
conhecimento. Desta sorte, a racionalidade moderna se edifica e se exerce tendo
como horizonte último o mundo dos fenômenos. Na sua gênese tem lugar a aparição histórica do sujeito típico da
modernidade, que se opõe como correlato intencional ativo do inesgotável fluxo
dos fenômenos oferecido à sua poiésis, à construção de um mundo que se propõe
ser enfim plenamente humano.O sujeito apresenta-se, assim, como o hypokeimenon,
a substância primeira que sustenta todo o edifício simbólico da cultura
moderna. Nessa, a primazia incontestada é atribuída ao modelo poiético do
conhecimento. Ele guia o sujeito na imensa construção da tecnociência, na
invenção de uma nova ciência da natureza e na reformulacão, segundo novos
pressupostos, dos antigos saberes sobre o homem e a sociedade.
O conhecimento intelectual
ou científico do Eu é uma impossibilidade porque o sujeito não pode
objetivar-se totalmente. O real conhecimento do Eu, segundo o Zen, só se
realiza na subjetividade absoluta: “O eu é
comparável a um círculo sem circunferência, é sunyata, o vazio. Mas é também o
centro desse círculo, que se encontra em toda parte e em toda a parte do
círculo. O Eu é o ponto de absoluta subjetividade, capaz de transmitir o sentido
da imobilidade ou tranqüilidade. Entretanto, como esse ponto pode ser movido
para onde quer que o desejemos, para lugares variados, não é realmente um
ponto”.
Eu é imóvel (sempre
presente em nós) e móvel (mutante de um momento a outro). Por isso ele é designado
pelo mestre Rinzai Gigen (século IX) como “o homem verdadeiro sem posição”. E,
não se pode deixar de lembrar aqui o mestre Thich Nhat Hahn, o sentido do homem
em verdade real, ou seja, a sintonia e harmonia do homem em todas as suas
dimensões, quando a mente se harmoniza com o cotidiano, a mente cotidiana.
A atitude na meditação é
exatamente a oposta. Lembre-se do relacionamento entre a luz do sol e a folha
verde. Quando iluminamos uma coisa com nossa consciência, ela muda, ela se
mistura e se funde com a consciência. Por exemplo, quando você tem consciência
de que está feliz, você poderá dizer: “Estou
consciente de que estou feliz”.
“O
reino da subjetividade absoluta – escreve Suzuki – é onde habita o Eu. “Habitar
não é aqui o termo correto, porque sugere apenas o aspecto estático do Eu. Mas
o Eu está sempre a mover-se ou a tornar-se. É um zero e uma estaticidade e, ao
mesmo tempo, um infinito, a indicar que se move o tempo todo”.
Isto está presente e
ausente em toda a obra de Vergílio Ferreira -
não condena o pensador ao círculo vicioso da procura de uma
‘objetividade’ situada fora do sujeito, nem à pressão de uma subjetividade
alheia à realidade do mundo exterior. Desemboca ao contrário na síntese que
permite integrar, superando-a, a clássica oposição entre ‘subjetividade’ e
‘objetividade’. Do ponto de vista existencial, nas palavras de Heidegger, ‘toda objetividade é, como tal, subjetividade’.
Mas se os princípios
neo-realistas não permitiam ou pelo menos não aconselhavam que dentro de um
romance se desse destaque a determinada personagem, Vergílio Ferreira,
ultrapassada a sua primeira fase de produção literária, já em Manhã Submersa –
romance que se seguiu à publicação de Mudança – e a apartir do breve texto
inicial em que, através de um recurso de técnica narrativa exercita a ficção
dentro da ficção quando coloca Antônio Santos Lopes escrevendo sobre Vergílio
Ferreira e referindo-se a Vagão “J”, embora sem lhe mencionar expressamente o
título, revela claramente uma ampla viragem na sua linha de execução romanesca
substituindo a problemática coletiva pelas indagações individuais de uma
personalidade marcada pela angústia e por certas dúvidas que são já próprias de
um contexto existencial. Não que o cenário social esteja totalmente ausente de
Manhã Submersa. Na realidade, ele é basicamente o mesmo de Vagão “J”, mas
diluído pela experiência vivida por Antônio Santos Lopes no Seminário, que é na
verdade o assunto nuclear do livro. Manhã Submersa é o romance do despertar da
consciência de um adolescente para os grandes problemas da existência: Deus, a
vida, o sexo, a família, a morte, a religião, a liberdade, o amor, são
interrogações questionadas pela mente perplexa de Antônio Lopes. Trata-se,
portanto, de um romance construído a partir da própria percepção ou do próprio
pensamento da personagem e assim uma obra de recorte psicológico- existencial e
conseqüentemente de cunho eminentemente individualista. Aliás, o individualismo
de Manhã Submersa é revelado já no texto introdutório do romance, assinado
por Lopes, em que ele diz que durante
algum tempo pensou em realizar a hipótese levantada por Vergílio Ferreira no
final de um dos seus livros e escrever a história da sua gente. Efetivamente,
nos últimos momentos de Vagão “J”, o romancista pergunta:
“Quem vem por um fim à história dos Borralhos? Ela não acabou
ainda e mal se percebe já onde foi que começou. Talvez, Antônio Borralho, tu a
escreva um dia. Tu ao menos descobriste que tinhas inteligência, tu sabe o que
sois, o que sempre tendes sido”.
Se o romancista Vergílio
Ferreira não conseguiu evitar as contingências históricas e deu início à sua
obra dentro dos parâmetros do movimento neo-realista, Vagão “J”, apesar de deliberadamente escrito a partir de uma perspectiva social ou antes socialista, é já
um romance que apresenta determinadas inovações ao nível da escrita e da
estrutura romanesca que não são comuns
ao Neo-Realismo mais autêntico. Dentre essas inovações, percebe-se de imediato,
a um simples folhear do livro, a estrutura monolítica do romance, construído
num só bloco, sem a tradicional divisão em capítulos, intencionando alcançar um
maior dinamismo interno. No plano da linguagem já se pressente a formação do
estilista, ou, talvez mais precisamente, a preocupação do escritor em criar ou
trabalhar um estilo capaz de sugerir o diapasão da temática tratada. Representa
isto também uma novidade dentro do contexto neo-realista, cuja ficção mais
ortodoxa, sabe-se, pouco ou nada se preocupou com problemas estilísticos.
O estilo de Vergílio Ferreira
assumiria papel de preponderante importância na sua produção romanesca de
temática existencial, onde o escritor cria variações estilísticas em função das
variações temáticas dos seus livros. E a propósito de temática existencial,
certos problemas desta ordem afloram já, embora muito embrionariamente, em
algumas passagens de Vagão “J”. Não
evidentemente, uma visão existencial ao nível da náusea, da revolta ou da
angústia, que são muito mais conseqüências da percepção intelectual do que da
experiência do viver, mas uma problemática da existência que se poderia dizer
primitiva, representada da existência que se poderia dizer primitiva,
representada pelo ódio e pela violência do homem de jorna, que traz no peito a raiva surda que a vida desgraçada acumulou. Esta colocação existencial é praticamente
decorrente da própria ess6encia do Neo-Realismo, visto que reside na questão
mais primária da estratificação das classes sociais. O homem de jorna, o
trabalhador alugado, odiava o patrão e a vida porque nada tinha de seu: Toda a gente possuia qualquer coisa para afirmar
a sua existência; - o homem da jorna tinha apenas o seu ódio. Encontram-se
no romance outros indícios da temática existencial levemente aflorada e
representada por outras vias, como por exemplo, a do imenso amor à vida
repentinamente descoberto por Chico Borralho – um inutilizado que vegetava
preso a uma cama- quando posto em contato com uma natureza exuberante:
“Nos campos a vida grita uma plenitude de sangue fresco, o céu é
azul. Por isto custa morrer. Sempre em torno rebenta a esperança dos que
começam, a vida renova-se, as crianças nascem, abrem os olhos, completam-se,
músculos novos, enquanto outras crianças vão nascendo e levam os olhos da gente
que vai envelhecendo e vê a vida renovar-se. Por isto custa morrer. A vida é sempre um primeiro dia, a
hora, o minuto primeiro, não o momento e a hora que se somaram a outras horas e
minutos. Por isso custa morrer e Chico Borralho sofre”`.
Vergílio Ferreira, como
toda a geração neo-realista preocupou-se de tal modo com a reproduçào da
realidade, que Vagão “J” chega a beirar o documental. É importante lembrar que
grande parte da ficção neo-realista portuguesa não foi ou quase não foi além do
documentário. Isto, aliás, por preocupaçào dos próprios escritores, a quem só a
realidade palpável interessava. Preocupaçào que nasceu com o primeiro romance
neo-realista português, Gaibéus, de Alves Redol, que traz este texto à guise de
epígrafe:
‘Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte.
Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois
disso, será o que os outros entenderem”.
A propósito deste livro e
da vocação da geração neo-realista para o documentário, importa também saber
que Gaibéus, antes de ser realizado como romance, foi concebido por Alves Redol
como um estudo etnográfico que o escritor pretendia fazer sobre um grupo de
ceifeiros que vendia o seu trabalho nos arrozais do Ribatejo: a gente da Glória, tão diferenciada no vestuário
como nos hábitos de vida e de trabalho dos outros alugados dali.
Alves Redol não consegue
criar personagens complexas, reais. Se aqui e ali elas manifestam algo de
individual, isto se dilui logo em seguida, perde-se no coletivo. Este é o seu
verdadeiro personagem: o coletivo. O ser humano que ri, pensa, chora, sente, ou
seja, o ser humano real, não tem lugar no seu “realismo”.
A estória que o romance nos
conta é a de um grupo de gaibéus – vale explicar: trabalhadores de outra região
contratados para o trabalho no Alentejo. O romance não trata das pessoas que
foram o grupo, mas do grupo em si, enquanto realidade social. O narrador tenta
revelar-nos, em perspectiva, a vida dura dessas pessoas, fruto da injustiça
social. Às vezes, ele se aproxima mais de alguma personagem, tenta sondar o seu
interior, o que nos mostra, entretanto, não é propriamente uma pessoa, mas um
tipo.
O ceifeiro rebelde, outra
personagem de quem o narrador procura aproximar-se, revela-se menos ainda
pessoa. É simplesmente alegoria das idéias de libertação do narrador, e mesmo
do autor. Ele não sente o mundo, não experimenta o mundo, simplesmente o
analisa a partir de categorias sociológicas, disfarçadas de idéias e emoções de
um gaibéu que, depois de mergulhar na vida, decepciona-se com ela e comeá a
desenvolver a consciência crítica. Se o narrador tivesse conseguido acompanhar
este processo, teria conseguido criar uma grande obra, mas ele não consegue, já
apresenta-o numa leitura pronta, acabada, de fora.
É importante frisar aqui
que não se trata de negar uma verdadeira, e mais que legítima, simpatia do
autor para com os trabalhadores pobres e injustiçados. O que me parece é que
este procedimento – de sobreposiçào de idéias – não valoriza e respeita a vida
e cultura destes mesmos trabalhadores, pessoas, representadas por aquelas
personagens.
O ceifeiro rebelde –
representante autorizado do narrador e do autor – como um herói intelectual
iluminista, tem o saber libertador e quer, ‘generosamente’, doá-lo ao povo que
vive na ignorância, vítima da ideologia imposta pela classe dominante. Nunca
passa pela cabeça deles que este povo também tem o seu saber, que ele também
tem o que ensinar, que na sua cultura também existem germes libertários.
Podemos ver isto claramente
no modo como o narrador trata a linguagem – parte essencial e principal forma
de expressão de uma cultura – dos seus personagens. Pensemos, primeiramente, na
linguagem do próprio narrador. Trata-se de uma linguagem direta, objetiva.
Busca-se descrever a realidade exterior de uma forma fiel. Este modo de ler/descrever
a realidade mostra-nos a realidade opressiva em que vivem os pobres. Por trás
da linguagem aparentemente objetiva do narrador podemos, entretanto, sentir seu
olhar comovido. Isto, evidentemente, não é negativo, não compromete de forma
alguma a obra. Ele simpatiza com as personagens de quem está falando e tem todo
o direito, inclusive esteticamente falando, de gritar o seu protesto. O
problema se dá na hora de passar a palavra para eles. – e esta idéia chega a
ser externalizada pelo ceifeiro rebelde – não sabem o que falar. Este é o
preconceito de fundo que compromete não só ideológica mas também formalmente o
romance. Na prática do texto, fica implícito que els nào sabem não apenas o
quë, mas nem ao menos sabem falar. Algumas das palavras dos pobres que entram
na narrativa, ou algumas reproduçòes de sintaxe ou fonética, não chegam a
articular a suamlinguagem. Não revelam a sua cultura. Têm quase um caráter
exótico. Revelariam, no máximo, a sua não-cultura, sua pobreza também neste
nível.
Mas será esta a verdade?
Será a cultura do pobre também uma cultura pobre?
Herdeiro ou continuador da
escola realista, o Neo-realismo tem em si algo que o poderia ligar também a um
certo Naturalismo. Aliás, em Portugal, Realismo e Naturalismo de certo modo se
confundiram numa fusão de tendências. Evidentemente que não é pelo espírito ou
pelo aprendizado científico positivista exageradamente presente na obra
literária que se dá a semelhança entre Neo-Realismo e Naturalismo, visto que
naquele o que predomina é a observação do social, basicamente em seus aspectos
políticos e econômicos. O que de certo modo sugere alguma semelhança entre as
duas tendências literárias, além da filosofia materialista comum a ambas, é a
inclinaçào que, cada uma a seu modo, têm para o patológico. O Naturalismo
preocupou-se com a patologia humana e suas conseqüências na sociedade através
dos fatores históricos, ambientais ou genéticos e nào se pode negar que muitas
vezes foram exagerados os resultados ou conclusões da aplicaçào das teorias
científicas à literatura. O Neo-Realismo volta-se para um outro tipo de estado
patológico? Preocupa-se objetivamente com a patologia social, com um estado
mórbido da sociedade originado por uma estrutura sócio-político-econômica
defeituosa e injusta que permite o progresso – mesmo ilícito – das classes
dominadoras à custa da degradação e do sacrifício das camadas inferiores. Não
se podem negar exageros cometidos em nome do movimento. Como defendesse uma
literatura de objetivos sociais e mesmo intervencionistas (falou-se muito de
uma intervenção neo-realista), a pretexto de literatura social, principalmente
durante a primeira fase do Neo-Realismo surgiram – para felizmente logo
desaparecerem – inúmeros escritos muito mais próximos do panfleto
propagandístico do que do trabalho literário.
Em ‘Apelo da Noite’, o protagonista nega a crença religiosa mas aceita a
idéia de santidade:
“Há santos ou pode havê-los
em todas as religiões, em todos os partidos. São os que assumem...”
Linearmente traçada a
fábula de Apelo da Noite, observa-se que o
romance se constrói a partir de uma açào subjetiva que da consciência de sua
principal figura, Adriano Mendonça, é transposta para o plano objetivo de uma
efetiva ação – armada, inclusive – com finalidades políticas de que é
protagonista o próprio Adriano. Como Carlos Bruno, o herói de Mudança , Adriano Mendonça vem de Coimbra,
onde cursou engenharia e paralelamente cultivou uma herança do pai: o gosto
pela literatura e o questionar ideológico. A conclusão do seu curso coincide
com o término da guerra, e o regresso a Évora, à terra natal, com a repentina
morte da irmã, Lídia.
“Visitava-o a morte agora pela primeira vez, o seu absurdo, a sua
violência como um estampido”
Este desenvolvimento
inicial do romance em tudo se assemelha ao de Mudança,
salvo no que se refere às certezas dos seus protagonistas, visto que Bruno
regressa de Coimbra acreditando ainda em todos os valores materiais que sempre
lhe sustentaram a existência, enquanto que Adriano, ao invés dessa crença, já
traz instauradas na consciência indagações e dúvidas marcadas por certo amargor
de angústia. Os seus valores, já postos em questào, sucumbem totalmente ante o
absurdo da morte, a extrema fragilidade da vida, representada pelo imprevisto
falecimento da irmã, que patenteia a falência da ciência humana. A partir desse
primeiro encontro com a morte, registro do desmoronamento de frágeis valores
existenciais, tal com a Carlos Bruno impõe-se a Adriano Mendonça encontrar
novas razões que justifiquem a vida, mas, ao invés do protagonista de Mudança que mergulha longamente numa extrema
lassidão e inapetência, Adriano, após breve período de depressão, tem um
lampejo de revolta contra o desespero que a morte infunde e encontra na
atividade política uma razão para continuar vivo?
“Levanta-te, morto antecipado, a hora volta, a esperança volta –
brusco de coragem e remorso, desatou a fazer projetos, de novo a vibração
política o transformou, abalou o país! Eleições livres! Ele as dá de novo, as
teve de dar!”
“E em outubro confirmou-se o boato das “eleições livres”. Por
influência da América, por influência da Inglaterra, por imposição da História.
Longos anos de sangue e de ruína, as emissoras estrangeiras prometiam a
liberdade e a paz, campos de concentraçào, horrorosos crimes da noite – vinha
aí a luz da manhã, eles falavam já no “desmanchar a feira”. Adriano ergueu-se
ao clamor e durante um mês, em Portalegre, Coimbra, Évora, outra vez em
Portalegre e em Faro e em Beja, conferências, organização de listas, passava as
madrugadas redigindo manifestos, Gabriel pedia artigos para jornais
clandestinos, Torres mandava rifas, exigia novas traduções”.
Na ação de objetivos
políticos imediatos, colocou Adriano, equivocadamente, um valor absoluto que
ansiava por alcançar. Equivocadamente porque os resultados dessa ação, quando
alcançados, depressa se esgotam ou se ultrapassam, caindo portanto no relativo
ou no contingencial da dinâmica histórica. Para Adriano, tanto quanto para
Aires, era válido e possível resumir a vida
numa ação decisiva Por isso, em busca desse absoluto, ele parte para
Lisboa, juntar-se à clandestinidade de um grupo de intelectuais
revolucionários, alguns já conhecidos dos seus tempos de Coimbra. Do
relacionamento de Adriano com seus perplexos e inquietos companheiros, vai
surgir, como contraponto da ação política investida de absoluto, o valor da
idéia como fator capaz de superar os resultados da açào. Forma-se assim a
tensão essencial do romance, que é o conflito pensamento/ação,
e, como quase todos os componentes do grupo clandestino são escritores (alguns
são intelectuais voltados para outras áreas: médicos, professores,
jornalistas), as discussões são conduzidas para o campo da literatura,
questionando-se a função social da obra literária. Este direcionamento do romance
permite a Vergílio Ferreira praticar um autêntico ensaísmo dentro da ficção, um
ensaísmo por vezes essencialmente literário, como o que subjaz nos trechos em
que se questiona o Neo-Realismo e suas finalidades sociais imediatas veiculadas
através da literatura. A certa altura há memso uma referência à ortodoxia neo-realista , à qual se opunha o
romance de Adriano Mendonça, Viagem sem
Regresso. Há também a declaração de Gabriel, diretor de uma revista
literária em decadência que o grupo clandestino pretende fazer ressurgir e para
a qual planejam traçar um programa de açào, de que a sua intençào não é senão
ajudar e esclarecer o homem, ajudá-lo a
reencontrar a sua dignidade. E há ainda a ironizaçào de intençòes tão
imediatistas quanto a denúncia da miséria e a crença na esperança de a superar
pela literatura, ironia sutilmente alcançada por Vergílio Ferreira através da
fala de Tibério:
“Vocês vão ver o Ribeiro. Vocês vão ver o que é um romance ao pé
dessa merda para aí. Vocês vão ver o Canuto. E o João Palha. Não são
porcariazinhas de gabinete. São romances modernos, romancezinhos vividos, de
coirãozinho ali batido na experiência. Canuto foi caixeiro a sério, varredor a
serío, moço de fretes a alombar com carregos. O Ribeiro foimoço de mandados
numa casa de mulheres de quinze paus. O Palha foi molleiro na terra do avô e
proqueiro na terra da mãe. Esses senhores delambidos a armarem para aí que
foram carroceiros, guitarristas do fado, para impingirem o seu romance. Tomaram
sempre chá das cinco com senhoras. Varredor, o Canuto. Moleiro, o Palha.
Romance vivido, fossadinho ali na realidade. Cambada!”
Num esquema de aproximação
entre Vergílio Ferreira, Sartre Camus, em relação a André Maulraux pode-se
afirmar que Apelo da Noite é o mais
maulrausiano dos romances do autor de Mudança. Efetivamente,
se alguns traços da obra do escritor francês podem ser encontrados no conjunto
romanesco de Vergílio Ferreira, Apelo da Noite é um romance claramente relacionado com a
característica mais ampla da obra ficcional de Malraux, o fascinio das
personagens pela aventura, pela açào política perigosa, pela revolução armada,
em que a morte é encarada com naturalidade, sem temor, porque a justificação da
existência está na própria execuçào da açào (que pode, evidentemente, ser interrompida) assumida como um valor absoluto e elevada a
uma dimensão metafísica.
No romance não há realidade
externa que faça contrapeso ao cunho inacabado da reportagem. Transformadas em
princípio construtivo de ficção, e deslocadas de seu contexto prático, estas
técnicas provisórias tornam-se juízo absoluto sobre a condição humana. O
romance habitual, que fala ordenadamente da desordem de uma revolução, busca
representar um momento histórico, real ou fictício; um romance que incorpora a
precariedade jornalística à sua estrutura, transforma-se em juízo, afirmação
absoluta, já que a desordem não é mais questão de conteúdo, mas escolha técnica
feita de antemão, anterior ao começo e à matéria do romance e independente
deles. Á volta desta problemática emergem as questões centrais de A Condição Humana, e explicam-se os seus êxitos
e suas falhas.
O romance de Malraux
oscila, pois, entre o relato histórico interessante, mas jornalístico, e a
descrição de experiências de impotência humana, que tendem, no limite, a
tornar-se mera exemplificação metafísica; as duas fraquezas são complementares.
De entremeio aparece a luta pelo sentido, a experiência concreta que nào se
desfaz em esquemas nem sofre do linguajar cansado da reportagem, no qual não se
retém a marca do acontecimento, logo perdida na generalidade do vocabulário
convencional.
Por não Ter profundidade no
tempo, o romance não tem também, variedade histórica; falta-lhe, daí, um pano
de fundo concreto sobre o qual os acontecimentos possam desenhar a sua singularidade.
As ações precisam de termos abstratos e teóricos para caracterizar o seu
desenvolvimento, termos pomposos, que reduzem o evento concreto à
exemplificação de uma estrutura abstrata. A mimese evapora em juízo teórico.
Exemplo: “As palavras eram ocas, absurdas, fracas demais para exprimir o que
Tchen queria delas”. O problema artístico, de fazer sensível esta experiência e
de representar a sua prática, é eludido pela mera denominação. O que são
palavras ocas e fracas? É preciso apelar para a nossa experiência pessoal, se
quisermos dar conteúdo a estas expressões. O livro não impõe a sua substância
concreta. Resulta que o leitor não chega a uma nova compreensão delas,
propiciada pela pesquisa e sensibilidade do escritor, mas basta-se com repetir
a si mesmo o que já sabia, - a síntese é exterior ao texto. Voltamos à
característica de jornal, que expusemos inicialmente. Os exemplos desta
fraqueza são inúmeros no livro.
Na estrutura das
personagens, o padrão conceitual aparece com toda a evidência. Na primeira cena
do livro, a experiência de Tchen leva a uma formulação extrema da condição
humana, cujo único problema significativo seria o enraizamento da consciência
no mundo contingente.
André Maurois diz que os heróis de Malraux se interessam mais pelos
atos que pelas doutrinas, e, se observarmos o grupo de intelectuais
clandestinos de Apelo da Noite, poderemos constatar que todos anseiam por uma
açào modificadora da realidade histórico-social em que estão situados, embora
se mostrem, até ao final do livro, política e ideologicamente indefinidos, o
que é especialmente verdade em relação a Adriano Mendonça, entre todos, o menos
interessado em doutrinas políticas. Adriano tem um problema fundamentalmente
idêntico ao do seu companheiro Gabriel: ser
artista dentro da ação.
Não é de biografias que o
ensaio trata, mas isto bem poderia Ter sido um lema de vida de André Malraux,
em quem sempre coexistiram o homem de ação e o artista e em quem a arte acabou
por suplantar a aventura. É assim que André Maurois se lhe refere: ele enxerga uma outra oportunidade de salvação
aliada à história, que é a cultura; outro método para se aproximar do mundo,
que é a arte, recriação do mundo. Adriano Mendonça oscila também entre a
arte e a ação, e, se ao final escolhe a ação como forma de salvação
existencial, o ato de pensar e a realizaçào artística nunca estiveram ausentes
da sua existência. A grande dor de hoje é a do pensamento – O grande pecado de
hoje: o pensar. Estas afirmações da consciência de Adriano são praticamente um
eco da narração do final de Mudança: Esse era o crime de que o acusavam: - pensar.
E é evidente que estas três afirmativas e o que elas sugerem de comportamento
vivenciado, seja por Carlos Bruno ou Adriano Mendonça, têm sua raiz no
raciocínio absurdo de Camus: começar a pensar é começar a ser consumido.
Pensando em toda uma
interpretação que foi elaborada em termos de Albert Camus, com insistência
frisando a questão do absurdo, com uma conotação tendenciosa: a de encerrar o
pensamento deste escritor, dramaturgo, numa leitura negativa. Este ser que se
assume: elabora a sua visão-de-mundo, a sua espiritualidade. Há uma leitura da
espiritualidade na obra de Camus que pretendemos elaborar neste trabalho,
buscando a síntese com Vergílio Ferreira; este, sem dúvida, assume a sua
influência do escritor/dramaturgo francês.
Reconhecendo-se na
intencionalidade da sua consciência, a existência humana emerge na cisão.
Consciência de si e consciência do mundo são dois enfoques do mesmo fenômeno. A
realidade humana exprime-se na sua dimensão de ser no mundo.
Ser no mundo significa
existir para si e para o mundo, não apenas o mundo da natureza, configurados em
termos humanos, mas também, é claro, o mundo social em que o ser-com-os-outros
assegura a realidade no modo da co-existência.
Quando neste trabalho se
inicia a abordagem de Vagão “J”,
principiou-se por destacar certas inovações lançadas por Vergílio Ferreira
dentro do contexto da ortodoxia neo-realista. Pontos de exceção inseridos num universo
de uniformidades. Terminada a leitura do romance, uma coisa se torna bem clara:
o cenário, as personagens, os objetivos do livro, são comuns a toda a ficção
social desenvolvida no momento histórico em que ele apareceu, mas certos
detalhes do estilo e da técnica narrativa do escritor nesta obra já não se
situam dentro desse contexto literário.
Ao longo do romance
aparecem diversos trechos narrativos de escrita muito ágil e nervosa, revelando
certo descosimento quase caótico que lembra a chamada “escrita automática”
utilizada por alguns romancistas de vanguarda ingleses e americanos e conhecida
também dos escritores surrealistas. Além disso, Vergílio Ferreira utiliza na
narração de Vagão “J” diversos focos narrativos, mudando freqüentemente de
ponto de vista, passando alternadamente da visão do narrador de terceira pessoa
para a perspectiva da personagem que revela o seu pensamento em primeira.
Transcreve-se um texto para exemplificar:
“Mas quando Antônio voltou mais uma vez a férias, desiludiu o tio
que esperava dele muita conversa e até talvez um pouco de latim, só para ver
como era aquilo lá na missa, nunca soubera o que o padre rosnava no jissal.
Joaquina tinha-o prevido de que Antônio era outro, não fazia recados a uma
pessoa, tinha até vergonha da família. Joaquina já nem ia esperá-lo à
camioneta, porque D. Estefaânia e a criada esmpalmavam-no logo, levavam-no a
reboque para casa, e que pena eu tenho de nem lhe poder falar, sempre sou mãe,
mas julgam que lhe faço emal e levam-no. Uma vez ainda me pus de lado a ver se
ele me olhava, e ele olhou e correu para mim e deu-me um beijo. Mas foi só uma
vez”.
Para usar a terminologia
empregada por Jean Pouilon em O Tempo no Romance, Vergílio Ferreira, utilizando
este recurso técnico em nível do foco narrativo, ou se preferir, do ponto de
vista da narração, passa sucessiva e alternadamente de uma visão “por detrás”
para uma visão “com”, colocando-se ora da perspectiva do narrador onisciente
ora da consciência, da visão ou do pensamento da própria personagem. Assim
Vergílio Ferreira chega a utilizar os recursos do monólogo interior e
aproxima-se dos romancistas que empregam a técnica da corrente da consciência.
Não foi por mero acaso que
Vergílio Ferreira utilizou esses recursos narrativos em Vagão “J”. Foi
conscientemente que ele o fez, conforme revela no prefácio que escreveu para a
reedição do romance:
“Orientado, porém, este meu livro pelos valores que julguei
valiosos adentro de uma perspectiva social ou antes socialista, desejando eu,
pois, que ele registrasse por essa perspectiva a minha chamada fase
“neo-realista”, a razão maior talvez que me levou à sua reediçào terá que ver
com a sua “escrita”. (...) Em todo o caso, determinar o que define a essa
escrita não me é fácil. Exceto o que a decidiu a ser o que foi. Porque o seu
impulso primeiro – sinto-o mais do que o sei – foi um impulso ao “jogo?, a uma
intrínseca e indizível liberdade na utilização das palavras, construções, na
fusão dos elementos construtivos da narrativa – do discurso direto e indireto,
do diálogo e narrativas em que se insere, das palavras em que esta mesma se
desenvolve e ainda uma certa perspectiva de ironia em que a intenção política
imediata se corrige, em que as personagens se erguem desde o seu próprio sentir
ao sentir do autor, que por essa ironia, afinal, lho acenbtua pela correçào. Um
dinamismo interno percorre assim todo o livro e a própria ausência de capítulos
o sugere”.
Esses recursos técnicos
utilizados pelo escritor, mesmo pelo jovem romancista da primeira fase, do
período de aprendizagem, não passaram ignorados pela percepção crítica de um
ensaísta como João Palma-Ferreira, que a eles assim se refere:
“Já nos contos mais chapadamente realistas de Vergílio Ferreira
(recordemos O Encontro, do volume A Face Sangrenta, 1953), se esboça, como
porventura no trama (sic) de O Caminho Fica Longe, - o seu primeiro romance,
publicado em 1943 -, o choque entre o fluxo da consciência da personagem e as
conveniências dos tipos que encaixam no circunstancialismo verista. E não só
esse conflito começamos a sentir nas obras mais remotas de Vergílio Ferreira,
mas também a tendência para a animizaçào trágica de uma natureza semi-bárbara e
grosseira que se acende de um dinamismo agressivo propício ao desencadear de
paixões intimas e egoistas”.
Citado por Maria Aparecida
Santilli, “O ‘Moto-Spiritual’ de “Mudança”, pag. 134. Para melhor compreensão
destas esquivalências, válido é transcrever-se o texto de Kate Hamburguer em
que Aparecida Santilli apoia o seu pensamento:
“A linguagem criadora de literatura que produz a poesia lírica
pertence ao sistema enunciador da linguagem. Isso já é justificado do ponto de
vista básico-estrutural pelo fato de que experimentamos um poema de modo
completamente diferente do que a literatura ficcional, narrativa ou dramática.
Experimentamo-lo como o enunciado de um sujeito-de-enunciação. O muito
discutido eu lírico é um sujeito-de-enunciação”.
Expresso assim, parece
confirmar-se a definição tradicional do lírico como gênero literário subjetivo
e realizado um passo no sentido da descrição moderna da poesia como formação
‘lingüística’. Voltamos a Hegel, o verdadeiro fundador da fenomenologia
literária alemã. “NO lírico”, diz ele, “é
satisfeita a necessidade (do sujeito)... de desabafar e de perceber a
disposição interior na exteriorização de si mesmo’. Nesta sentença é
fundamentada a subjetividade específica da experiência, o ‘sujeito’ como
pessoa, o eu pessoal do poeta, seu interior, a subjetividade do lirismo em
oposição à objetividade do épico”.
Não é por acaso que o
romancista insiste na contemplatividade de Carlos Bruno, diante da paisagem ou
dos fenômenos naturais. Não são casuais as longas jornadas que ele faz de
bicicleta ou a pé pelos caminhos da serra. Contudo, facilmente se verifica uma
radical mudança na forma de sentir, perceber, interpretar a paisagem ou os
fenômenos da natureza entre as primeiras e as últimas aparições de Carlos Bruno
no romance.
Na consciência de Carlos
Bruno começa a operar-se uma fusão do homem com a terra, o que ocorre
inicialmente, em relação ao Gaviarra, numa colocação que, sem deixar de ser
existencial, tem ainda algo de econômico, no que se refere aos meios de
aquisição, e de sobrevivência. Essa fusão vai envolver o próprio Bruno, que em
dado momento descobre na natureza o valor que procurava para fundar sua
existência e o meio de abrandar a angústia que o consome. Ao final do romance,
acentua-se o processo de metaforização dos fatores naturais. A neve que cai na
encosta e um
“...vasto mar branco, com ondas nas curvas lentas dos cerros,
barcos negros de casas, mastros de ramos de árvores”
Vergílio Ferreira, em
“Invocação ao meu Corpo”, assim diz acerca da Arte:
“A arte abre o ilimitado de nós, implanta-nos no absoluto que
transcende o real, mas fixa aí esse absoluto numa radical imanência, porque a
transparência que nos abre é imanente a si própria”
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